14/07/2008

Imagens de um continente em busca de si mesmo

Filmes, debates e oficinas expõem, em São Paulo, estado da produção cinematográfica na América Latina. Festival reflete momento em que tanto o continente quanto seu cinema buscam novos rumos — mas já não o fazem com as lentes e projetos que marcaram o século 20.

(12/07/2008)

O 3º Festival de Cinema Latino-Americano começou na segunda-feira (7 de julho), em São Paulo. O filme escolhido para a abertura do evento, que praticamente encheu os mais de 800 lugares do auditório do Memorial da América Latina, foi um documentário: Os Uruguaios, de Mariana Viñoles. O filme faz parte da série Os Latino-Americanos, da Televisão América Latina – TAL. Além da pré-estréia da série, o festival, que tem entrada gratuita e vai até o dia 13 de julho, [1], presta uma homenagem ao cineasta argentino Fernando Solonas e exibe uma retrospectiva da obra do cineasta cubano Tomás Gutierrez Alea (1928-1996). O festival traz também uma mostra de filmes produzidos por escolas de cinema, outra de longas-metragens latino-americanos contemporâneos, debates e oficinas.
Além de promover a exibição de filmes, o evento pretende ser um ponto de reflexão sobre as identidades e projetos (ou ausência de projetos) latino-americanos, tomando como ponto de partida o cinema. Em sua primeira edição Fernando Birri, poeta e cineasta, um dos fundadores do Nuevo Cine Latinoamericano com o curta Tire Dié, assinalou que a atmosfera do festival o fazia lembrar a de Vinã del Mar em 1967. Assinalou a importância de consolidação deste espaço como um pólo de encontro e discussão da cinematografia deste continente.
A série da TAL tem como objetivo a produção de filmes que busquem as identidades das nações latino-americanas por meio do olhar de diretores de cada país. Já foram realizados dez documentários. O primeiro grupo (2006-2007) inclui Argentina, Colômbia, México, Paraguai e Uruguai . Na segunda fase (2007-2008), foram produzidos os documentários de Bolívia, Cuba, Equador, Peru e Venezuela. O desafio era que cada realizador procurasse retratar nada menos que a identidade de sua nação e, ao mesmo tempo, os elementos que nos caracterizam como latino-americanos.
A uruguaia Mariana Viñoles, de 31 anos, que veio a São Paulo a convite do festival para apresentar seu filme, caracteriza a proposta de “ambiciosa”. A diretora, que falou ao Le Monde Diplomatique na última terça-feira, afirma que não teria pensado em fazer um filme sobre a identidade de sua nação se não tivesse sido convidada pela TAL. “Era um projeto ambicioso, que envolvia uma grande responsabilidade e pedia coerência com a realidade”, diz.
Em Os Uruguaios, sinais dos novos tempo. Para produzir, já não é preciso recorrer à Europa. E, ao invés dos clichês, "não falar muito, e sim escutar, conhecer as pessoas"
A diretora optou por buscar “pequenas histórias de pessoas simples, do povo: atores sociais e não especialistas, como sociólogos, historiadores, por exemplo”. Esta é uma tendência da série, que se caracteriza por colocar na tela rostos e histórias de anônimos de cada país.
Mariana diz haver buscado lançar um olhar de intimidade e simplicidade sobre os personagens que foi encontrando. Tinha consciência de que era impossível retratar o todo, mas preocupou-se “com uma certa representatividade”. A realizadora foi a três regiões de seu país buscar seus personagens: o interior profundo, a capital (Montevidéu) e a costa atlântica. “O Uruguai é um país pequeno. Metade dos 3 milhões de habitantes vive na capital”. O filme mostra um pouco das diferentes paisagens, em muitos momentos ao som de tangos de Carlos Gardel, cuja nacionalidade é motivo de disputa entre uruguaios e argentinos. Mas o foco são as pessoas, que contam um pouco de suas vidas, pensamentos e identidades ao espectador.
A opção de Mariana de buscar alguns personagens com boas histórias, sem tentar retratar tudo o que há no Uruguai, faz de Os Uruguaios um documentário que dá ao expectador tempo para aproximar-se com certa profundidade a esses “outros” e refletir. Isso não acontece com todos os filmes da série. Alguns tentam retratar, nos 50 minutos de cada obra, a maior quantidade possível de paisagens, rostos, costumes, sons, cores, sabores, crenças, problemas, festas e algo mais de determinada nação. O excesso de informação acaba, em certos casos, mareando o espectador e transmitindo pouco mais que clichês – ou reproduzindo o discurso elaborado desde fora sobre nós mesmos.
Em Os Uruguaios, a estratégia da diretora “era não falar muito e sim escutar. São mais conversas que entrevistas”. Mariana, que é responsável também pela fotografia do filme, deixa para conhecer as pessoas com a câmera ligada, para garantir certo “frescor” aos depoimentos. O documentário foi realizado por uma equipe brasileiro-uruguaia, em um “ritmo vertiginoso”. Mariana elogia a experiência, que possibilitou a criação de vínculos profissionais, antes mais difíceis. “Acho que agora há menos necessidade de recorrer à Europa”.
Haverá uma América Latina nestes filmes? Ou será que justamente a fragmentação de todos estes modos de fazê-los nos revela algo deste continente e seu projeto?
Logo no início do filme, a diretora, que estudou cinema na Bélgica, aparece na tela, contando que está fazendo um documentário e assim transformando-se em sujeito do mesmo. Ela afirma que isso não foi planejado, mas como havia material decidiu, na etapa de edição, acrescentar alguns momentos em que aparece ou escutamos sua voz. “Sou também uma uruguaia, jovem, que vive em seu país e realiza coisas”. Há apenas um outro jovem no documentário, um rapaz que está de partida à Espanha, para buscar trabalho e estudar.
Personagens que vão e vêm, temporariamente ou definitivamente, estão presentes também em outros documentários da série. São estrangeiros que optam por viver na “acolhedora” América Latina ou latino-americanos que partem para “tentar a vida” na Europa ou nos Estados Unidos. Uma das uruguaias do filme de Mariana, Victoria, diz que o Uruguai não tem um projeto como país. Perguntamos a Mariana se ela acha que a América Latina tem um projeto. Ela diz acreditar na existência de um “sonho de poder ser um continente unido, que possa fortalecer-se para apoiar-se e não depender dos mais ricos”. “Gosto de sonhar”, afirma, acrescentando que as utopias dos anos 70 sofreram o corte das ditaduras, mas há uma reaproximação lenta dos diferentes países através de novos governos de esquerda.
Cinema e sonho sempre estiveram associados. Qual o espaço para sonhos neste cinema latino-americano contemporâneo? Que histórias contamos, como as contamos, para quem as contamos? O que elas dizem da América Latina? Que América Latina é inventada aí? Uma América dos que vão e que ficam (em nosso continente partir é, para muitos, uma condição), ou de diretores que vão e ficam? Esta pergunta, colocada em tom de provocação, nos leva a indagar não apenas sobre o que contamos e para quem, mas também quem é esse “nós” que conta. Reinsere no debate, assim, a situação do autor e a relação desta com as identidades que esculpem o documentário. Ou, ainda, quem é esse “nós” que conta? Haverá uma América Latina em todos estes filmes produzidos em nosso continente? Ou será, justamente, a fragmentação de todos estes modos de fazer filmes que nos revela algo deste continente e seu projeto de América Latina? Ficam estas perguntas (talvez em forma de busca), sobre o contar nossas próprias histórias.
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Esta é a primeira de uma série de matérias que Le Monde Diplomatique publicará sobre os latino-americanos e seu cinema. Pensados a partir do 3º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, os textos são produzidos em colaboração por uma equipe que conta com Iana Cossoy Paro, Javier Cencig, Moara Passoni e Thiago Mendonça
Colaboraram neste artigo Javier Cencig e Moara Passoni.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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