22/01/2010

Relatos sobre o Haiti

Vale a pena a leitura do relato de chegada do professor Omar Thomaz da Unicamp, que acompanhou de perto a terrível situação haitiana.

Queridos amigos e colegas, antes de mais nada, estamos todos bem e gostaríamos de agradecer o apoio e as mensagens carinhosas de todos vocês. Destaco particularmente o empenho de nossa diretora, Nádia Farage, que trabalhou incalsavelmenteno sentido de favorecer o retorno de todo o grupo ao Brasil. A decisãode voltar não foi tomada de imediato. Em primeiro lugar, porque, apesarde termos consciência logo no primeiro momento de tratar-se de uma calamidade ímpar, não tínhamos clareza quanto a sua dimensão: as comunicações dentro de Porto Príncipe eram extremamente precárias ou quase inexistentes, sabíamos o que víamos na rua, e o que nos chegava via rumores. O acesso à internet era intermitente, e não tínhamos nem tv, nem rádio; em segundo lugar, porque nosso primeiro impulso foi o de ficar e ajudar na medida do possível. Pouco a pouco foi ficando claro para todos nós que a tarefa de ajudar num contexto como este é mais complicada do que pode parecer. Por outro lado, para mim, a prioridade era garantir a integridade física e psíquica de minha equipe. Voltar, contudo, não foi fácil. Ir de um lado a outro da capital era extremamente difícil, o aeroporto estava fechado para vôos comerciais e a rota com a República Dominicana fora inicialmente interrompida, assim como a fronteira. Tão pronto a comunicação com a República Dominicana foi retomada, optamos por pegar o ônibus e nos dirigirmos à capital deste país. De lá, e com o apoio da embaixada, pegamos carona num Hércules da Força Aérea Brasileira. Chegamos no Rio de Janeiro na terça-feira à noite. Aluguei uma van e consegui chegar em Campinas, com todos os alunos, na quarta feira pela manhã. O que deixamos para trás foi um país em ruínas. Edifícios emblemáticos da capital desabaram - o palácio nacional, os ministérios, o senado, a catedral, a biblioteca nacional, o centro de arte. Nos dias que se seguiram ao terremoto, o que vimos foi uma população solidária e abandonada. Caminhávamos por horas pelas ruas e praças do centro dacidade, e não víamos nenhuma presença da tão anunciada ajuda internacional. O que víamos eram os haitianos ajudando os haitianos: as"dame sara" garantindo a distribuição de produtos, o "chein jambe"garantindo o preparo dos alimentos; empresários da água distribuindo água potável a filas organizadas; médicos haitianos ajudando os feridos nas ruas, jovens resgatando feridos e mortos nos escombros, caminhões da prefeitura recolhendo os cadáveres que se amontoavam nas calçadas. Os mortos se acumulavam nos dias que se sucediam, e caminhar por ruas apinhadas de corpos à espera de serem recolhidos, ao lado daqueles que, vivos, esperavam ajuda, constitui uma imagem que todos os membros da equipe levarão consigo para sempre. Tivemos que deixar o Haiti pois não havia condições de permanência no país. Mas estamos, mais do que nunca, comprometidos com este país. Desde que chegamos estamos trabalhando no sentido de imaginar de que forma, da universidade, podemos colaborar com a reconstrução do país, ao tempo em que, de longe, tentamos contato com amigos e conhecidos desaparecidos que encontramos nos dias posteriores ao terremeoto mais forte. Saímos de lá com a sensação de uma dívida infinita. Os haitianos nos permitiram que trabalhassemos em seu pais - nos hospedamos em suas casas, aprendemos o seu idioma, ouvimos suas histórias. Este momento da pesquisa, previsto para ser antes demais nada uma etapa de treinamento de alunos em campo, acabou por promover um laço entre todos e o Haiti, entre todos e cada um dos haitianos, que dificilmente se romperá. Daqui, seguiremos atrás de nossos amigos, e do lugar que ocupamos, procuraremos contribuir, o pouco que seja, com a reconstrução do país, para onde esperamos possamos retornar em breve. Mais uma vez, obrigado a todos e a todas que pensaram em nós neste dias. Contamos também com cada um de vocês para que o IFCH seja um lugar de debate crítico e de proposições que possam contribuir, minimamente, para um Haiti um pouco melhor do que o país arrasado que deixamos. Um grande abraço a todos.
Omar Ribeiro Thomaz

21/01/2010

FORA TODAS AS TROPAS ESTRANGEIRAS DO HAITI

Renato Nucci Junior (Militante e dirigente do PCB-São Paulo)
A devastação causada pelo terremoto no Haiti acentuou a ocupação militar de seu território por tropas estrangeiras. Às tropas da Minustah, calculadas em 8 mil militares e sob comando brasileiro, se juntam agora cerca de 10 mil soldados norte-americanos, incluindo 2 mil marines. A desculpa dessa grande presença militar é a de ajudar os sobreviventes do terremoto e auxiliar no esforço de reconstrução do país. Em verdade, mais uma vez o sofrimento do povo haitiano é usado para justificar uma nova intervenção estrangeira.
Em uma situação de tanta dor e sofrimento, onde um povo miserável é vítima de uma catástrofe de proporções gigantescas; onde as imagens difundidas pelos grandes meios de comunicação é a de um país acéfalo no qual parece inexistir o aparelho de Estado, o envio de tropas se justificaria plenamente. O aparente caos natural do Haiti só poderia ser contornado pelo uso constante de uma força militar externa capaz de garantir a segurança e a estabilidade política, fatores imprescindíveis para a reconstrução econômica e social do país.
Ao contrário dessa “verdade” martelada diariamente em nossas cabeças, o fato é que a atual situação do Haiti em grande parte se deve as constantes interferências e intromissões de nações mais poderosas em seus assuntos domésticos. Os Estados Unidos, com os seus marines à frente, ocuparam e governaram o país de 1915 a 1934. De lá saíram quando o controle da alfândega do país permitiu o pagamento das dívidas que este possuía com o City Bank e, de quebra, conseguiram uma mudança constitucional que passou a permitir a venda de terras e plantações a estrangeiros.
A partir da década de 1990, após a derrubada da ditadura sanguinária de Jean Claude Duvalier, o Baby Doc, que recebeu o apoio dos Estados Unidos, o país se transformou em laboratório para intervenções estrangeiras, principalmente as norte-americanas. O objetivo de todas elas é um só: destruir qualquer capacidade dos haitianos em se autogovernarem. Isso significou executar uma clássica intervenção em seus assuntos internos, como foi o caso da destituição do então presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, o que resultou no envio de uma missão de paz da ONU, a Minustah, em nome da estabilização e segurança do país. Do mesmo modo, tratou-se de impedir que o Estado haitiano possa fazer o que todo Estado faz, executando políticas públicas com os fundos disponíveis, sejam eles internos obtidos com o recolhimento de impostos, sejam de doações ou empréstimos internacionais. Desde 2001, por pressão dos Estados Unidos, os fundos de ajuda internacionais são direcionados prioritariamente para as ações de ONG’s que passaram a substituir as obrigações do Estado haitiano. O país não conta com forças armadas e as funções policiais são raquíticas.
Aproveitando-se da acefalia política para a qual contribuíram conscientemente, os Estados Unidos despejaram no Haiti o seu arroz, objeto de fartos subsídios, levando a ruína os pequenos agricultores do país. Em 1982, o governo dos Estados Unidos obrigou o Estado haitiano, sob a ditadura de Baby Doc, a eliminar todos os porcos do país, acusando-os de estarem infectados pela febre africana. Toda essa situação tornou a vida no campo insuportável, levando a um grande êxodo rural cujas conseqüências estão no aumento das favelas e da miséria do país observada na década de 1980, principal razão para a rebelião popular que pôs fim, em 1986, ao regime de terror de Baby Doc. Outra situação da qual tiraram proveito, a partir do êxodo rural, foi a implantação ainda nessa década das maquiladoras, principalmente de roupas esportivas (Nike, Adidas, Reebok), explorando uma força de trabalho baratíssima e sem direito a organização sindical.
A presença da Minustah, a partir de 2004, acentuou no Haiti a condição de nação sob permanente estado de intervenção externa. Sob comando operacional dos militares brasileiros, a justificativa para uma nova intervenção estrangeira era a de restabelecer a ordem e reconstruir a infra-estrutura do país. Porém, em quase seis anos de ocupação, os níveis de miséria e pobreza não foram revertidos. Nenhuma escola ou hospital foi construído. Os termos da missão de paz da ONU definem que o orçamento da Minustah só pode ser gasto nas operações destinadas a manter a ordem pública e a segurança interna. Em junho de 2009, as mobilizações populares em apoio a um projeto aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado que reajustava o salário mínimo de 70 gourdas para 200 gourdas (1 dólar equivale a 42 gourdas), foram duramente reprimidas pelas tropas da Minustah.
Com papel tão limitado, o governo e as tropas brasileiras, além de usarem a missão no Haiti para assegurar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, também fazem do país, nas palavras de um coronel da Brabatt (Batalhão Brasileiro da Minustah), um laboratório para os militares brasileiros aprenderem a como conter uma possível rebelião nas favelas cariocas. Mas o papel vergonhoso do Brasil não se resume em transformar o Haiti e seu povo em um grande campo de treinamento para oprimir o próprio povo brasileiro. Interesses econômicos de capitalistas tupiniquins estão por trás da presença do Brasil na “missão de paz” da ONU no Haiti. Além da OAS, que ganhou uma licitação de US$ 145 milhões para construir uma rodovia, a Coteminas, maior empresa de cama, mesa e banho do mundo e cujo proprietário é o vice presidente José Alencar, negocia com as autoridades da Minustah a instalação de uma planta no país. Sua produção seria exportada para os Estados Unidos, com quem o Haiti tem um acordo de livre comércio. Uma das vantagens oferecidas pelo Haiti seria o salário dos trabalhadores, pois uma costureira em Porto Príncipe recebe US$ 0,50 por hora, muito abaixo dos US$ 3,27 pagos para a mesma profissional no Brasil. É o melhor dos mundos para qualquer capitalista: a exploração mais desbragada é garantida pela força das armas, tudo em nome da reconstrução do país.
A devastação causada pelo terremoto, ao prostrar ainda mais o povo haitiano, foi a senha para governos imperialistas ampliarem sua presença militar. Os Estados Unidos, além do envio de tropas, militarizou a costa haitiana, enviando modernos navio de guerra e ocupou o aeroporto de Porto Príncipe, causando dificuldade para o pouso de aviões com ajuda humanitária. Brasil, França e Estados Unidos, ao invés de matar a fome dos haitianos e socorrer os feridos, brigam entre si sobre quem continuará garantindo a ordem pública e a vigilância policial no país. Mas essa presença súbita de tropas norte-americana no Haiti, tendo como justificativa ajudar no esforço de assistências às vítimas do terremoto, também deve ser vista como parte da estratégia dos ianques em ampliar o cerco militar a Cuba e Venezuela. Afinal, o Haiti está no meio do caminho entre dois países que representam um desafio à prepotência e arrogância do imperialismo.
Enquanto isso, o povo haitiano padece nas ruas de Porto Príncipe de fome, de sede e da falta de atendimento médico. Se eles reclamam por não lhes chegar comida, água e remédios, esperando por uma ação decisiva da ONU e das tropas da Minustah, isso se deve à completa desestruturação do Estado haitiano, levada a cabo por potências estrangeiras que sempre viram no país um mero joguete dos seus interesses.
Para muitos parecerá um absurdo, mas a solução dos problemas haitianos, mesmo os causados pelo terremoto, só começarão a se resolver quando toda e qualquer tropa estrangeira deixar o país. A solução para os terríveis problemas enfrentados pelo Haiti começa, sim, pelo respeito à sua soberania, o que implica a retirada de toda e qualquer tropa estrangeira. Óbvio que nesse momento o Haiti necessita de ajuda. Mas esta deve ser na forma de comida, remédio, roupa, assistência médica, cancelamento unilateral de sua dívida externa, assistência técnica para retomar a produção industrial e agrícola, tudo sem qualquer tipo de contrapartida. Mas jamais com o envio de tropas, cujo pretexto em prestar ajuda humanitária, serve para aprofundar a submissão do país.

Campinas, janeiro de 2010.

20/01/2010

Haiti: eis o que é imperialismo e o que é subimperialismo

Duarte Pereira*
Está-se consumando a crônica anunciada e previsível da nova ocupação do Haiti pelos Estados Unidos, desta vez aproveitando o terremoto que devastou o país e sua capital. Os Estados Unidos já desembarcaram 11 mil militares no país. Ontem, com tropas armadas e uniformizadas para combate, transportadas em helicópteros de guerra, ocuparam o palácio presidencial em Porto Príncipe. O aeroporto, não esqueçamos, continua sendo controlado e operado pelos Estados Unidos, que hastearam sua bandeira no local e decidem que aviões podem pousar. Nos últimos dias, deram prioridade a suas aeronaves, principalmente militares, prejudicando o desembarque da ajuda enviada por outros países e por organizações não-governamentais. A prioridade foi a segurança, não a vida da população haitiana, principalmente pobre. O ministro francês da Cooperação, Alain Joyandet, chegou a protestar: “Precisamos ajudar o Haiti, não ocupá-lo.” É verdade que, tendo cumprido o cronograma inicial de desembarque de suas tropas, os Estados Unidos poderão autorizar, nos próximos dias, o pouso de um número maior de aviões de outros países, com técnicos e equipamentos para remoção de destroços, médicos e remédios para atendimento dos feridos, água e alimentos para a população desabrigada e desempregada. A essa altura, porém, a possibilidade de encontrar pessoas soterradas com vida será mínima e excepcional.

Sem que a mídia dê atenção a este aspecto, os Estados Unidos estão aumentando também o controle do porto que dá acesso à capital e de toda a área litorânea do Haiti, com um porta-aviões, um navio equipado com um hospital de campanha e vários navios da Guarda Costeira, visando a socorrer feridos, mas também a selecionar e controlar a aproximação de navios de ajuda de outros países, como o enviado pela Venezuela com combustível, e a impedir a emigração desesperada de haitianos para a costa estadunidense em pequenas embarcações..

Não podendo justificar suas ações arrogantes e unilaterais com ordens das Nações Unidas, o governo de Washington tem argumentado que atua a pedido do governo haitiano. Mas que soberania pode ter um governo, como o do presidente René Préval, que não dispõe sequer de forças policiais e de equipamentos de comunicação e transporte para manter a ordem pública e organizar o salvamento de seus cidadãos? É significativo também que o plano de salvamento e reconstrução do Haiti pelos Estados Unidos tenha sido anunciado, em conjunto, pelo presidente Barack Obama e pelos ex-presidentes Clinton e Bush – o mesmo Bush que demorou tanto a agir quando o furacão Katrina destruiu uma grande área dos Estados Unidos. Quando os interesses estratégicos da superpotência estadunidense e de suas empresas transnacionais estão em jogo, prevalece como sempre o consenso bipartidário entre “democratas” e “republicanos” – aliás, uma confluência bipartidária semelhante se ensaia agora no Brasil com o PSDB e o PT, apesar das acirradas disputas nas fases de eleição.

O jornalista Roberto Godoy, especializado em assuntos militares, escreve no “Estadão” de hoje: “Os Estados Unidos estão fazendo no Haiti o que sabem fazer melhor: ocupar, assumir, controlar. Decidida em Washington, a operação de suporte às vítimas da devastação, em quatro horas, tinha 2 mil militares mobilizados – e metade deles já seguia para Porto Príncipe – enquanto o resto do mundo apenas tomava conhecimento da tragédia. (...) É a Doutrina Powell, criada no fim dos anos 80 pelo então chefe do Estado-Maior Conjunto general Colin Powell, aplicada em tempo de paz. Ela prevê que os Estados Unidos não devem entrar em ação a não ser com superioridade arrasadora. (...) No sábado, oficiais americanos [seria mais correto escrever estadunidenses, porque americanos somos todos nós] estavam no comando do tráfego aéreo. Os paraquedistas da 82ª Divisão e os fuzileiros navais (...) são treinados para o combate e também para missões de resgate. Movimentam-se em helicópteros e veículos convertidos em ambulâncias leves. A retaguarda é poderosa. Um porta-aviões virou central logística e um navio-hospital de mil leitos chegou no domingo. Ontem, aviões dos Estados Unidos ocupavam 7 das 11 posições de parada remanescentes no aeroporto.”

A mídia do grande capital, exagerando os saques e os conflitos, cumpriu seu papel de preparar a opinião pública para aceitar a operação político-militar dos Estados Unidos como necessária e benevolente. Na realidade, os Estados Unidos têm contribuído para acirrar os conflitos ao atrasar a ajuda humanitária de outros países e utilizar aviões e helicópteros para despejar suprimentos aleatoriamente sobre uma população sedenta, faminta e desorganizada. Até mesmo o general brasileiro Floriano Peixoto, comandante da Minustah (Missão de Estabilização das Nações Unidas), ponderou em videoconferência que os casos mais graves de violência não são generalizados e disse que as ruas de Porto Príncipe estão desobstruídas, o que facilita a ação das forças de segurança. Na avaliação do general, a situação se mostra menos grave do que a versão difundida pela imprensa. Além disso, quem tem experiência política e já participou da resistência a regimes entreguistas e autoritários não pode deixar de receber com ceticismo a qualificação fácil e indiferenciada, difundida pela mídia, de que todos os presos que escaparam dos presídios destruídos pelo terremoto são criminosos comuns e integrantes de “gangues de bandidos”. Muitos oficiais e soldados do antigo Exército haitiano formaram milícias, que declararam seu apoio ao último presidente livremente eleito Jean-Bertrand Aristide, depois que ele foi deposto em 2004. Seqüestrado por tropas estadunidenses e levado à força para a África do Sul, bem longe do Haiti, o ex-presidente Aristide continua impedido de voltar ao país e seu partido foi proibido de participar das últimas eleições realizadas sob o controle da Minustah.

Com as diferenças secundárias de motivação e de situação interna, o roteiro seguido pelos Estados Unidos no Haiti é, portanto, essencialmente, o mesmo adotado no Iraque ou no Afeganistão: primeiro, destroem-se os Estados nacionais que esbocem qualquer rebeldia, instalando a devastação econômica e social e o caos político; depois, utilizam-se essas circunstâncias deterioradas para justificar a construção de Estados satélites; por último, esses Estados satélites e corruptos se revelam incapazes de garantir a paz, resgatar a dignidade nacional e melhorar o padrão de vida da população (com as exceções de praxe das elites colaboracionistas), justificando que a ocupação estadunidense se prolongue indefinidamente. A crise aprofundada pela intervenção externa cria, enquanto isso, oportunidades de novos negócios lucrativos para os fabricantes de armas, as empresas de segurança e as grandes construtoras dos Estados Unidos e de seus aliados.

Para dissipar dúvidas sobre as reais intenções da intervenção “emergencial” e “humanitária” dos Estados Unidos no Haiti, o diplomata Greg Adams, enviado ao país caribenho como porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, declarou ao “Estadão” em Porto Príncipe: “É muito cedo para estabelecer prazos [para a retirada das tropas estadunidenses] e ficaremos aqui o tempo que for necessário [lembremo-nos de declarações semelhantes tornadas públicas no início da ocupação do Iraque]. Havia tropas estrangeiras no Haiti antes do terremoto [ah, é?]. Com a tragédia, além de todos os outros problemas, não vejo uma data-limite no futuro próximo para falarmos aos haitianos ‘ok, agora é com vocês’. Ficaremos aqui por um bom tempo e acho que o Brasil também.”

A referência à ação coadjuvante e subordinada do Brasil foi bem esperta. Que autoridade moral pode ter o governo brasileiro de protestar contra a ação estadunidense se tem participado da intervenção política e militar nos assuntos internos do Haiti, ainda que com a chancela formal das Nações Unidas, chancela já utilizada ao longo da historia da entidade para encobrir tantas outras intervenções? Participando das operações de segurança – ou seja, em bom português, de repressão – com o beneplácito e em benefício dos Estados Unidos, o Brasil espera ganhar o prêmio de consolação de tomar parte nos negócios de reconstrução do país. Aliás, grandes construtoras brasileiras, como a OAS e a Odebrecht, já enviaram equipes técnicas e equipamentos pesados para o Haiti, posicionando-se para a disputa que virá.

Quem afirma que não existe mais imperialismo no século XXI ou põe em dúvida o conceito de subimperialismo, utilizado para caracterizar a política externa atual do Brasil, principalmente na América Latina e no Caribe, tem assim a oportunidade de aprender, em cores e on line, o conteúdo concreto desses conceitos e dessas práticas. Abrindo bem os olhos, os patriotas e democratas brasileiros têm o dever de exigir que o Brasil renuncie ao comando militar da Minustah, retire progressivamente suas tropas do Haiti e se limite às ações de cunho efetivamente humanitário. O Haiti não precisa só de ajuda, precisa de soberania. Que os Estados Unidos realizem seu plano de intervenção e de construção de um Estado satélite no Haiti com seus próprios recursos humanos e materiais e sob sua exclusiva responsabilidade. Assim, pelo menos, a situação ficará mais clara e se tornará mais fácil mobilizar as forças antiimperialistas e democráticas no Haiti e nos demais países da América Latina e do Caribe. Não percamos de vista que um império em declínio, na desesperada tentativa de reverter o curso histórico que o debilita, pode tornar-se mais perigoso e aventureiro do que um império em ascensão e paciente.

Estou fechando este parêntese sobre a tragédia haitiana, porque já está claro que não se trata apenas de uma tragédia natural e humanitária, mas sobretudo política e militar. Recentemente, um terremoto devastou uma grande região da China, deixando 87 mil mortos, segundo as estimativas oficiais. Porque havia e há na China, apesar de sua pobreza ainda grande, um Estado soberano e ativo, foi possível lidar com as conseqüências da tragédia sem permitir a intervenção estrangeira no comando das operações de socorro e reconstrução ou o desembarque de tropas de outros países. A grande tragédia do Haiti foi a destruição progressiva de seu Estado nas últimas décadas, com a dissolução de suas forças armadas e policiais, a precarização de seus serviços públicos e a desorganização e divisão de sua população.

Duarte Pereira
20/1/2010

19/01/2010

E o futuro do Haiti?

*Relato impressionante de um estudante da Unicamp.

E politicamente, o que acontecerá ao Haiti? Pode parecer preocupação excessiva pensar isso agora, mas não é… O Palácio e outros órgaos do Governo caíram. Não se têm mais todos os funcionários, os prédios, os equipamentos. O Senado veio abaixo justamente quando estava cheio. Um intelectual haitiano nos disse que tudo do Estado foi destruído e a burguesia (que sabemos, em geral, está por trás dos Estados) também foi.
As Forças Armadas e a Polícia do país não desapareceram “em meio ao caos provocado pelo terremoto”, como disse um repórter digital… As Forças Armadas não sumiram, foram desmanchadas no começo da década de 90, após decisão do presidente na época, Aristide. E a Polícia local é a única força armada que vimos nas ruas nos primeiros dias após o desastre.
As forças que a princípio sumiram aos olhos da população são as estrangeiras, que ocupam o país. Nesse sábado, andando de carro em vias relativamente livres, foi surpreendente ver dezenas de veículos da ONU parados no quartel do Brasil. Será que depois virá a comunidade internacional, resgatar o último sobrevivente, aparecer na mídia e dizer de boca cheia que ajudou o povo haitiano?
O que me assustou não é bem um “despreparo” da Minustah, como disseram por aí, mas a impressão de que há, ou houve, um desfoco, uma falta de prioridade. Os EUA estão há menos de 2h daqui, mas, pelo que vimos, demorou 4 dias para a ONU começar a lançar comida de helicópteros, o que obviamente reflete na afobação parcial da população para receber comida.
Parece que está se constatando publicamente o fracasso da Minustah (que está há 6 anos nesse Haiti) pois, realmente podemos ter dúvida do que ela deixou a esse povo: incentivo à bases, como agricultura e escolas, para o próprio país se reerguer, não foi…E agora, nessa hora emergencial, também tivemos dúvida da presença efetiva dela. Parece-me que a Minustah foi para o Haiti não apenas para oferecer comida, seguranca, etc, mas para inserir no país numa lógica que não essencialmente é a da ajuda, da prevenção e da estabilização. Tudo isso são apenas dúvidas que me farão reparar bem na intensificação do controle social que vai se instaurar e num número alto de mortos que pode existir mesmo depois do Haiti se recuperar. Hoje alguma autoridade já decretou que haverá toque de recolher, às 18h, como se fome tivesse horário pra vir e como se várias pessoas já não estivessem morando na rua.
Para além da ajuda, parece-me que se instaura muito mais fortemente uma lógica do capitalismo internacional, que aliás, é desigual e instável por si só. Quantas empresas e organizações internacionais não ganham muito no Haiti? Quantos dólares a mais elas não ganham ao trabalharem nas “zonas vermelhas” da cidade, consideradas assim pela ONU (mesmo quando são, no quesito violência, lugares comparáveis à diversas regiões do Brasil)? Tal lógica também esta presente em diversas outras “missões de paz”, em ajudas “humanitárias” pós-catástrofes, em políticas econômicas de países ricos em relação à países pobres e em desenvolvimento.
Os EUA estão mandando mais de 5 mil marines (dizem até 10 mil), obviamente muitos deles armados, dizendo que a reconstrução que buscam é a longo prazo… Também já têm o aeroporto em seu controle. Por que não priorizar 5 mil médicos, ou 5 mil litros de diesel, ou 5 mil quilos a mais de comida? Ou então 5 bi de dólares pra pagar uma fração do prejuízo que o fracasso do neoliberalismo, liderado pelos EUA, causou ao Haiti? Ou até para compensar o protecionismo de países desenvolvidos em relação a quem, economicamente, já está de guarda abaixada faz tempo?
Às vezes, penso que tantos mil soldados só podem vir pra cá para caçar, quem sabe grupos locais (os quais, onde não há presença do Estado, são naturalmente o poder existente). Pra quem quiser ajudar o Haiti, será que exise algo mais importante com que se gastar esses recursos do que investir na soberania alimentar, no combate à sede, à falta de moradia, etc, as quais já afetavam a esmagadora maioria da população antes do desastre? Desastre natural, aliás, que se agrava, na verdade, por conta de um desastre precedente, o social.
Num momento em que minha experiência no Haiti me mostrou que a natureza de muitas ocupações, “ajudas” e relações internacinais não me agradam, não posso estar otimista com o futuro politico do Haiti, apesar de acreditar muito no povo haitiano. Fico ainda mais preocupado sabendo que quem esta liderando tal movimentação é obviamente os EUA, o qual nas últimas décadas foi uma das “potências” que pressionaram infinitos países e exerceram muito dessa forma, eu diria, autoritária e doentia de se relacionar com o outro. Como disse Omar, qualquer valor monetário dado agora ao Haiti “humanitariamente” é pouco, e é, na verdade, o pagamento mínimo de uma dívida, que, ainda por cima, estão pagando de forma errada. E o Brasil parece não ter aprendido a lição que sofreu na própria pele: hoje é um dos protagonistas da intensifcação desses princípios perversos e que geram desigualdade no Haiti. Aliás, já anunciou que ficará por aqui mais 5 anos.
Apoio-me nas palavras de um dominicano, que comentou algo como: “Disseram que o terremoto foi um castigo para o povo haitiano. Foi, na verdade, um castigo para aqueles que passaram séculos tratando-os com indiferença”. Pior, por mais que muitos haitianos gostem ainda hoje do Brasil (até porque quando qualquer um dá um prato de comida a alguém faminto não é muito dificil ganhar o mínimo da simpatia deste) não posso dizer que nós, brasileiros, não somos parte dessa patota de pessoas que devem ser responsabilizadas pelo que acontece no Haiti.
*Werner Garbers

18/01/2010

Parte da tragédia do Haiti é "Made in USA"


Escrito por Huffington Post, reproduzido por Vi o Mundo
15/01/2010
Parte do sofrimento no Haiti é "Feito nos Estados Unidos". Se um terremoto pode danificar qualquer país, as ações dos Estados Unidos ampliaram os danos do terremoto no Haiti. Como? Na última década, os Estados Unidos cortaram ajuda humanitária ao Haiti, bloquearam empréstimos internacionais, forçaram o governo do Haiti a reduzir serviços, arruinaram dezenas de milhares de pequenos agricultores e trocaram apoio ao governo por apoio às ONGs.Por Bill Quigley, no Huffington Post
O resultado? Pequenos agricultores fugiram do campo e migraram às dezenas de milhares para as cidades, onde construiram abrigos baratos nas colinas. Os fundos internacionais para estradas e educação e saúde foram suspensos pelos Estados Unidos. O dinheiro que chega ao país não vai para o governo mas para corporações privadas. Assim o governo do Haiti quase não tem poder para dar assistência a seu próprio povo em dias normais -- muito menos quando enfrenta um desastre como esse.Alguns dados específicos de anos recentes.
Em 2004 os Estados Unidos apoiaram um golpe contra o presidente eleito democraticamente, Jean Bertrand Aristide. Isso manteve a longa tradição de os Estados Unidos decidirem quem governa o país mais pobre do hemisfério. Nenhum governo dura no Haiti sem aprovação dos Estados Unidos.
Em 2001, quando os Estados Unidos estavam contra o presidente do Haiti, conseguiram congelar 148 milhões de dólares em empréstimos já aprovados e muitos outros milhões de empréstimos em potencial do Banco Interamericano de Desenvolvimento para o Haiti. Fundos que seriam dedicados a melhorar a educação, a saúde pública e as estradas.
Entre 2001 e 2004, os Estados Unidos insistiram que quaisquer fundos mandados para o Haiti fossem enviados através de ONGs. Fundos que teriam sido mandados para que o governo oferecesse serviços foram redirecionados, reduzindo assim a habilidade do governo de funcionar.
Os Estados Unidos têm ajudado a arruinar os pequenos proprietários rurais do Haiti ao despejar arroz americano, pesadamente subsidiado, no mercado local, tornando extremamente difícil a sobrevivência dos agricultores locais. Isso foi feito para ajudar os produtores americanos. E os haitianos? Eles não votam nos Estados Unidos.Aqueles que visitam o Haiti confirmam que os maiores automóveis de Porto Príncipe estão cobertos com os símbolos de ONGs. Os maiores escritórios pertencem a grupos privados que fazem o serviço do governo -- saúde, educação, resposta a desastres. Não são guardados pela polícia, mas por segurança privada pesadamente militarizada.
O governo foi sistematicamente privado de fundos. O setor público encolheu. Os pobres migraram para as cidades. E assim não havia equipes de resgate. Havia poucos serviços públicos de saúde.
Quando o desastre aconteceu, o povo do Haiti teve que se defender por conta própria. Podemos vê-los agindo. Podemos vê-los tentando. Eles são corajosos e generosos e inovadores, mas voluntários não podem substituir o governo. E assim as pessoas sofrem e morrem muito mais.
Os resultados estão à vista de todos. Tragicamente, muito do sofrimento depois do terremoto no Haiti é "Feito nos Estados Unidos".