21/02/2009

Deficitário, FAT não tem dinheiro para ampliar seguro-desemprego

TCU alertou órgão para evitar o déficit; ministro Lupi (Trabalho) diz que este ano ainda dá para fazer desembolso.
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Ribamar Oliveira, BRASÍLIA
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O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) não tem condições financeiras para custear as despesas decorrentes de uma ampliação do seguro-desemprego para até dez parcelas, segundo avaliação da área técnica do governo. Essa ampliação, cuja possibilidade foi admitida no início do mês pelo ministro do Trabalho, Carlos Lupi, teria de ser bancada com recursos adicionais do Tesouro ou pela redução ou eliminação dos empréstimos do FAT ao setor produtivo.
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Por causa da crise, as centrais sindicais reivindicam o aumento das parcelas do seguro-desemprego, que hoje é pago em até cinco meses. Para custear a ampliação para até sete parcelas aos trabalhadores dos setores mais afetados pela crise, já decidida pelo governo no início deste mês, a lei permite que o FAT lance mão, por semestre, de até 10% de suas reservas técnicas, que hoje estão em torno de R$ 11 bilhões.
O FAT paga o seguro-desemprego, o abono salarial e destina recursos para a qualificação profissional e para empréstimos aos setores produtivos (os chamados "depósitos especiais"), com o objetivo de aumentar a oferta de empregos. O Fundo é mantido com recursos das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor (Pasep). A avaliação técnica é que o FAT está à beira do colapso, pois as despesas estão crescendo em ritmo mais acelerado do que as receitas.No dia 11, o Conselho Deliberativo do FAT (Codefat) liberou uma linha especial de crédito de R$ 200 milhões para capital de giro de agências de veículos usados.
O segmento foi o que sofreu o maior impacto da atual crise no setor automotivo e a linha foi mais uma medida do governo para tentar conter o aumento do desemprego. A nota técnica 89/2008, elaborada pela coordenação-geral de recursos do FAT, órgão ligado à Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério do Trabalho, informa que o programa vai apresentar em 2010, pela primeira vez em sua história, um déficit operacional de R$ 497,2 milhões. Ou seja, as despesas serão maiores que todas as receitas resultantes das remunerações das aplicações. A nota diz que o déficit será crescente e atingirá R$ 4,3 bilhões em 2012. Esse "rombo" anual terá de ser coberto pelo Tesouro ou pela devolução pelos bancos dos "depósitos especiais". As projeções da nota técnica foram feitas antes da decisão de pagar o seguro-desemprego em até sete parcelas e com base numa previsão de crescimento da economia de 3% este ano e de 4% em 2010. O ministro do Trabalho, Carlos Lupi, nega que o FAT vá enfrentar dificuldades para financiar a ampliação das parcelas do seguro-desemprego, mesmo que seja para dez meses. "Eu diria que este ano dá sim, pois o Fundo tem um patrimônio de R$ 160 bilhões." Mas ele admite que podem ocorrer problemas no futuro. "É claro que, se o desemprego se agravar muito e a ampliação das parcelas for generalizada, para todos, haverá dificuldades."Os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), no acórdão nº 1.817, de agosto de 2008, recomendaram que o Codefat estabeleça medidas para evitar o déficit.
O TCU considerou ser de "extrema gravidade" a situação apresentada pelo Fundo.A Constituição determina que 40% da receita do PIS e do Pasep sejam destinados ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que usa os recursos no financiamento de projetos destinados a criar empregos. Além disso, as receitas do PIS e do Pasep são reduzidas em 20% por conta da DRU (mecanismo de Desvinculação das Receitas da União), antes de serem destinadas ao FAT. O ministro do TCU, André Luis de Carvalho, constatou que o crescimento das despesas e a diminuição das receitas do FAT decorrem de questões estruturais, como o aumento real do salário mínimo, a elevação do emprego formal e a incidência da DRU sobre a arrecadação. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, a estimativa da área técnica é de que as receitas do FAT crescerão 61,2% de 2007 a 2012, enquanto as despesas aumentarão 96,9% no mesmo período.A solução mais simples seria a redução das despesas com o seguro-desemprego e o abono salarial. Mas o governo descarta essa hipótese.
Outra saída seria elevar as alíquotas do PIS e do Pasep, mas, como a sociedade não aceita mais o aumento da carga tributária, o governo está discutindo alternativas. Nos bastidores, Lupi trava uma queda de braço com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, para que o governo aceite eliminar os 20% da DRU sobre o PIS e o Pasep. Lupi quer também alterar a contabilidade do Fundo para lançar como investimento, e não despesas, os 40% dos recursos destinados ao BNDES. Com isso, Lupi diz que o FAT seria superavitário.Em resposta ao TCU, o presidente do Codefat, Luiz Fernando de Souza Emediato, sugeriu medidas de ajuste, entre elas a alteração do critério de concessão do abono salarial. Hoje, os trabalhadores que ganham até dois salários mínimos têm direito ao abono. Emediato propôs que o abono seja apenas para quem tem renda de um salário mínimo. A proposta daria uma economia de R$ 3 bilhões por ano. Emediato diz que essa medida foi discutida com as centrais sindicais no processo de negociação da proposta de recuperação do poder de compra do salário mínimo. Segundo ele, as centrais concordam.

Confirmada para 2 de março, no Rio, Plenária Nacional da Campanha O Petróleo Tem que Ser Nosso

Fonte: Agência Petroleira de Notícias (www.apn.org.br) Assim que o carnaval passar, coloque na agenda, como tarefa prioritária: dia 2 de março, de 9h às 18h, vai acontecer a II Plenária Nacional da Campanha O Petróleo Tem que Ser Nosso, no Rio. A infraestrutura será garantida pelos sindicatos da Frente Nacional dos Petroleiros (FNP). Representantes de todas as entidades que já estão inseridas nesta luta estarão representadas neste importante evento, que tomará a forma de um seminário, com debates em torno de uma pauta pré-estabelecida e uma relatoria final. Em breve, divulgaremos a pauta. Na I Plenária, em São Paulo , foram debatidas questões mais imediatas, como a Jornada de Lutas contra a 10ª Rodada de Licitação do Petróleo ( 14 a 18/12/08). Também foram traçados os pontos consensuais da campanha. A defesa da soberania nacional, a mudança da atual legislação do petróleo e a luta pela volta do monopólio estatal e pela reestatização da Petrobrás foram pontos debatidos. Neste segundo momento, no Rio, o objetivo é dar mais organicidade à campanha, visando à conquista dos nossos objetivos, para que as riquezas provenientes da exploração do petróleo sejam revertidas em benefício do povo brasileiro. Também serão implementadas formas de expandir a campanha, para alcançar amplos setores da sociedade, o que envolve a produção de cartilhas, vídeos e outros materiais. A convocatória para participação na plenária está a cargo das entidades que compõem o Coletivo Operativo Nacional: Federação Nacional dos Petroleiros (FNP), Federação Única dos Petroleiros (FUP), CUT, Conlutas, Intersindical, CTB, PCB, Conam, MST, MAB, Assembléia Popular, Consulta Popular, Jornal Brasil de Fato e o Fórum contra a Privatização do Petróleo e Gás/RJ (que engloba várias entidades regionais). A II Plenária Nacional da campanha irá ocorrer na sede do Sindipetro-RJ, na Av. Passos, 34, centro do Rio, próximo à Praça Tirandentes. Mais informações com a assessoria do Sindipetro-RJ (21-3852-0148) ou com a Agência Petroleira de Notícias (21-3852-0148 r.232).

20/02/2009

A festa avança pela madrugada. A rua é dos chavistas. A oposição se refugia na mídia. Agora pela manhã, o que sobrou da RCTV (uma das emissoras golpistas de 2002) se transforma num palanque. Um sujeito de paletó grita palavras contra Chavez no estúdio, falando na necessidade de defender a honra da pátria. Imagino que seja um líder da oposição. Não! É um jornalista. A imprensa aqui, como no Brasil, é quem lidera a oposição. O artigo é de Rodrigo Vianna.
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Por Rodrigo Vianna
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Os fogos estouram no céu de Caracas.O Conselho Nacional Eleitoral acaba de dar o primeiro boletim oficial na noite de domingo. Com mais de 94% das urnas apuradas, o resultado já é irreversível: vitória do "sim" no referendo, vitória incontestável de Chavez.Enquanto isso, ligo a TV no quarto do hotel em Caracas. Chavez já está na sacada do Miraflores, o palácio presidencial: canta o Hino Nacional. Os fogos aumentam aqui em volta do hotel (e olhe que estou em área dominada pela oposição; mas devem haver, por aqui, uns chavistas "infiltrados" entre os "esquálidos" da classe média caraquenha).Chavez está emocionado. Ato simbólico: inicia o pronunciamento lendo uma mensagem de Fidel Castro, que felicita os venezuelanos pelo triunfo do "sim".Penso com meus botões: mas Fidel não era um "cadáver político", como noz fizeram crer durante os anos 90? Agora, Chavez, o vitorioso, faz questão de iniciar seu discurso com a mensagem de Fidel. Hum... Algo se moveu na América Latina.
A velocidade é impressionante: Evo aprova a Consituição na Bolívia, Correa avança no Equador, Lugo se firma no Paraguai, Lula atinge 84% de aprovação. Fora os Kirchner na Argentina, e o Uruguai (que já tem o socialista Tabaré no poder, e pode agora eleger Mujica, um ex-guerrilheiro tupamaro convertido ao jogo democrático).Não dá tempo de pensar muito. Corro pra pegar o táxi, e sigo com o cinegrafista Wanderlei, em direção a Miraflores. As ruas estão tomadas. Uma enorme procissão de motoqueiros chavistas circula pelas ruas do centro, fazendo muito barulho. As pessoas também chegam de carro, mas a maioria veio a pé, ocupando as ruas em volta do Palácio. Não conseguimos seguir mais de táxi. A pé, também, tentamos nos aproximar de Miraflores.A cena lembra um pouco 2002, quando a multidão tomou as ruas de Caracas, exigindo a volta de Chavez.
O presidente havia sido deposto num golpe de Estado comandado pela oposição, com apoio forte da mídia privada venezuelana. Por isso, os chavistas não são muito fãs de equipes de TV: com razão, associam jornalistas com golpismo.Muitos me param: "de que canal são?". "Brasil, Brasil", respondo rápido. A reação é sempre a mesma: "Brasil, Lula, amigo de Chavez, amigo da Venezuela". Sorrisos, eles querem pular na frente da câmera, dizer o que sentem por Chavez. E os venezuelanos adoram um discurso. Como falam. Sempre alto, empolgados, verborágicos, muito diferentes dos brasileiros.Subimos na famosa ponte sobre a avenida Baralt. Em 2002, as TVs privadas mostraram cenas de atiradores postados nessa ponte, e numa montagem safada (desmascarada pelo belíssimo documentário "A Revolução Não Será Televisionada"; veja a primeira parte aqui) fizeram crer que os chavistas atiravam sobre a multidão de opositores que passava pela avenida. Foi a senha para dar o golpe!Dessa vez, não há atiradores, nem golpismo. Há a multidão... O Palácio ainda está a 3 quadras.
Avançamos mais um pouco, já é possivel ver as janelas de Miraflores. Mas, é impossível chegar até a sacada de onde Chavez segue discursando...A multidão enlouquece. Um homem carrega o retrato de Simon Bolivar, com uma moldura dourada, parece arrancado da parede de algum museu. Mas a História aqui está viva, vivíssima.O dono de uma van nos autoriza a subir na capota do carro, para gravar mais algumas cenas. O povo se aglomera em volta do carro: "Brasileiros, povo irmão", eles gritam, balançando perigosamente o veículo. "Sim, sim, povo irmão, mas não balance assim se não a gente cai daqui de cima, meu amigo", penso eu, enquanto dou um sorriso meio sem graça para os simpáticos venezuelanos, já embalados por algumas doses a mais de uma bebida amarela , que não consigo distinguir dentro daquelas garrafas de plástico.A festa avança pela madrugada. A rua é dos chavistas.
A oposição se refugia na mídia. Agora pela manhã, o que sobrou da RCTV (uma das emissoras golpistas de 2002) se transforma num palanque. Um sujeito de paletó grita palavras contra Chavez no estúdio, falando na necessidade de defender a honra da pátria. Imagino que seja um líder da oposição. Não! É um jornalista. A imprensa aqui, como no Brasil, é quem lidera a oposição.Um fato, no entanto, merece ser apontado. O "não" perdeu, mas obteve 45% dos votos. É um patrimônio e tanto. Falta à oposição um nome que consiga unificar tantos setores dispersos, para enfrentar Chavez. Mas a oposição, ao que parece, não tem mais porque se aventurar em golpismo. Ganhou musculatura para fazer o jogo democrático. Sorte da Venezuela.

19/02/2009

Ministério Público e Governo Yeda Crusius voltam a criminalizar MST

Escolas do movimento são fechadas no Rio Grande do Sul
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O Ministério Público Estadual e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul voltaram a criminalizar o Movimento Sem Terra e iniciaram o fechamento de todas as escolas itinerantes em acampamentos gaúchos. No dia 10 de fevereiro, a escola do acampamento de Sarandi, que atendia 130 crianças, foi fechada por determinação do MPE e do Governo do Estado. Segundo o Ministério Público, a decisão foi tomada com base em um Termo de Ajuste de Conduta – TAC, assinado pela instituição e pelo Governo do Estado.

O Termo de Ajuste de Conduta foi assinado sem conhecimento ou a participação dos outros entes interessados: pais, educandos e a escola-base, onde as crianças estão matriculadas. O TAC também ignora e desrespeita as Diretrizes Operacionais para Escolas do Campo, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 2002, baseada na Lei de Diretrizes Básicas da Educação/LDB de 1996.

O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado do Brasil a reconhecer e regulamentar as Escolas Itinerantes, através de parecer do Conselho Estadual de Educação em 19 de novembro de 1996. A experiência gaúcha permitiu a instalação de escolas em acampamentos em diversos estados, como Sergipe, Paraná, Bahia, entre outros.

A decisão do MPE e da Governadora Yeda Crusius retoma a decisão do Ministério Público, publicada em ata em dezembro de 2007, em "extinguir" o MST. O fechamento das escolas era uma das medidas previstas pela ata do MPE. No ano passado, com a denúncia pública da ata, o MPE alterou duas vezes o conteúdo da decisão e declararam rever a decisão. O MST teme que o Governo do Estado e o MPE reiniciem as ações ilegais de criminalização elaboradas pelas duas instituições, tais como impedir que os trabalhadores rurais possuam título de eleitor, que sejam impedidos de realizarem reuniões ou manifestações.

Confira abaixo texto de Leandro Scalabrin, membro da comissão de direitos humanos OAB de Passo Fundo, que contextualiza a decisão do Conselho Superior do Ministério Público.


*FUNDAMENTALISMO DE DIREITA FECHA ESCOLAS ITINERANTES DO MST E DEIXA 310 CRIANCAS SEM EDUCAÇÃO*

O Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, através de uma decisão de seu Conselho Superior (CSMP), decidiu colher dados e produzir um relatório (elaborado pelos Promotores Luciano de Faria Brasil e Fábio Roque Sbardelotto) sobre a atuação do MST no Rio Grande do Sul (processo n° 16.315-0900/07-9). O Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul em Ata no 1.116, de 03/12/2007, decidiu "que o referido expediente tem caráter confidencial...", e aprovou o voto e os encaminhamentos propostos pelo procurador e Conselheiro Gilberto Thums, com as seguintes recomendações:

1. [...]designar uma equipe de Promotores de Justiça para promover ação civil pública com vistas à dissolução do MST e a declaração de sua ilegalidade. ...

2.* [...] o voto é pela intervenção do Ministério Público nas três 'escolas' referidas a fim de tomar todas as medidas que serão necessárias para a readequação à legalidade, tanto no aspecto pedagógico quanto na estrutura de influência externa do MST [...]. Sugere-se sejam tomadas medidas para, se necessário, ocorrer o ajuizamento de ações civil públicas com vista à proteção da infância e juventude em relação às bases pedagógicas veiculadas nas escolas mantidas ou geridas pelo MST, nitidamente contrárias aos princípios contidos na Constituição Federal e que embasam o Estado Democrático de Direito. Da mesma forma, sugere-se a tomada de medidas judiciais, se necessário, para impedir a presença de crianças e adolescentes em acampamentos, assim como em marchas, colunas ou outros deslocamentos em massa de sem-terras, tendo em vista serem ambientes notoriamente inadequados para pessoas em processo de desenvolvimento. [...] [Grifos nossos]*

3. [...] voto pela necessidade de desativação dos acampamentos situados nas proximidades da Fazenda Coqueiros...

4. [...]sugere-se sejam investigados os assentamentos promovidos pelo INCRA ou pelo Estado do Rio Grande do Sul, de forma a verificar se a propriedade rural, nessas áreas, cumpre sua função social.

5. [...] "realização de investigação eleitoral nas localidades em que se situam os acampamentos controlados pelo MST, examinando-se a existência de condutas tendentes ao desequilíbrio deliberado da situação eleitoral local.

6. [...] "formulação de uma política oficial do Ministério Público, com discriminação de tarefas concretas, com a finalidade de proteção da legalidade no campo. Este órgão do Ministério Público deve ser especialmente destacado para a atividade, seja na Assessoria do Procurador-Geral de Justiça, sejam com a implementação de Promotoria de Justiça Especializada em Conflitos Agrários. [...][Grifos no original]

Para dar cumprimento às decisões o CSMP designou os Promotores de Justiça Luís Felipe de Aguiar Tesheiner e Benhur Biancon Junior, que, em 11 e 17 de junho de 2008, ingressaram com quatro ações civis públicas: uma delas na Comarca de Carazinho, contra integrantes do MST nos acampamentos Jandir e Serraria, ambos localizados próximos à Fazenda Guerra, em Coqueiros do Sul, RS, e mais seis pessoas físicas e uma jurídica (para despejar os dois acampamentos); as outras três, nas comarcas de São Gabriel, Canoas e Pedro Osório contra o MST[1] e "demais sem terra e integrantes de movimentos sociais de contestação no campo" para que se abstenham de se aproximar, através de marchas, colunas ou outros deslocamentos em massa de sem-terra e demais integrantes de movimentos sociais, [...] a uma distância inferior a dois quilômetros dos limites territoriais [...] da Fazenda Southall (13.267 hectares), da Fazenda Granja Nenê (1.246 hectares) e da Fazenda Palma (3.029 hectares).

Após ter sido denunciado publicamente o teor desta deliberação, o CSMP esclareceu que em 07 de abril de 2008 reuniu-se em nova sessão, solicitou informações sobre o cumprimento das medidas aprovadas, quando seus membros manifestaram "total apoio aos Promotores de Justiça designados por tratar de tema de segurança pública" e ao final, decidiram por desclassificar o processo administrativo quanto a seu caráter sigiloso e retificar a ata de 3 de dezembro de 2007, para suprimir a determinação anterior de ajuizamento de ação civil pública para dissolução do MST e a declaração sua ilegalidade. Tamanha foi a repercussão e reação dos setores democráticos da sociedade brasileira, inclusive do próprio Ministério Público do RS, que em 30 de junho de 2008, em nova reunião do CSMP, houve nova retificação da ata, onde constou que tudo não passou de um equívoco, tudo que constou na ata não foi aprovado, fazendo constar que a deliberação do conselho teria sido somente a de designar "Promotores de Justiça para conhecer do expediente e levar a efeito as medidas legais cabíveis" e não os encaminhamentos propostos pelo Procurador Thums.

Contradizendo as duas atas retificadoras, os promotores designados pelo CSMP (Luís Felipe de Aguiar Tesheiner e Benhur Biancon Junior – os mesmos que entraram com as ações contras os acampamentos) continuam atuando contra o MST[2], e nos autos do processo onde a dissolução do MST havia sido proposta (expediente n. 16.315-0900-07-9), firmaram TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o governo do Estado do RS (firmado pela da Secretaria Estadual de Educação Mariza Abreu), onde este assume a obrigação de "deixar de desenvolver os Cursos Experimentais (Experiencia Pedagógica) nos níveis de educação infantil – faixa etária de 4 a 6 anos, ensino fundamental e ensino fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos, nas escolas dos acampados do Movimento dos Sem Terra, no Rio Grande do Sul, também denominadas de "Escolas Itinerantes", autorizados pelo Conselho Estadual de Educação do RS" (cláusula primeira), até "04 de março de 2009" (cláusula segunda), sob pena pagar multa de um salário mínimo por dia (cláusula sétima). O TAC foi firmado em 28 de novembro de 2008. No dia 10 de fevereiro de 2009, a escola itinerante do acampamento Oziel Alves, em Sarandi – RS (das famílias que foram despejadas de Coqueiros do Sul), foi a primeira escola a ser intimada da medida.

O TAC afirma que seu objetivo é garantir a todos os alunos acampados, bem como os que se agregarem ao movimento, vaga em rede de ensino público regular mais próximo ao acampamento e transporte escolar (cláusula terceira e quarta), mas na realidade, conforme afirmou o Promotor Thums, em seu voto, a ação é contra a complacência do poder público, notadamente dos "governos de esquerda" que se limitariam a "fornecer cestas básicas, lonas para as barracas, cachaça, treinamento em escolas para conhecer a cartilha de Lenin, etc".

No relatório elaborado pelos promotores Luciano de Faria Brasil e Fábio Roque Sbardeloto, onde a intervenção nas escolas foi sugerida inicialmente, a referência básicas é a revista VEJA que compara as escolas do movimento aos Madraçais do Islã e as acusa de ensinar as crianças a "defender o socialismo" e "desenvolver a consciência revolucionária". Os promotores afirmam que o objetivo da intervenção nas escolas é "colocar as crianças e adolescentes que residem nos acampamentos a salvo da ideologização agressiva" (fls. 79). O relatório também possui um capítulo "Contabilizando o prejuízo para a sociedade: quanto custo um sem-terra", onde afirmam que o poder publico gasta em média por mês, com alimentação e repressão policial, R$1.195,11 por família acampada.

Outra fonte de informações dos promotores que firmaram o TAC tentando fechar as escolas do MST é o relatório de inteligência n. 1293-251007-100 da PM2, o serviço secreto da Brigada Militar, sobre a "realidade das escolas itinerantes do MST no RS" que lhes foi entregue em 14-3-2008. Neste relatório são apresentadas informações sobre a "origem da implantação das Escolas", a "estrutura geral das Escolas Itinerantes", "dos responsáveis pelas Escolas Itinerantes ... pelo MST ... pela Secretaria Estadual de Educação"; o "setor de educação do MST no Brasil", e ainda informações sobre "2 O que foi feito para que as escolas fossem reconhecidas legalmente?", "3 Como são montadas as escolas? E como é sua estrutura física e funcional?", "4 O material pedagógico oferecido aos alunos é elaborado da seguinte forma: É seguida a linha pedagógica de Paulo Freire, pedagogia do MST e livros didáticos. O Estado fornece livros, para aulas de português, matemática e geografia. Os professores ministram também aulas sobre movimentos sociais"; "5 Quem são os educadores das escolas itinerantes", "6 A estrutura das Escolas no RS", "7 Dos outros tipos de escola do MST", "7.1 Veranópolis", "7.2 Palmeira das Missões". Nas considerações finais o relatório enfatiza que "os dados ora apreciados não são de livre acesso" provando que o atual governo, além de colocar o serviço secreto para investigar escolas, como fazia a ditadura, repassou informações que não são de acesso público aos arapongas.

O TAC contradiz a visão do Procurador Geral de Justiça do RS, Dr. Mauro Renner, que comanda o Ministério Público do RS e esteve no acampamento Jair Antonio da Costa em Nova Santa Rita (em 06 de agosto de 2008). "Renner ficou sensibilizado com a precariedade dos recursos materiais à disposição das escolas itinerantes que funcionam no local. Em contato com os alunos de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental da Escola Itinerante Che Guevara, Renner observou que as aulas acontecem sob lonas plásticas, sem qualquer iluminação. Ele prometeu intermediar uma aproximação entre o movimento e a Secretaria Estadual da Educação. "Seremos interlocutores junto ao Estado para acabar com carências e omissões que porventura estejam acontecendo", assinalou (...) "Buscamos uma sociedade justa, fraterna e solidária",esclareceu, e destacou a existência de uma "absoluta coincidência" entre os compromissos do MPF e a estrofe de uma das canções do MST: "Lutar contra injustiças e abuso de poder" (http://www.mp.rs.gov.br/imprensa/clipping/id70562.htm).

Leandro Scalabrin, membro da comissão de direitos humanos OAB - Passo Fundo - RS

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[1] Luis Felipe Tesheiner, um dos Promotores que assinou a ação apresentada à Justiça de Carazinho, declarou ao Jornal Zero Hora de 18 de junho de 2008 que: "Não se trata de remover acampamentos, e sim de desmontar bases que o MST usa para cometer reiterados atos criminosos".
[2] Em 06 de setembro de 2008 o Procurador Gilberto Thums afirmou ao jornal Diário da Manhã de Carazinho, que "o MP está um compasso de espera. "Não sei exatamente que tipo de desdobramento vai ter, mas uma coisa eu posso garantir. Nós temos várias ações já alinhavadas para serem promovidas nos próximos dias. Isso é um cerco que estamos fazendo. Um prato quente que estamos comendo pelas bordas. Não posso revelar que tipo de ações estamos planejando, e que vão ser ajuizadas. A remoção dos acampamentos não é o fim ainda. Nós temos muita munição para gastar", garante.

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Secretaria Geral
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Referendo na Venezuela expressa quadro democrático e tendência histórica

No último domingo, 15, Hugo Chávez venceu o referendo que colocava em questão a emenda que permite reeleições ilimitadas. Para analisar o impacto do resultado, o Correio da Cidadania conversou com o jornalista Gilberto Maringoni, para quem Chávez não representa perigo para a democracia, pois, apesar de seus desejos de continuísmo, aumentou consideravelmente a participação popular nas eleições, sendo que se mantêm os direitos civis e a liberdade de imprensa intactos.

O autor do livro "A Venezuela que se inventa" afirma que a qualidade de uma democracia não depende do tempo no poder de um governante, mas sim de como se conduz a sociedade em seu dia-a-dia. Como paralelo, cita governos parlamentaristas europeus cujos líderes também ficaram longo período no poder.

Maringoni, no entanto, alerta para o perigo que se avizinha das economias dos países de governos progressistas da região, muito dependentes das, agora, desvalorizadas commodities. Para ele, o cenário com o qual nos depararemos na Venezuela e em toda a região é uma grande incógnita.

Correio da Cidadania: Encerrado o referendo, o que o resultado significa em si, uma vez que Chávez havia sido derrotado na tentativa anterior de passar a emenda das reeleições ilimitadas?

Gilberto Maringoni: Desde 1998, houve 15 votações na Venezuela, e em todas elas o governo estava sob questão. É uma média superior a uma votação por ano, algo raro de se encontrar em qualquer lugar do mundo. O interessante é que se pegarmos os números dessa vitória do Chávez (59,5%), compararmos com a primeira eleição dele - de 1998 (56% dos votos) e observarmos também as demais votações, vemos que há uma constância, exceto pelo referendo no final de 2007, quando estava colocada a mesma emenda da reeleição ilimitada.

Em primeiro lugar, vemos um traço muito importante. O Chávez na Venezuela representa uma opinião arraigada e consolidada, não se trata de uma votação episódica. Ele oscila um pouco, mas tem mais da metade da sociedade a seu lado. E o interessante é que o índice de abstenção foi baixo, cerca de 70% dos eleitores compareceram, o que na Venezuela é bastante, já que o voto não é obrigatório, pois mesmo sob Chávez houve eleições com comparecimento de 35%, 40%. E com o fim do analfabetismo na Venezuela, o eleitorado cresceu.

Além disso, há o seguinte: onde ele perdeu as eleições de dezembro de 2008, obteve uma votação menor também agora. O referendo expressa um quadro sem fraudes e uma tendência histórica.

CC: Como você avalia a proposição em si? Por que Chávez tomou essa iniciativa?

GM: Primeiramente, devemos observar que isso não significa uma perpetuação garantida no poder, mas sim que ele poderá se candidatar mais vezes. Outra coisa: quem começou com a tendência de abrir a possibilidade de reeleições na América Latina não foi a esquerda, mas sim a direita, através de Menem, Fujimori e FHC. Ademais, o instituto da reeleição em si não indica que um país seja mais ou menos democrático. Os países parlamentaristas europeus têm seus exemplos. Thatcher ficou 11 anos no poder, Felipe González ficou 14, entre outros, chefes de Estado de fato, e que ficaram enquanto tiveram apoio do parlamento.

Na ditadura militar do Brasil os presidentes ficavam cinco anos cada no poder, havia um rodízio entre os generais. Médici, Geisel, Figueiredo, Castelo Branco se alternavam e o país vivia sob uma ditadura. Portanto, não é o tempo de permanência no poder que define alguma coisa, mas sim os métodos e procedimentos de como se democratiza a vida.

A democracia não é um regime perfeito; existem problemas na Venezuela, nos EUA e nos países europeus. Cada lugar tem uma democracia funcionando à sua maneira e a Venezuela é um país em que há separação de poderes, a imprensa trabalha livremente, os direitos civis estão assegurados etc.

Pessoalmente, acho que mesmo com essa possibilidade de reeleições infinitas é positivo que haja uma alternância no poder, que surjam novas lideranças. E reitero que não é uma reeleição ou não que definirá a qualidade de uma democracia, mas sim a dinâmica do dia-a-dia, da luta política e também o surgimento dessas novas lideranças.

CC: Mas o que pensa dos planos de continuidade do Chávez, especificamente, que já aventou até mesmo a hipótese de tentar ficar no poder até 2039?

GM: Não é um problema sério, pois ele pode perder as eleições também. A oposição teve 45% dos votos. Não é uma eleição que representa uma superioridade histórica, de 80%, 90%. E essa história pode se reverter. Como em 2007.

É um direito dele ficar mais tempo, mas não é a mera intenção que definirá isso.

CC: Há algum aspecto positivo nesse continuísmo para a Venezuela e a América Latina?

GM: Eu pessoalmente não acho que o melhor seja a permanência de alguém por muito tempo no poder, é muito bom que haja disputa. Mas isso está garantido na Venezuela, pois não ficou estabelecido que o Chávez ficará no poder até 2039.

Porém, até aqui seu governo foi extremamente positivo para a Venezuela e também para a América Latina. Os indicadores sociais subiram, os salários reais aumentaram, o desemprego caiu... Tudo também foi muito favorecido, obviamente, pela alta do petróleo nos últimos 4, 5 anos, até meados do ano passado.

O grande problema, e por isso o Chávez colocou a votação em jogo agora, é o cenário futuro, de médio prazo, que se apresenta difícil. Para os demais países também, mas no caso da Venezuela há o problema da dependência do petróleo, de uma economia extrativista, cuja extração desse fóssil responde por mais de 70% das exportações do país. A queda do seu preço acarretará sérios problemas, reduzindo os recursos do Estado.

Portanto, os serviços estatais, as missões de bairro, a própria gestão da coisa pública sofrerão muitas dificuldades por conta dessa baixa do petróleo. Eis o grande problema.

Na conjuntura latino-americana a crise econômica coloca uma sinuca para os países da região. Todos os países exportadores de commodities sofrerão conseqüências graves por conta da queda de seus preços.

Os governos progressistas da região estiveram associados a um período de bonança, crescimento e melhoria de vida. A grande incógnita é como será a partir de agora com os resultados da crise e quais serão as conseqüências políticas na Bolívia, Venezuela, Paraguai, Equador e também Brasil.

CC: A emenda não é perigosa no sentido de que, em caso de reviravolta política, mesmo a longo prazo, pode se tornar um instrumento valioso para um governo antipopular?

GM: Sim e não. Porque se for um governo que se submete a eleições, está dentro da regra do jogo.

Quero destacar que não se aumentou o mandato do Chávez até 2039, não foram destruídos os partidos de oposição, que, aliás, está mais ativa no plano institucional do que antes. Isso porque ela aderiu ao jogo institucional, mostrando sua força em 2007, 2008 e agora também.

A democracia está funcionando, e muito por conta de o governo Chávez ter aumentado a participação das pessoas nesse processo.

O número de votantes aumentou praticamente 20% entre 1998 e 2009, um crescimento bem superior ao próprio aumento proporcional da população. A abstenção caiu nos últimos anos, e em grande parte porque a oposição também se inseriu no jogo democrático.

Como o voto não é obrigatório, o governo chama seus apoiadores para votar, mas eles podem não ir. O fato de existir um aumento da votação significa que as pessoas estão mais interessadas em participar do processo político. Não é só uso da máquina, como diz a imprensa. Os dois lados fizeram força para trazer seus eleitores e a disputa se deu voto a voto.

CC: Você acredita, de todo modo, que houve um abuso no uso da máquina governamental por parte do governo?

GM: Não posso afirmar, pois não estive lá. No entanto, pelo que conversei com algumas pessoas, se, de um lado, o governo usa a máquina oficial, a oposição tem à sua disposição todos os canais privados, o capital financeiro e os ricos, todos alinhados a ela. Cada um lançou mão de todos os recursos que tinha ao seu alcance.
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Gabriel Brito é jornalista.
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Fonte: Correio da Cidadania

18/02/2009

Nasce na França um novo partido anticapitalista

Novo partido reúne maioria da Liga Comunista Revolucionária (LCR), que aprovou sua própria dissolução para criar nova organização, além de militantes comunistas, socialistas e ecologistas. Segundo um dos principais líderes do NPA, as referências programáticas do novo partido são a ruptura com o capitalismo e a independência total em relação ao Partido Socialista francês. "Esquerda da esquerda" francesa acredita que já tem 15% de votos.
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Louis Weber (*)
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O Novo Partido Anticapitalista (NPA) teve seu congresso fundador com a presença de Olivier Besancenot entre 5 e 8 de fevereiro de 2009. Na véspera, a Liga Comunista Revolucionária (LCR) tinha votado sua dissolução, com 87% de votos, depois de quarenta anos de existência. Mas não se trata de uma simples mudança de nome. O NPA não aderirá, por exemplo, à Quarta Internacional (trotskista). O partido pretende se enraizar especialmente dentre os jovens para quem a "base de adesão são aqueles a quem Sarkozy chama de "ralé" e que reconhecem Besancenot como a única personalidade de esquerda de verdade", como explica Alain Krivine, o líder histórico da LCR.
A partir de agora, o NPA conta com 9000 adesões, quer dizer, três vezes mais que a LCR, que chegava a ter pouco mais de 3000 membros. Para continuar a alargar sua base, o NPA quer "seguir o melhor das tradições do movimento dos trabalhadores, sejam elas trotskistas, socialistas, comunistas, libertárias, guevaristas, ou envolvidas na ecologia radical", como o afirma Olivier Besancenot. A referência identitária será portanto menos uma doutrina política que a "ruptura com o capitalismo" e a "independência total do Partido Socialista".Essa última questão esteve no centro das preocupações da minoria "Unir", da LCR, que votou contra a sua dissolução, e para quem esta é a única maneira de expressar sua oposição à criação do NPA nas condições fixadas pela direção. Essa questão está também no centro das discussões das forças políticas que, no contexto francês, constituem a esquerda da esquerda, quer dizer, recusam qualquer acomodação com o liberalismo dominante na França e na Europa.
De que isso se trata?A esquerda da esquerda está longe de ser uma quantidade negligenciável no plano eleitoral: uma pesquisa recente acaba de mostrar que se ela apresentasse listas unidas nas próximas eleições para o Parlamento Europeu (em junho de 2009), podia esperar, mesmo antes de fazer campanha, algo como 15% dos votos. O Partido Comunista e o novo Partido de Esquerda fundado por Jean-Luc Mélenchon, que deixou o Partido Socialista na ocasião do recente congresso do partido em novembro de 2008, de agora em diante já decidiram constituir uma frente de esquerda para essas eleições. A maioria dos grupos e coletivos que foram criados na batalha de 2005 para rejeitar o projeto do tratado constitucional europeu estão prontos a se juntar a essa Frente, cuja campanha será baseada na recusa absoluta da Europa liberal atual e na demanda por uma reorientação radical da construção européia.
Mas as discussões com o NPA ainda não alcançaram e receiam um pouco a volta do cenário desastroso das eleições presidenciais de 2007, com pouco menos de seis candidatos reivindicando o antiliberalismo. Nenhum dentre eles obteve mais do que 4% dos votos.
Qual a dificuldade, agora? A nascente frente de esquerda não tem a intenção de fazer qualquer acordo com o Partido Socialista para as eleições européias. Mas "a independência total do Partido Socialista" defendida pelo NPA queria dizer que o Partido Comunista, por exemplo, renuncia às alianças que lhe permitem participar, com os socialistas e outros, da gestão da quase totalidade das regiões francesas e de numerosas prefeituras. Esse tipo de aliança é recusada por diversas razões, mas notadamente porque o NPA não concebe suas ações políticas sem buscar exercer as responsabilidades políticas. O que nao é concebível, no contexto francês, sem aliança com os socialistas, que é o que o NPA recusa neste momento.
Pureza revolucionária e recusa de pôr as "mãos na graxa" da gestão? Trata-se de se beneficiar da notável popularidade de Olivier Besancenot e de assim legitimar o NPA no plano político? Pretexto para se apresentar apenas às eleições européias, levando em conta as vantagens simbólicas e materiais que um mandato parlamentar europeu viabiliza? Posição de negociação com os outros componentes da esquerda da esquerda, antes de um acordo ou de uma posição de princípio durável? O futuro permitirá a resposta a essas questões.
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(*) Louis Weber é membro da Attac/Franca e secretário de redação da revista de sociologia Savoir/Agir.
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Tradução: Katarina Peixoto
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Fonte: Agência Carta Maior

A crise do estado de confiança

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Por Guilherme Delgado
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O estado de confiança é a base sobre a qual repousa a economia moderna, porque dele depende a expectativa dos detentores da riqueza social relativamente aos ganhos futuros, derivados da posse dos seus ativos. Abalado o estado de confiança, advêm as crises recessivas; rompido de maneira mais radical esse estado, o sistema entra em profunda incerteza sobre o futuro, afetando essencialmente a capacidade empresarial de avaliação dos patrimônios pré-existentes e inibindo a criação de novos pela ação do investimento privado. Provavelmente é esse estado de ruptura radical que ora afeta a economia mundial, especialmente a norte-americana.

Os conceitos de confiança, esperança - da qual a expectativa em relação ao futuro é uma espécie de "derivativo" econômico - e incerteza são todos externos aos chamados fundamentos clássicos e neoclássicos da ciência econômica. É precisamente por isso que nas crises do "estado de confiança", em geral, soçobram os especialistas do pensamento convencional e abrem-se novas janelas para os críticos e heterodoxos. E dentre estes eu incluiria os filósofos e teólogos, que certamente têm algo de importante a refletir sobre as condições da possibilidade de reestruturação do estado de confiança na economia, sem o que não haverá luz no final do túnel.

Em recente artigo na revista "Carta Capital", o ex-ministro Delfim Neto, que sempre foi um heterodoxo em economia, aborda a questão da recuperação do estado de confiança mediante tratamento de choque, pela injeção maciça de recursos públicos e regulação do estado keynesiano, nos marcos pragmáticos da política econômica dos anos do pós-guerra. Aparentemente, na visão do ex-deputado Delfim Neto, o capitalismo (uma classe empresarial protagonista, sob a égide da propriedade privada e de um Estado garantidor dos contratos) seria uma construção histórica para a eternidade, onde as crises intermitentes do estado de confiança, ao fim e ao cabo, implicariam no seu aperfeiçoamento e fortalecimento.

Mas a melhor abordagem sobre a crise, dentre as dezenas de artigos e ensaios diários da mídia, encontrei-a em artigos recentes do filósofo e teólogo Padre Manfredo Oliveira (Boletim Rede, números de novembro de 2008 e janeiro de 2009). Comentando as teses do deputado Delfim Neto e indo mais a fundo, Padre Manfredo nos pergunta sobre a natureza da crise atual: uma ruptura profunda do "estado de confiança", na linguagem dos economistas, ou uma crise de sentido da vida social (na avaliação de Padre Manfredo)?

Em quaisquer dos sentidos que se defina esta crise, o importante é que ela não se resolverá sem que possamos ensaiar novos caminhos "para nos conduzir a outros sentidos para a vida humana, para sua convivência no mundo humano, para seu relacionamento com a natureza, para sua comunhão com o Sagrado" (Boletim Rede nº 199 – janeiro de 2009 – pág.12).

Traduzindo em linguagem de economista heterodoxo esse novo sentido do convívio humano, por exclusiva responsabilidade do autor deste artigo, destaco três aspectos:

l) Atenção aos anseios por igualdade social;
2) Respeito à natureza e às exigências da sustentabilidade do meio ambiente;
3) Atendimento às necessidades humanas básicas, promotoras da liberdade aos pobres do mundo. Sem atenção a esses critérios, não haveria porta de saída duradoura à solução da crise.

Voltando à problemática inicial, não é provável que o "estado de confiança" na economia mundial se restabeleça, para novamente voltarmos a trilhar os mesmos caminhos que o mundo percorreu desde a grande crise dos anos 30. E enquanto não resolvermos ou criarmos condições para um acordo global sobre o futuro da convivência humana, prevalecerá uma longa temporada de incerteza nas relações econômicas internas e internacionais. Esse interregno foi terrível dos anos 30 ao final da Segunda Guerra, impregnado por guerras e devastações, no pior calvário do século XX.

Como isto se resolverá no século XXI é a grande questão que nos está posta pela história contemporânea, que não é predeterminada, para desespero dos fundamentalistas.

Guilherme Costa Delgado, economista do IPEA, é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
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Fonte: Correio da Cidadania

Especialista em geopolítica, Parag Khanna diz que a hegemonia dos EUA expirou. Agora é disputar o mundo, corpo a corpo, com novas potências


O indiano Parag Khanna, de 30 anos, é pesquisador sênior do American Strategy Program (Programa de Estratégia Americano) da New American Foundation. Durante dois anos, viajou por 45 países localizados em regiões estratégicas do planeta, como Europa Oriental, Ásia Central, América do Sul, Oriente Médio e Sudeste Asiático. Parag queria saber como esses lugares, que chama de países do Segundo Mundo, reagem ao crescimento da China e da União Européia e ao declínio dos Estados Unidos. Suas conclusões estão no livro The Second World: Empires and Influence in the New Global Order (em tradução livre, “O Segundo Mundo: Impérios e Influência na Nova Ordem Global”), que será lançado no Brasil pela Editora Intrínseca no segundo semestre deste ano. O artigo abaixo, publicado em The New York Times, foi adaptado do livro.

Se você ligar a TV hoje e pensar que está em 1999, será perdoado. Democratas e republicanos discutem onde e como intervir, se devem agir sozinhos ou com aliados e que tipo de mundo os Estados Unidos deveriam liderar. Os democratas acham que podem apertar o botão “reiniciar”. Os republicanos acreditam que o caminho é o moralismo apoiado pela força. É como se a primeira década do século 21 não tivesse existido - e quase como se a própria história não existisse. Mas a distribuição do poder se alterou de maneira fundamental ao longo dos dois mandatos presidenciais de George W. Bush graças a suas políticas e, mais significativamente, apesar delas. Talvez a melhor maneira de entender como a história avança rápido seja olhar adiante.

O ano é 2016 e o governo de Hillary Clinton, John McCain ou Barack Obama se aproxima do fim do segundo mandato. Os EUA se retiraram do Iraque, mas mantêm cerca de 20 mil soldados no Estado independente do Curdistão, navios de guerra ancorados em Bahrein e uma presença aérea no Catar. O Afeganistão está estável. O Irã é uma potência nuclear. A China absorveu Taiwan e amplia sua presença naval no Pacífico e, a partir do porto paquistanês de Gwadar, no Mar Arábico. A União Européia abrange bem mais de 30 membros e conta com o fornecimento seguro de petróleo e gás do norte da África, da Rússia e do Mar Cáspio, assim como quantidades substanciais de energia nuclear. A posição dos EUA no mundo continua em constante declínio.

Por quê? Nossa missão não era recuperar os laços com a ONU e reafirmar para o mundo que os EUA podem - e devem - conduzi-lo à segurança e à prosperidade coletivas? De fato, a imagem dos EUA pode ou não ter melhorado, mas isso significa pouco. Condoleezza Rice declarou que os EUA não têm “inimigos permanentes”, mas também não têm amigos permanentes. Muitos viram as invasões do Afeganistão e Iraque como símbolos de um imperialismo americano global; na verdade foram sinais de estresse excessivo. As despesas debilitaram as Forças Armadas americanas e cada asserção de poder deixou o país com menos resistência contra redes terroristas, grupos insurgentes e armas “assimétricas”, como os homens-bomba. O momento unipolar dos EUA inspirou contramovimentos financeiros e diplomáticos para impedir os americanos de construírem uma ordem mundial alternativa. Essa nova ordem global chegou e é muito pouco o que Hillary, McCain ou Obama possam fazer para conter seu crescimento.

No melhor dos casos, a fase unipolar dos EUA durou toda a década de 90, mas esse também foi um período sem rumo. O “dividendo da paz” pós-Guerra Fria nunca se transformou numa ordem liberal global sob a liderança americana. Agora, em vez de sentar sobre o globo, estamos competindo e perdendo, num mercado geopolítico, ao lado de outras superpotências: União Européia e China. Essa é a geopolítica no século 21: as novas Big Three (As Três Grandes). Não a Rússia, um espaço cada vez mais administrado pela Gazprom.gov. Não a Índia, décadas atrás da China em desenvolvimento e apetite estratégico. As Big Three estabelecem as regras - as suas regras -, e nenhuma delas predomina. Os outros devem escolher quem seguir neste mundo pós-americano.

Em eras anteriores, o equilíbrio esteve entre potências européias que partilhavam uma cultura. A Guerra Fria não foi realmente uma batalha Leste/Oeste; foi uma disputa sobre a Europa. Hoje, pela primeira vez na história, o que temos é uma batalha multipolar, de civilizações múltiplas.

Em Bruxelas, capital da Europa, tecnocratas, estrategistas e legisladores entendem cada vez mais que sua função é manter o equilíbrio global entre EUA e China. Os europeus jogam dos dois lados e, se atuam bem, os benefícios são enormes. É uma tendência que sobreviverá ao presidente francês Nicolas Sarkozy, autodenominado “amigo dos EUA”, e à chanceler alemã Angela Merkel, independentemente de ela visitar o rancho de Crawford. O fato de a Europa ainda não ter um exército comum pode tranqüilizar os conservadores americanos; a questão é que a Europa não precisa de um. Os europeus usam a inteligência e a polícia para prender radicais islâmicos, a política social para tentar integrar populações muçulmanas rebeldes e a força econômica para incorporar a antiga União Soviética. O investimento anual europeu na Turquia também cresce, trazendo-a mais perto da União Européia. E a cada ano um novo oleoduto é aberto, transportando petróleo e gás da Líbia, Argélia ou Azerbaijão para a Europa. Que outra superpotência cresce na média de um país por ano, com outros esperando na fila e implorando para se juntar?

A EUROPA É DE VÊNUS

Numa frase famosa, Robert Kagan disse que os EUA são de Marte e a Europa, de Vênus, mas na realidade a Europa é mais Mercúrio - carregando consigo uma enorme carteira de dinheiro. O mercado da União Européia é o maior do mundo, as tecnologias européias cada vez mais estabelecem o padrão global e os países europeus fornecem a maior ajuda ao desenvolvimento. Muitos americanos zombaram da introdução do euro, alegando que levaria o projeto europeu ao colapso. Hoje, porém, os exportadores de petróleo do Golfo Pérsico convertem seus ativos financeiros em euro, e o presidente Mahmoud Ahmadinejad propôs à Opep que o preço do seu petróleo não seja mais cotado em dólares. O presidente Hugo Chávez também sugeriu euros. Não ajudou o fato de o Congresso expor suas cores protecionistas bloqueando o acordo sobre os portos de Dubai em 2006. Com Londres voltando a ser a capital financeira do mundo, em termos de registros de ações na sua Bolsa, não surpreende que os novos fundos de investimentos estatais da China instalem ali os seus escritórios, e não em Nova York. Ao mesmo tempo, o quinhão de reservas cambiais globais dos EUA caiu para 65%. Gisele Bündchen exige ser paga em euros, enquanto que Jay-Z se afogou em notas de 500 euros num vídeo recente.

Enquanto os EUA se atrapalham na construção de uma nação, a Europa aplica seu dinheiro e capital político em países periféricos que entram na sua órbita. Muitas regiões pobres do mundo perceberam que querem o sonho europeu, não o americano. A África deseja uma União Africana como a Européia. No Oriente Médio, os ativistas almejam uma democracia parlamentar como a da Europa, não um governo no estilo americano. Muitos estudantes estrangeiros rechaçados depois de 11 de setembro estão hoje em Londres e Berlim. O número de chineses estudando na Europa é duas vezes maior do que nos EUA. Nós não os educamos, assim não podemos reivindicar seus cérebros ou sua lealdade como ocorreu em décadas passadas. De maneira geral, os EUA controlam instituições herdadas que poucos parecem querer - como o Fundo Monetário Internacional -, enquanto a Europa cria instituições sofisticadas, de acordo com o seu modelo. Os EUA têm dificuldades mesmo quando dominam reuniões de cúpula, como a malograda Área de Livre Comércio das Américas (Alca), quando não são sequer convidados, como ocorreu com a nova Comunidade do Leste da Ásia, a resposta da região à APEC dos Estados Unidos.

IMPÉRIO DO MEIO

A Comunidade do Leste Asiático é um exemplo de como a China também está ocupada em restaurar seu lugar como Império do Meio. Por todo o globo envia dezenas de milhares dos seus próprios engenheiros, construtores de hidrelétricas, especialistas em ajuda ao desenvolvimento e militares dissimulados. Na África, a China não é apenas uma compradora de energia; também faz grandes investimentos estratégicos no setor financeiro. O mundo encoraja sua ascensão espetacular, evidenciada pela fatia das operações comerciais no seu PIB. E ela está exportando armas em quantidades que lembram a União Soviética durante a Guerra Fria, encurralando os EUA, ao mesmo tempo que preenche os vazios que consegue encontrar. Todos os países considerados renegados pelos EUA desfrutam de uma corda salva-vidas estratégica, econômica ou diplomática da China, e o Irã é o exemplo mais destacado.

Sem dar um tiro, a China faz nas suas periferias ocidental e sul o que a Europa consegue a leste e a sul do continente. Auxiliada por uma diáspora de 35 milhões de pessoas bem colocadas nas prósperas economias do Leste da Ásia, surgiu uma Esfera de Co-Prosperidade da Grande China. Como os europeus, os asiáticos se afastam das incertezas econômicas dos EUA. Sob patrocínio japonês, pretendem erigir seu próprio fundo monetário regional, enquanto a China reduziu as tarifas e aumentou os empréstimos para seus vizinhos do Sudeste Asiático. O comércio dentro do triângulo formado por Índia, Japão e Austrália - do qual a China é o centro - ultrapassou as trocas comerciais através do Pacífico.

Ao mesmo tempo, um grupo de instituições diplomáticas e de segurança asiáticas vem sendo criado de dentro para fora, e com isso o domínio dos EUA da Orla do Pacífico tem diminuído. Da Tailândia à Indonésia e à Coréia, nenhum país - amigo dos EUA ou não - deseja que tensões políticas perturbem seu crescimento econômico. É um fenômeno curioso: pequenos Estados-nação asiáticos precisam se equilibrar frente à próspera China, mas cada vez mais cerram fileiras em torno dela, pelo orgulho cultural asiático e pela compreensão da realidade histórico-cultural do predomínio chinês. E nos antigos países soviéticos da Ásia Central a China é o novo peso pesado, atraindo para sua órbita microestados quase extintos como Quirguistão e Tajiquistão, além do Casaquistão. A Organização de Cooperação de Xangai açambarca esses homens fortes da Ásia Central, China e Rússia e poderá se tornar a “OTAN do Leste”.

As Big Three são, no final, as Aminimigas. A geopolítica do século 21 vai ser semelhante ao 1984 de George Orwell, mas, em vez de três potências mundiais (Oceania, Eurásia e Leste da Ásia), teremos três pan-regiões periféricas, zonas longitudinais dominadas pelos EUA, Europa e China. Cada pan-região pode ser auto-suficiente e criar uma base de poder a partir da qual pode se introduzir no terreno alheio. Mas, num mundo globalizado e que vem encolhendo, nenhuma geografia é sagrada. Aberta ou despercebidamente, China e Europa irão se intrometer no domínio dos EUA, China e EUA competirão pelos recursos africanos na periferia sul da Europa, e EUA e Europa procurarão tirar proveito do rápido crescimento econômico de países dentro da esfera de influência da China. A globalização é a arma escolhida. O principal campo de batalha é o que chamamos de “Segundo Mundo”.

Existem muitas estatísticas que ainda afirmam a predominância global dos EUA: as despesas militares, a participação na economia global e similares. Mas existem estatísticas e existem tendências. Para compreender como o poder americano declina rapidamente, passei os últimos dois anos viajando por cerca de 40 países nas cinco regiões mais estratégicas do planeta. São países que não estão no centro do Primeiro Mundo da economia global, nem na periferia do terceiro. Ficando ao lado e entre as Big Three, são Swing States (Estados indefinidos), que vão determinar quais superpotências estarão em vantagem na próxima geração da geopolítica.

Os países do Segundo Mundo considerados chave, na Europa Oriental, Ásia Central, América do Sul, Oriente Médio e Sudeste Asiático, são mais do que apenas “mercados emergentes”. Se incluirmos a China, eles detêm a maior parte das poupanças e reservas cambiais e seu poder de gasto os transforma nos mais importantes novos mercados de consumo e motores do crescimento global - não substituindo, mas também não dependendo dos EUA. Os países do Segundo Mundo estão se tornando rapidamente centros de petróleo e madeira, manufatura e serviços, empresas aéreas e infra-estrutura - tudo num mercado geopolítico em que sua lealdade está para ser conquistada por qualquer das Big Three, e todos eles ao mesmo tempo. Têm importância pelo seu peso econômico, estratégico ou diplomático, e a sua decisão de pender na direção dos EUA, da União Européia ou da China tem grande influência sobre o que outros, na sua região, decidirão fazer.

Comecemos com o caso mais difícil: a Rússia. Aparentemente estabilizada sob a oligarquia Kremlin-Gazprom, por que não é uma superpotência, mas um Estado do Segundo Mundo indefinido? Apesar de toda a sua musculatura, a Rússia também está desaparecendo. Sua população declina a uma taxa de meio milhão de cidadãos por ano, ou mais, o que significa que não será muito maior do que a Turquia por volta de 2025, espalhada por uma região tão vasta que, como país, não terá mais sentido. As migrações forçadas de povos da Sibéria, na era soviética, hoje retomam o curso oposto, com os filhos desses migrantes indo para o ocidente, para climas mais modernos e toleráveis. Esse espaço está sendo preenchido por centenas de milhares de chineses, literalmente devorando, saqueando, comprando e mais ou menos anexando o extremo oriente da Rússia por causa da madeira e outros recursos naturais. E a Europa, embora parecesse ameaçada pela diplomacia russa, baseada no petróleo, empreende uma aquisição a longo prazo do país, cuja economia continua quase do tamanho da França. Em particular, certas autoridades da União Européia dizem que a anexação da Rússia é apenas uma questão de tempo. Nas próximas décadas, longe de restaurar o poder da era soviética, ela terá de decidir se pretende existir pacificamente como um ativo para a Europa, ou se prefere ser uma petro-vassala da China.

A Turquia também é troféu emblemático do Segundo Mundo. Basta um simples olhar para sua resplandecente linha para perceber que, mesmo que não se torne um membro de fato da UE, é um país cada vez mais europeizado. Recebe mais de US$20 bilhões de investimentos estrangeiros e mais de 29 milhões de turistas a cada ano, a maioria europeus. Noventa por cento da diáspora turca vive na Europa Ocidental e envia para casa mais de US$ 1 bilhão por ano na forma de investimentos e remessas em dinheiro. Esse capital vem financiando o desenvolvimento para o leste, com novos projetos de construção, abertura de fábricas e escolas. Com a entrada da Romênia e da Bulgária na União Européia há um ano, a Turquia hoje, fisicamente, faz fronteira com a UE, simbolizando como o país se torna parte da superpotência européia.

E O CASAQUISTÃO?

Diplomatas ocidentais têm familiaridade histórica, embora dramática e tumultuada, com a Rússia e a Turquia. E no que diz respeito a esse grupo de países sem saída para o mar, ricos em petróleo e governados por autocratas? Enquanto a China compra mais petróleo do Casaquistão e os EUA tentam realizar acordos de defesa com esse país, a Europa oferece investimentos sustentados. Um exemplo de até onde os estrangeiros podem chegar para manter boas relações com o presidente Nursultan Nazarbayev é a atual negociação entre um consórcio de gigantes ocidentais do setor energético e a empresa petrolífera estatal do Casaquistão para a abertura de um enorme campo de petróleo em Kashagan, no Mar Cáspio. O consórcio injeta US$ 4 bilhões, além de uma grande transferência de ações, como indenização pelos atrasos na exploração e produção - e assim mesmo o Casaquistão não está satisfeito. A lição oferecida pelo Casaquistão, e pelo seu vizinho também estratégico mas bem menos previsível, o Usbequistão, é de o quão inconstante o Segundo Mundo pode ser, provocando dores de cabeça e maremotos em todas as direções.

A globalização levou o mercado geopolítico direto para o quintal dos EUA, corroendo rapidamente dois séculos de Doutrina Monroe. Na verdade, os EUA só tiveram a última palavra na América Latina quando seus vizinhos do sul ainda careciam de uma visão própria. Hoje têm pelo menos dois contestadores não americanos: a China e Chávez. Hugo Chávez, o coronel do país, pode demorar décadas para ser derrubado ou pode ser morto, mas blefou com os EUA e venceu, mudando as regras das relações Norte-Sul no hemisfério ocidental. Financiou líderes de esquerda do continente, ajudou a Argentina e outros a pagar e expulsar o FMI e patrocinou pelo continente um programa de troca de petróleo, gado, trigo e funcionários públicos, lembrando àqueles que o desprezam que pode fazer frente à grande potência do norte. Chávez não tem se apoiado apenas nos altos preços do petróleo. Ele conta com o apoio tácito da Europa, que ainda é a maior investidora do país, e a intervenção prática da China, que vem restaurando as torres de perfuração de petróleo dilapidadas da Venezuela.

Mas o desafio que Chávez representa para os EUA é ideológico, enquanto que o deslocamento do Segundo Mundo é realmente estrutural. É o Brasil que ressurge como o líder natural da América do Sul. Junto com Índia e África do Sul, assumiu a liderança nas negociações sobre o comércio global, contestando as tarifas sobre o aço dos EUA e os subsídios agrícolas da Europa. Geograficamente, o Brasil está tão próximo da Europa como dos EUA e é tão ávido para fabricar carros e aviões para os europeus como para exportar soja para os americanos. Além disso, embora tenha sido um leal aliado dos americanos na Guerra Fria, não perdeu tempo para declarar uma “aliança estratégica” com a China. Suas economias se complementam, com o Brasil vendendo ferro, minério, madeira, zinco, carne, leite e soja para a China, e a China investindo nas hidrelétricas, siderúrgicas e fábricas de sapato brasileiras. As ambições de ambos podem em breve alterar a própria geografia das suas relações, com o Brasil se empenhando para a construção de uma Estrada Transoceânica do Amazonas, através do Peru, para a Costa do Pacífico, facilitando o acesso para os cargueiros chineses. Durante séculos a América Latina nunca foi vista em primeiro lugar, mas no século 21 todos competem pelos seus recursos, e ninguém está muito distante.

O Oriente Médio, que se estende do Marrocos ao Irã, fica entre os centros de influência das Big Three e tem o maior número de Estados indefinidos. Não há dúvida de que a distensão com a Líbia, intermediada pelos EUA e Grã-Bretanha depois que Muamar Kadafi declarou que abandonaria suas iniciativas nucleares em 2003, em parte foi motivada pela crescente demanda de energia de um vizinho mediterrâneo próximo. Mas Kadafi não vendeu tudo. Ele e seus assessores parcelaram os contratos de produção, dividindo-os entre as diversas gigantes americanas, européias, chinesas e asiáticas da área petrolífera. Consciente da exploração do mundo árabe pelas empresas petrolíferas ocidentais, aumentou a pressão sobre os estrangeiros para dividirem mais a receita com seu governo, ajustando os contratos, arredondando os números à sua vontade e ameaçando com expropriações.

A Arábia Saudita, que por alguns anos continuará sendo a principal produtora de petróleo, está disponível para quem quiser. Nas últimas décadas, a participação americana nos investimentos diretos estrangeiros no reino saudita moldou decisivamente a política externa do país, mas hoje a monarquia mostra-se bem mais prudente, procurando atrair investimentos europeus e asiáticos. Mas não se engane: os EUA nunca foram todo-poderosos apenas por causa do seu predomínio militar. A influência estratégica precisa ter base econômica. Um importante denominador comum entre os principais países do Segundo Mundo é a necessidade de cada uma das Big Three injetar dinheiro onde está envolvida.

Apesar de todo o seu antagonismo histórico com a Arábia Saudita, o Irã também assume o papel de Estado indefinido. Sua diplomacia não só criou a discórdia entre EUA e União Européia no caso das sanções; também cortejou a China, nutrindo um relacionamento que remonta à Estrada da Seda. Hoje o Irã representa o quadrado final do jogo de amarelinha dos chineses, manobrando para chegar ao Golfo Pérsico sem depender do limitado Estreito de Málaca. Vários anos de negociações culminaram em dezembro com a Sinopec firmando um acordo para desenvolver o campo petrolífero de Yadavaran com mais investimentos da China. Quanto mais tempo durarem as negociações com a Agência Internacional de Energia, maior a probabilidade de o Irã manter-se auto-suficiente, sem investimentos ocidentais.

O interessante é que são exatamente os países produtores de petróleo muçulmanos - Líbia, Arábia Saudita, Irã, Casaquistão (grande maioria muçulmana) e Malásia - que parecem ter ampliado melhor seus alinhamentos, combinando as Big Three simultaneamente: obtendo o que desejam e ao mesmo tempo repelindo a intrusão de outros. Os EUA podem buscar aliados muçulmanos, pensando na sua imagem e na “guerra contra o terror”, porém esses mesmos países parecem fazer parte do que Samuel Huntington chamou de “conexão islâmico-confuciana”. Além disso, a China vem mantendo simultaneamente laços positivos com pares rivais regionais: Venezuela e Brasil, Arábia Saudita e Irã, Casaquistão e Usbequistão, Índia e Paquistão. A esta altura, os diplomatas ocidentais só tiveram coragem de denunciar, discretamente, as políticas de ajuda chinesas e suas alianças, mas estão longe de poder fazer algo a respeito.

Isso ocorre mais profundamente no Sudeste Asiático. Alguns dos mais dinâmicos países da região, como Malásia, Tailândia e Vietnã, desempenham o papel de pretendentes a superpotência com uma inteligência excepcional. Malásia e Tailândia ainda realizam exercícios militares conjuntos com os EUA, mas também compram armas e têm tratados de defesa assinados com a China, incluindo o Tratado de Amizade e Cooperação pelo qual as nações asiáticas comprometem-se a não se agredirem mutuamente. Como um diplomata malásio me explicou, sem um mínimo de gracejo, “criar uma comunidade entre os amarelos e pardos é fácil, mas não com os brancos”. Surpreendentemente, o Vietnã, envolvido em histórias violentas com EUA e China, é quem está mais ávido para firmar contratos de defesa com os americanos (e uma nova fábrica de microchips da Intel) para manter seu equilíbrio estratégico. O Vietnã também não pretende cair na esfera de influência de nenhuma superpotência.

O CINTURÃO ANTIIMPERIAL

O novo mapa multicolorido de influência é muito confuso. Mubarak (presidente do Egito), Musharraf (do Paquistão), Mahathir (da Malásia) e um conjunto de líderes do Segundo Mundo estabeleceram um novo padrão de proezas manipuladoras: todos dizem que os EUA são seus amigos, e ao mesmo tempo cortejam ativamente todos os lados.

Além disso, muitos países do Segundo Mundo estão bastante confiantes para formar cinturões antiimperiais, criando eixos diplomáticos, tecnológicos e comerciais do Brasil à Líbia, ao Irã e à Rússia. Os países do Segundo Mundo estão usando cada vez mais fundos soberanos (muitas vezes financiados pelo petróleo) equivalentes a trilhões de dólares para mostrar sua importância, chegando mesmo a intimidar empresas e mercados do Primeiro Mundo. Os Emirados Árabes Unidos (particularmente representado pela sua capital, Abu Dabi), a Arábia Saudita e a Rússia sobem rapidamente na escala dos grandes possuidores de reservas cambiais e dificilmente vendem suas ações de bancos ocidentais (que se tornaram baratas de repente) e empresas de petróleo. O fundo soberano de Cingapura segue o mesmo caminho.

O que observamos nestes e numa dezena de outros é que a globalização não é sinônimo de americanização. Enquanto os países europeus redistribuem a riqueza para manter padrões de vida de Primeiro Mundo, as empresas estatais dos países do Segundo Mundo ou rechaçam, ou se apoderam das empresas americanas, deixando seus funcionários sozinhos. A prioridade do Segundo Mundo não é tornar-se um novo EUA, mas vencer por qualquer meio.

A ascensão da China no Oriente e da União Européia no Ocidente alterou um globo que até recentemente gravitava em torno do pró ou antiamericano. À medida que os espíritos da Europa e da China se elevaram na direção de novos domínios de influência, o espírito americano enfraqueceu. A União Européia pode apoiar os princípios das Nações Unidas, que os EUA outrora dominaram, mas por quanto tempo conseguirá manter isso à medida que seus próprios padrões sociais se elevam bem acima desse denominador comum mínimo? E por que China e outros países asiáticos deveriam ser “participantes responsáveis”, nas palavras do ex-vice secretário de Estado, Robert Zoellick, numa ordem internacional liderada pelos americanos, quando eles não têm assento na mesa em que as regras são elaboradas? Mesmo com os EUA avançando aos tropeços na direção do multilateralismo, os outros estão saindo do jogo americano e seguindo suas próprias regras.

O auto-enganador universalismo do império americano - segundo o qual o mundo, intrinsecamente, necessita de um único líder e a ideologia liberal americana precisa ser aceita como base da ordem global - resultou, paradoxalmente, no fato de que os EUA são hoje uma superpotência cada vez mais isolada. Da mesma maneira que existe um mercado geopolítico, existe um mercado de modelos de sucesso para o Segundo Mundo copiar, e não apenas o modelo chinês de crescimento econômico sem liberalização política. Como observou o historiador Arnold Toynbee há meio século, o imperialismo ocidental uniu o globo, mas não garantiu que o Ocidente o dominasse para sempre - material ou moralmente. Apesar da “ilusão de imortalidade” que aflige os impérios globais, a única regra confiável da história são seus ciclos de ascensão e declínio, e, como Toynbee observou, a única direção do apogeu do poder é a da queda.

O que torna os EUA únicos nessa competição não são seus ideais democráticos liberais - a Europa hoje pode ser uma melhor representante -, mas sua geografia. O EUA estão sós, enquanto que Europa e China ocupam as duas extremidades da grande massa de terra continental eurasiana, o centro eterno de gravidade da geopolítica. Quando os EUA dominaram a Otan e lideraram um rígido sistema de alianças no Pacífico com Japão, Coréia do Sul, Austrália e Tailândia, conseguiram realizar a tarefa hercúlea de administrar o mundo do lado deles. Hoje, foram rejeitados pela União Européia e a Turquia, mal acolhidos em grande parte do Oriente Médio e perderam muito da confiança do Leste da Ásia. “Império fortuito” ou não, precisam rapidamente se adaptar a essa realidade. Manter o império não vale a pena, e a história promete que esse empenho será um fracasso. Já está fracassando.

O mundo seria ou não mais estável se os EUA conseguissem ser novamente aceitos como principal organizador? É muito tarde para se perguntar, porque a resposta já se revela aos olhos. Nem a China, nem a União Européia substituirão os EUA como líder único do mundo; porém, os três lutarão constantemente para conseguir influenciar sozinhos e se equilibrar um com o outro. Acredito que uma paisagem multicultural, complexa, repleta de desafios transnacionais, do terrorismo ao aquecimento global, é completamente inadministrável por uma única autoridade, sejam EUA ou Nações Unidas.

A globalização resiste a praticamente qualquer tipo de centralização. Em vez disso, o que se observa gradativamente nas negociações sobre mudanças climáticas (como em Bali, em dezembro) e precisamos ver mais, no campo das conversações sobre prevenção da proliferação nuclear e reconstrução de Estados falidos, é um sentido muito maior de divisão de trabalho entre as Big Three, uma divisão concreta do fardo, pois elas serão julgadas não pela sua retórica, mas pelas responsabilidades que assumirem. O arbitrariamente composto Conselho de Segurança não é lugar para se discutir uma divisão de trabalho como essa, tampouco qualquer dos órgãos multilaterais sobrecarregados de votações e opiniões dissonantes e irrelevantes. Os grandes temas devem ser resolvidos pelas Big Three entre elas.

17/02/2009

"Resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua ideologia falsária"

A perspectiva de uma fragmentação da economia global em estruturas hegemônicas regionais, lutando entre si, deveria despertar os dirigentes políticos, levá-los a deixar de dizer banalidades sobre restaurar a confiança e a fazer o que precisa ser feito para resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua falsária ideologia neoliberal. E sim, isso significa socialismo, nacionalizações, diretrizes estatais robustas, força de colaborações internacionais e uma nova arquitetura financeira internacional.
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Por David Harvey.
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Não há muitas vantagens em ver a crise atual como uma erupção superficial gerada por derivas tectônicas profundas no dispositivo espaço-temporal do desenvolvimento capitalista. As placas tectônicas agora estão acelerando seu deslocamento, e quase com toda segurança a probabilidade de que crises do tipo da atual, que vem ocorrendo mais ou menos desde 1980 se incrementará, tornando-se mais frequentes e mais violentas.
O modo, a forma, a espacialidade e o momento dessas erupções superficiais tornaram praticamente impossíveis de prever, mas se pode afirmar quase com certeza que vão se repetir com frequência e profundidade crescentes. Desse modo, há que se situar os acontecimentos de 2008 no contexto de uma agenda de maior densidade. Que essas tensões sejam internas à dinâmica capitalista (sem excluir acontecimentos danosos aparentemente externos, como uma pandemia catastrófica), é o melhor argumento, segundo disse Marx, “para que o capitalismo desapareça e se abra caminho para algum modo de produção alternativo e mais racional”. Começo com essa conclusão porque permanece me parecendo vital, para não dizer dramático, como venho dizendo durante anos em meus trabalhos, que a incapacidade para entender a dinâmica geográfica do capitalismo – ou ainda a consideração da dimensão geográfica como algo em certo sentido contingente ou epifenomênico – importa tanto como perder o fio condutor que permite compreender o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo e perder de vista possibilidades de construção de alternativas radicais.
Mas isso levanta uma dificuldade aguda que se acrescenta à análise, porque a tarefa de visar a inferir princípios universais com respeito ao papel da produção de espaços, deslocamentos e contextos ambientais na dinâmica do capitalismo a partir de um oceano de particularidades geográficas, amiúde voláteis, nos enfrenta constantemente. Sendo assim, é o caso de perguntar “como integrar a inteligência dos dados geográficos em nossas teorias da mudança evolutiva? Observemos mais detidamente as derivas tectônicas. Como será o mundo em 2025?Em novembro de 2008, pouco depois da eleição de um novo presidente, o Conselho de Inteligência Nacional dos EUA (NCIS, na sua sigla em inglês) publicou suas estimativas délficas sobre como seria o mundo em 2025. E pela primeira vez um organismo norte-americano quase oficial preveria que em 2025 os EUA, ainda que mantivesse seu papel de ator poderoso, senão de mais poderoso da política mundial, já não seria a potência dominante.
O mundo seria multipolar e menos monocêntrico, e o poder dos atores não-estatais cresceria. O informe admitia que a hegemonia dos EUA tinha tido suas idas e vindas no passado, mas agora seu predomínio econômico, político e até militar está se desvanecendo de maneira sistemática. Sobretudo (e vale a pena notar que o informe já estava pronto antes da implosão dos sistemas financeiro norte-americano e britânico), “a deriva sem precedentes que, no que concerne à riqueza e ao poder econômico relativo, observamos agora em direção Oeste-Leste seguirá seu curso”.Essa “deriva sem precedentes” inverteu a drenagem de riqueza que fluía inveteradamente do leste, do sudeste e sul da Ásia até a Europa e a América do Norte: uma drenagem que começou no século XVIII – e, desde que se chegou a perceber, lamenta-o o próprio Adam Smith em seu "A Riqueza das Nações" -, mas que se acelerou implacavelmente durante o século XIX.
O auge do Japão na década de 60 do século XX, seguido da Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong nos 70, e logo o rápido crescimento da China depois de 1980 (acompanhado, ato contínuo, do surgimento da industrialização na Indonésia, na Índia, no Vietnã, na Tailândia e na Malásia), alteraram o centro de gravidade do desenvolvimento capitalista, ainda que não sem incidentes (a crise financeira do leste e sudeste asiáticos em 1997-98 viu, rápida mas não abundantemente, mais uma vez fluir a riqueza até Wall Street e aos bancos europeus e japoneses). O deslocamento espacial da hegemonia econômicaA hegemonia econômica parece estar deslocando-se em direção a uma constelação de potências no leste asiático, e se as crises, como se tem argumentado, são momentos de reconfiguração radical do desenvolvimento capitalista, então o fato de que os EUA estejam em vias de financiar com enormes déficits a saída de suas dificuldades financeiras e o fato de que os déficits estejam sendo em grande medida cobertos por todos os países com excedentes poupados – Japão, China, Coréia do Sul, Taiwan e os Estados do Golfo – sugerem que estamos às portas de uma deriva desse tipo. Já ocorreram derivas dessa natureza na grande história do capitalismo.
Na conscienciosa revisão que Giovani Arrighi faz dessa deriva no seu livro "O Longo Século XX" podemos ver como a hegemonia se desloca desde as cidades-estado de Gênova e Veneza no século XVI a Amsterdã e Países Baixos no XVII, para concentrar-se na Grã Bretanha a partir do século XVIII, antes de que os EUA tomassem o controle depois de 1945. Arrighi destaca vários traços comuns a todas essas transições pertinentes a nossa análise. Cada deriva, observa Arrighi, deu-se na esteira de uma rotunda fase de financeirização (cita aqui com aprovação a máxima do historiador Braudel, segundo a qual a financeirização anuncia o outono de alguma configuração hegemônica). Mas cada deriva traz também consigo uma mudança radical de escala, desde as pequenas cidades-estado iniciais até a economia de proporções continentais dos EUA na segunda metade do século XX. Essa mudança de escala adquire sentido, tendo em conta a regra diretriz capitalista da acumulação sem trégua e do crescimento composto de ao menos um sempiterno 3%.Porém, as derivas econômicas, sustenta Arrighi, não estão determinadas na partida. Dependem da aparição de alguma potência economicamente capaz e política e militarmente disposta a desempenhar o papel de hegemon global (com as vantagens e desvantagens que isso traz consigo). A renúncia dos EUA em assumir esse papel antes da Segunda Guerra Mundial significou um interregno de tensões multipolares que propiciou a deriva bélica (a Grã Bretanha já não estava em condições de afirmar seu anterior papel hegemônico).
Muito depende também de como se comporte o antigo hegemon frente à diminuição de seu papel tradicional. Pode passar à história ou de maneira pacífica ou beligerante. Visto assim, mesmo se os EUA seguem mantendo um poder militar avassalador (particularmente, no espaço exterior) num contexto de declive de seu poder econômico e financeiro e de crescente míngua de sua autoridade moral e cultural criam-se cenários inquietantes para qualquer transição vindoura. Ademais, não é óbvio que o principal candidato a substituir os EUA, a China, tenha capacidade para ou vontade de afiançar-se em algum papel hegemônico, pois, ainda que sua população seja já bastante grande para arcar com os requisitos da mudança de escala, nem sua economia nem sua autoridade política (nem sequer vontade política) apontam para uma ascensão fácil ao papel de hegemon global. Dadas as divisões nacionalistas existentes, a idéia de que alguma associação entre as potências do leste asiático poderia cumprir a tarefa torna-se fartamente improvável. E o mesmo ocorre no caso de uma União Européia fragmentada e fraturada ou nas chamadas potências do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Razão pela qual resulta plausível a predição de que estamos diante de um novo interregno multipolar de interesses encontrados e em conflito. Derivas TectônicasPorém, a deriva tectônica que está deixando o predomínio e a hegemonia norte-americana dos últimos anos para trás é cada vez mais visível.
A tese de uma excessiva financeirização somada à tese da “dívida como principal sinal da hegemonia de uma potência mundial” encontrou um eco popular nos escritos de Kevin Phillips. As tentativas agora em curso de reconstruir o predomínio dos EUA mediante reformas na arquitetura do vínculo entre as finanças nacionais e globais parece que não está funcionando. Ao mesmo tempo, as exclusões impostas às tentativas da maior parte do resto do mundo de reconfigurar essa arquitetura provocarão com quase total segurança fortes tensões, quando não conflitos econômicos abertos. Porém, derivas tectônicas desse tipo não se produzem magicamente. Ainda que a geografia histórica de uma deriva de hegemonia, segundo a descreve Arrighi, manifeste uma clara pauta, e ainda que a história tenha deixado claro que essas derivas vêm sempre precedidas de períodos de financeirização, Arrighi não oferece uma análise profunda dos processos geradores dessas derivas. É verdade que menciona a “acumulação sem trégua”, e por conseguinte, a síndrome do crescimento (a regra de 3% do crescimento composto) como elementos críticos explicativos da deriva. Isso implica que a hegemonia se desloca com o curso do tempo, de entidades políticas pequenas (isto é, Veneza) a outras maiores (por exemplo, os EUA). Também argüi que a hegemonia tem que radicar naquela entidade política que produz o grosso do excedente (ou para a qual flui o grosso do excedente em forma de tributos ou exações imperialistas). De um produto global em torno de 45 bilhões de dólares em 2005, os EUA participam com 15 bilhões, o que o converte, por assim dizer, no principal acionista que domina e controla o capitalismo global, com capacidade para ditar (como é o caso de fazer em seu papel de acionista em chefe nas instituições internacionais como o Banco Mundial e o FMI) as políticas globais.
O informe do NCIS baseia parte de suas previsões na perda do predomínio paralela à manutenção de uma posição robusta na minguante participação no produto global dos EUA em relação ao resto do mundo, em geral e a China, em particular.Contudo, como o próprio Arrighi assinala, o curso político dessa deriva está muito longe de ser claro. A aposta dos EUA pela hegemonia global sob Woodrow Wilson durante e imediatamente depois da Primeira Guerra Mundial viu-se obstaculizada pelas preferências isolacionistas prevalecentes na tradição política nacional norte-americana (daí o colapso da Liga das Nações), e só depois da Segunda Guerra Mundial (na qual a população norte-americana não queria entrar, até que ocorreu Pearl Harbour) os EUA se liberou ao seu papel de hegemon global mediante uma política exterior bipartidarista, ancorada nos Acordos de Bretton Woods, que estabeleceram a forma de organizar a ordem internacional do pós-guerra (frente à Guerra Fria e à ameaça que um comunismo internacional em plena onda de propagação representava para o capitalismo).
Que os EUA vinham se desenvolvendo inveteradamente como um estado capaz em princípio de cumprir um papel de hegemon global tornou-se evidente desde os primeiros dias de sua caminhada como nação. Estavam preparados com as doutrinas oportunas, como a do “Destino Manifesto” (expansão geográfica em escala continental, eventualmente até o Pacífico e o Caribe, antes de tornar-se global, sem necessidade de conquistas territoriais) ou a Doutrina Monroe, que exigia das potências européias que deixassem em paz as Américas (a doutrina foi na realidade formulada pelo ministro britânico do exterior, Canning, na década de 20 do século XIX, e foi quase imediatamente seguida pelos EUA). Os EUA possuíam o dinamismo necessário para aspirar a uma crescente participação no produto global, e estiveram visceralmente comprometidos com uma ou outra versão do que se pode qualificar de maneira mais feliz como “mercado encurralado” ou capitalismo “monopólico”, sustentado por uma ideologia apologética do individualismo mais descarnado. De modo, pois, que há um sentido no qual se pode dizer que os EUA vinham se preparando, durante a maior parte de sua história, para o papel de hegemon global. A única coisa surpreendente nisso é o tempo que levou para cumprir esse projeto, e que foi a Segunda Guerra, não a Primeira, a ocasião que os levou finalmente a jogar esse papel, permitindo que os anos do entre-guerras fossem tempos de multipolaridade e competição caótica entre ambições imperiais, como as que agora teme vislumbrar o informe do NCIS para 2025. As derivas tectônicas agora em curso estão, contudo, profundamente influenciadas pela desigualdade geográfica radical nas possibilidades econômicas e políticas de responder à crise atual. Permitam-me ilustrar o modo como hoje se opera essa desigualdade pela via de um exemplo bastante plástico.
À medida que a crise iniciada em 2007 foi se aprofundando, muitos tomaram o partido de uma solução plenamente keynesiana como a única capaz de tirar o capitalismo global do desastre em que está agora metido. Com este objetivo, propuseram-se uma variedade de pacotes de estímulos e medidas de estabilização bancária. Muitas dessas propostas foram até certo ponto postas em prática em vários países e de maneiras diferentes, na esperança de fazer frente às dificuldades crescentes. O espectro de soluções oferecidas variava imensamente segundo as circunstâncias econômicas e os perfis imperantes na opinião pública (colocando, por exemplo, a Alemanha frente a França e a Grã Bretanha na União Européia).Mas pensemos, por exemplo, nas distintas possibilidades econômico-políticas abertas aos EUA e para a China e nas conseqüências potenciais tanto para a deriva da hegemonia como para o modo possível de resolver a crise. China, EUA e as soluções keynesianasNos EUA, qualquer tentativa de falar de uma solução keynesiana adequada tem sido condenada na partida, levantando-se barreiras econômicas e políticas praticamente impossíveis de derrubar. Para funcionar, uma solução keynesiana precisaria de financiamento massivo e duradouro, com déficit. Tem-se dito com razão que o intento de Roosevelt de regressar a um orçamento equilibrado em 1837-38 é o que voltou a afundar os EUA na depressão e que foi a Segunda Guerra que salvou a situação, e não o temerário projeto rooseveltiano de financiamento com déficit que foi o New Deal. Assim, pois, mesmo que as reformas institucionais e umas políticas mais igualitárias tenham posto os fundamentos da recuperação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o New Deal como tal fracassou a ponto de resolver a crise nos EUA.
O problema para os EUA em 2008-09 é que parte de uma posição de endividamento crônico com o resto do mundo (vem tomando empréstimos a um ritmo de mais de 2 milhões de dólares por dia nos últimos dez ou mais anos), e isso significa uma limitação econômica para as dimensões do déficit extra que agora pode permitir-se. (O que não foi um problema sério para Roosevelt, que começou com um orçamento limitado). Há também uma limitação geopolítica, posto que o financiamento de qualquer déficit extra depende da disposição de outras potências (principalmente do leste asiático e dos Estados do Golfo) em emprestar. Tendo em conta ambas as limitações, há que se tomar por certo que o estímulo econômico factível nos EUA não será nem o bastante amplo nem o bastante duradouro para subvencionar a tarefa de reabilitar a economia. Este problema é exacerbado pela relutância ideológica de ambos os partidos em aceitar os enormes montantes de gasto deficitário requeridos para sair da crise.Ironicamente, e ao menos em parte, porque a administração republicana anterior trabalhou de acordo com o princípio de Dick Cheney, segundo o qual “Reagan nos ensinou que os déficits não importam”. Como disse Paul Krugman, o primeiro advogado público de uma solução keynesiana desse contexto, os 800 bilhões de dólares votados com dentes arreganhados pelo Congresso em 2009, ainda que sejam melhores do que nada, estão muito longe de serem suficientes. Seria preciso uma cifra da ordem dos 2 trilhões de dólares, uma quantidade excessiva dado o nível atual do déficit estadunidense.
A única opção econômica possível seria mudar o débil keynesianismo dos gastos militares excessivos por um keynesianismo muito mais forte, voltado a programas sociais. Cortar pela metade o orçamento de defesa norte-americano (aproximando-o dos níveis europeus em termos percentuais ao PIB) poderia resultar tecnicamente útil. É o caso de dizê-lo: quem quer que proponha coisa semelhante cometerá suicídio político, dada a posição política mantida pelo Partido Republicano e por muitos democratas. A segunda barreira a ser derrubada é mais puramente política. Para funcionar, o estímulo tem de ser administrado de tal forma que se assegure seu gasto em bens e em serviços para que a economia recupere alegria. Isso significa que há que dirigir todas as ajudas a quem efetivamente delas fará uso e gastará recursos, quer dizer, as classes sociais mais humildes, porque as classes médias, postas a gastar algo, o mais provável é que o façam puxando a alça de valores de ativos (comprando casas hipotecadas que são executadas em leilões, por exemplo), e não comprando mais bens e serviços. Em todo caso, nos maus tempos muita gente tende a usar as receitas extraordinárias inopinadamente recebidos para cancelar dívidas ou para poupar (como ocorreu em muito boa medida com o reembolso de 600 dólares propiciado pela administração Bush no começo do verão de 2008).O que parece prudente e racional desde o ponto de vista do orçamento doméstico se torna danoso para o conjunto da economia. (Analogamente: os bancos tem procedido racionalmente ao servirem-se do dinheiro público recebido para enriquecerem ou para comprar ativos, antes que para emprestá-los). A hostilidade preponderante nos EUA a “disseminar a riqueza” e a gestionar qualquer ajuda pública que não sejam os cortes fiscais aos indivíduos vem do núcleo duro da doutrina ideológica neoliberal (focalizada, mas de modo algum confinada no Partido Republicano), segundo a qual “os lares sabem mais”. Essas doutrinas chegaram a gozar de ampla aceitação nos EUA, como se se tratasse de um evangelho, durante trinta anos de doutrinamento político neoliberal. Segundo se arguiu em outra ocasião, “agora, somos todos neoliberais”, no mais das vezes sem sabê-lo. Há uma aceitação tácita, por exemplo, de que a “repressão salarial” - um componente chave do atual problema – é um “estado normal” das coisas nos EUA.
Uma das três patas de uma solução keynesiana – maior capacidade de negociação dos trabalhadores, salários em alta e redistribuição favorável para as classes baixas – é atualmente impossível do ponto de vista político nos EUA. A pura sugestão de que um programa assim equivalha a “socialismo” faz o establishment político tremer. Os trabalhadores organizados não são suficientemente fortes (depois de serem durante trinta anos massacrados pelas forças políticas), e não se vê nenhum outro movimento social amplo o bastante para pressionar por uma redistribuição a favor das classes trabalhadoras. Outro modo de alcançar objetivos keynesianos é o fornecimento de bens coletivos. Isso, tradicionalmente, tem implicado investimentos em infraestrutura física e social (os programas WPA [Works Progress Adminstration] dos anos 30 do século passado foram um precedente). Disso se segue a tentativa de incluir nos pacotes de estímulo programas para reconstruir e ampliar infraestruturas públicas de transporte e comunicações, energia e outras obras públicas em paralelo a um incremento do gasto em atenção sanitária, educação, serviços municipais, etc. Esses bens coletivos têm potencial para gerar multiplicadores tanto no emprego como na demanda efetiva de bens e serviços. Mas o que se presume é que esses bens entrariam, em dado momento, na categoria de “gastos públicos produtivos” (quer dizer, que estimulam um crescimento ulterior), não que se convertam numa série de “elefantes brancos” públicos que, como observou Keynes em seus dias, carecem de outra utilidade que não aquela de fazer as pessoas cavarem buracos para fechá-los logo em seguida.Em outras palavras, uma estratégia de investimentos em infraestrutura tem de orientar-se para a sistemática recuperação do crescimento de 3% através do metódico redesenho de nossa infraestrutura e dos nossos modos de vida urbanos. Isso não pode funcionar sem uma planificação estatal refinada, aliada a uma base produtiva já existente que possa aproveitar-se das novas infraestruturas.
Também aqui, o processo dilatado de desindustrialização experimentado pelos EUA nas últimas décadas, assim como a intensa oposição ideológica à planificação estatal (elementos esses incorporados por Roosevelt ao New Deal, e que persistiram até os anos 60, para serem abandonados quando do assalto neoliberal dos 80 a esse particular exercício de poder do Estado) e a óbvia preferência pelos cortes fiscais frente às transformações públicas das infraestruturas, torna impossível nos EUA a operação de uma solução permanente. Na China, por outro lado, dão-se realmente tanto as condições políticas como as econômicas para uma solução plenamente keynesiana, e há ali signos transbordantes de que essa será provavelmente a via a ser seguida. Para começar, a China possui uma grande reserva de excedente estrangeiro em dinheiro e isso torna mais fácil o financiamento da dívida partindo dessa base do que de um dos gastos da dívida já acumulada, como no caso dos EUA. Vale à pena notar também que desde meados dos 90 os “ativos tóxicos” (os empréstimos que não funcionam) dos bancos chineses – (algumas estimativas os situam nos 40% de todos os empréstimos em 2000) desapareceram da contabilidade bancária a mercê dos investimentos ocasionais de excedente em dinheiro procedente das reservas do comércio exterior.Os chineses tiveram em funcionamento durante muito tempo o equivalente a um programa TARP [o programa norte-americano de resgate bancário posto em prática nos últimos meses de 2008], e evidentemente sabem como manejá-lo (ainda que muitas das transações tenham a marca da corrupção).
Os chineses têm suficiente capacidade econômica para embarcarem num programa massivo de financiamento com déficit e dispõem de uma arquitetura financeira estatal centralizada apta, se lhe propuserem, a administrar esse programa com eficácia. Os bancos, durante muito tempo de propriedade estatal, que foram privatizados para atender às exigências da OMC (Organização Mundial do Comércio) podem vir a atrair capital e perícia estrangeiros, mas podem todavia serem facilmente submetidos à vontade do estado central, enquanto que nos EUA mesmo o mais longínquo signo de diretriz estatal, para não falar de nacionalização, dá motivo a todos os tipos de furores políticos. Analogamente, não há ali [China] a menor barreira ideológica para uma generosa redistribuição de recursos a favor dos setores mais necessitados da sociedade, ainda que possa haver necessidade de vencer os encouraçados interesses dos membros mais ricos do partido e de uma incipiente classe capitalista. A imputação segundo a qual isso seria tanto como o “socialismo”, ou inclusive até pior, o “comunismo”, apenas despertaria sorrisos divertidos na China. Mas a reaparição na China do desemprego em massa (de acordo com os últimos informes, a desaceleração dos últimos meses já teria gerado já 20 milhões de desempregados), assim como os indícios de um mal-estar social prolongado e aceleradamente crescente, forçarão seguramente o Partido Comunista chinês a empreender massivas redistribuições, estejam ou não ideologicamente convencidos da sua justiça.No começo de 2009, essa política redistributiva parece primeiramente destinada às regiões rurais atrasadas, para onde regressaram os trabalhadores emigrantes que perderam seus empregos, frustrados com a constatação da escassez de postos de trabalho nas zonas manufatureiras.
Nessas regiões, nas que faltam infraestrutura social e física, um investimento robusto de recursos por parte do governo central contribuirá para aumentar as receitas, para expandir a demanda efetiva e para dar o tiro de saída do longo processo de consolidação do mercado interno chinês. Em segundo lugar, há um forte desejo de investir massivamente em infraestrutura que ainda falta na China. - Em troca, os cortes fiscais só tem ali atrativos políticos – e ainda que seja possível que alguns desses investimentos terminem sendo “elefantes brancos”, a probabilidade de que seja assim ali é farta mas baixa, dada a imensa quantidade de trabalho de que se necessita para integrar o espaço nacional chinês e, assim, enfrentar-se o problema do desenvolvimento geográfico desigual entre as regiões costeiras de alto desenvolvimento e as províncias empobrecidas do interior.A existência de uma larga – ainda que problemática – base industrial e manufatureira necessitada de racionalização espacial torna mais provável que o esforço chinês entre na categoria do gasto público produtivo. No caso chinês boa parte do excedente pode ser canalizado até a produção futura de espaço, e isso mesmo admitindo que a especulação nos mercados imobiliários urbanos em cidades como Xangai, ou mesmo nos EUA, é parte do problema e não pode, por conseguinte, converter-se em parte da solução. Os gastos em infraestrutura, sempre que sejam feitos numa escala suficientemente grande, são de grande alento e servem tanto para canalizar o trabalho excedente como para reduzir as possibilidades de distúrbios sociais, contribuindo também, ademais, para impulsionar o comércio interno. Implicações internacionaisEssas possibilidades completamente distintas que os EUA e a China têm de propiciarem uma solução plenamente keynesiana guardam profundas implicações internacionais. Se a China emprega mais recursos procedentes de suas reservas financeiras para impulsionar seu mercado interno, como com quase total segurança vai se ver forçada a fazer por razões políticas, deixará menos recursos disponíveis para possíveis empréstimos aos EUA.
O descenso das compras de bônus do tesouro estadunidense terminará por forçar uns tipos de interesses mais altos, o que incidirá negativamente na demanda interna norte-americana, a qual, por sua vez e a menos que haja uma gestão meticulosa, poderia disparar o que todo mundo teme e que até agora conseguiu evitar: uma derrubada do dólar.Uma desvinculação paulatina dos mercados norte-americanos e a sua progressiva substituição pelo próprio mercado interno como fonte de demanda efetiva da indústria chinesa alterariam significativamente os equilíbrios de poder (um processo que, diga-se de passagem, estaria carregado de tensões, tanto para a China como para os EUA). A divisa chinesa se robustecerá necessariamente frente ao dólar (uma situação tão largamente pretendida como temida pelas autoridades norte-americanas), o que obrigará aos chineses a se basearem mais em seu mercado interno para a demanda agregada. O dinamismo que disso resultaria no interior da China (contrastável com as condições de recessão duradoura que prevalecerão nos EUA) atrairá mais produções de matérias primas à órbita comercial chinesa e corroerá a importância relativa dos EUA no comércio internacional. O efeito global de tudo isso será a aceleração do deslocamento da riqueza, do oeste para o leste, na economia mundial e a rápida alteração dos equilíbrios de poder econômico hegemônico.
O movimento tectônico que operará o equilíbrio do poder capitalista global intensificará todo tipo de ramificações econômicas e políticas imprevisíveis num mundo em que os EUA deixarão de estar numa posição dominante, mesmo que sigam mantendo um poder importante. A suprema ironia, deve-se dizê-lo, é que as barreiras políticas e ideológicas postas nos EUA a qualquer programa plenamente keynesiano contribuirão seguramente para acelerar a derrubada do poder americano nos assuntos globais, apesar de que as elites de todo o mundo (inclusive as chinesas) preferissem preservar esse domínio o maior tempo possível. Que um genuíno keynesianismo seja ou não suficiente para que a China (junto a outros estados em posição similar) consiga compensar o fracasso inevitável do keynesianismo reticente ocidental é questão em todo caso aberta. Mas essas diferenças, somadas ao eclipse da hegemonia norte-americana, bem poderiam ser o prelúdio de uma fragmentação da economia global em estruturas hegemônicas regionais que poderiam terminar lutando tanto entre si com tanta facilidade como colaborando na questão miserável de dirimir quem tem de arcar com os estragos da depressão duradoura.Esta não é uma idéia exatamente alentadora, mas ter em mente a possibilidade de uma perspectiva desse tipo poderia talvez contribuir para despertar boa parte do mundo ocidental para a apercepção da urgência da tarefa que tem diante de si; que seus dirigentes políticos deixem de dizer banalidades sobre restaurar a confiança se ponham a fazer o que há a ser feito para resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua falsária ideologia neoliberal. E sim, isso significa socialismo, nacionalizações, diretrizes estatais robustas, força de colaborações internacionais e uma nova e farta, mas inclusiva (“democrática”, se posso ousar a dizê-lo assim) arquitetura financeira internacional, pois que assim seja...David Harvey é geógrafo, sociólogo urbano e historiador social marxista. É professor da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) e autor de vários livros e artigos, dentre os quais se destaca "A Produção Capitalista do Espaço", publicado no Brasil pela Annablume Editora. Vem dando seminários sobre O Capital, de Karl Marx, há 40 anos. Mantém esta página http://www.davidharvey.org/
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Tradução: Katarina Peixoto
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Fonte: Agência Carta Maior
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