15/02/2009

Diabolização de Battisti por Berlusconi é parte do seu projeto de poder ‘fascistizante’

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por Valéria Nader
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Inicialmente ocupando alguns cantos de página na mídia impressa, assim como parcamente abordada pelos meios televisivos, a concessão de refúgio ao italiano Cesare Battisti pelo governo brasileiro tomou grande dimensão no país.

Como já era de se esperar, as discussões têm adquirido um tom cada vez mais maniqueísta, contra ou a favor de Tarso Genro, que concedeu o refúgio com base na lei n. 9474, de 1997, que estabeleceu as normas de proteção a refugiados que possam ser vítimas de graves violações dos direitos humanos nos países de origem. Mediante pedidos de extradição do governo italiano, o caso será agora examinado no Supremo, que julgará se o ato de Tarso procede ou não.

Para qualificar essa discussão, conversamos com Mário Maestri, 60, brasileiro e italiano, doutor em História pela UCL, Bélgica, e com Florence Carboni, 56, italiana, doutora em Linguística também pela UCL.

Maestri e Carboni retomam a história da Itália nos anos 70, momento em que os movimentos sociais teriam sofrido fortíssima repressão por parte de governos da democracia-cristã, que empreendiam verdadeiras ações terroristas de Estado. O ataque do governo Berlusconi a Cesare Battisti estaria, portanto, inserido em uma operação geral de revisão do passado, que apresenta como terrorista toda e qualquer luta anti-fascista e anti-capitalista - sobretudo nesse momento de crise, em que têm sido freqüentes os protestos dos trabalhadores e dos estudantes.

"Tarso Genro honrou sua função de ministro da Justiça com essa sua sábia e democrática decisão", afirma Florense Carboni.

Confira abaixo.

Correio da Cidadania: Argumenta-se contra a concessão de refúgio a Cesare Battisti que, quando dos atos imputados, a Itália vivia em plena democracia e Estado de Direito, ao contrário do Brasil que conhecia ditadura militar, responsável por atos de Terrorismo de Estado. Os atos de Battisti seriam assim crimes comuns. Qual a opinião de vocês?

Mário Maestri: Para entendermos os anos 1970, temos que recuar na história. A reconstrução democrática da Itália deu-se com a derrota do fascismo pelos trabalhadores armados. A constituição de 1948 propõe a construção da Itália sobre os valores do trabalho. O Partido Comunista Italiano, motor da libertação, tornou-se forte instrumento das lutas populares. Porém, as vacilações de sua direção stalinista permitiram ao capital recuperar o espaço perdido, sob a direção dos EUA, que mantiveram e mantêm bases militares no país.

Com a crise da expansão do pós-guerra, nos anos 1960, o capital promoveu reestruturação econômica contra os trabalhadores, motivando forte reação, como as grandes mobilizações estudantis de 1968 e operárias de 1969, que prosseguiram até inícios dos anos 1970. Para entrar no governo, já como partido da ordem, a direção do PCI realizou amplas concessões estruturais ao capital – fim do reajuste dos salários pela inflação; reestruturação dos contratos de trabalho, etc.

Nesses anos, o movimento social sofreu fortíssima repressão, com assassinatos, prisões, torturas etc., por parte de governos da democracia-cristã que, para vergar as lutas populares, agindo também nas sombras, empreenderam ações terroristas de Estado – "Estratégia da Tensão" –, apresentadas como obra da esquerda. Giulio Andreotti, sete vezes presidente do conselho, homem do Vaticano, dos EUA, chefe mafioso, processado pelo assassinato do jornalista Carmine Pecorelli, em 1979, é o símbolo sinistro desse período. Hoje, é senador perpétuo...

Florence Carboni: É difícil imaginar a tensão causada pela "Estratégia do Terror". Os mais terríveis massacres foram os da praça Fontana, em Milão, em dezembro de 1969, com dezessete mortos e quase cem feridos; o do trem Italicus, em agosto de 1974, com doze mortos e uns cinqüenta feridos, e o da estação ferroviária de Bologna, em 1980, o mais assassino, com 85 vítimas fatais e duzentos feridos. Os grupos fascistas que promoveram esses atentados foram teleguiados por organizações oficiais dos serviços secretos italianos, da OTAN e da CIA, como Gladio, que teve a existência reconhecida pelo próprio Andreotti, em outubro de 1990, e por representantes do grande capital, organizados em redor da loja maçônica P2 – Propaganda dois -, verdadeiro poder paralelo, da qual fazia parte também o atual primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi. Somente alguns poucos militantes dos grupos fascistas responsáveis por esses crimes conheceram a prisão. Na época, a mídia tendia sempre a atribuir os atos terroristas à esquerda e muitos anarquistas, estudantes, operários, sindicalistas foram presos, torturados e mesmo mortos pela polícia.

Em meados de 1970, sob refluxo relativo do movimento social, setores da esquerda extra-parlamentar empreenderam ataques armados ao Estado, sob a ilusão de combater as agressões direitistas e a ofensiva anti-operária através de ações armadas desligadas do movimento social. Crença muito difundida no mundo, após a vitória da Revolução Cubana, em 1961, e a difusão do foquismo. Na Itália, era fortíssima a tradição da luta partigiana anti-fascista armada. Muitos militantes desses grupos queriam retomar as armas como seus pais e avós!

Mário Maestri: Hoje sabemos que muitos desses grupos armados foram instrumentalizados, direta e indiretamente, não apenas na Itália, pelos serviços secretos. A execução de Moro é exemplo. Todas as portas de negociação com as Brigadas Vermelhas foram fechadas, devido ao interesse na repulsa popular que a execução causaria. O governo negou-se a trocar Aldo Moro até mesmo por prisioneira política com câncer terminal! A demonização dos atos armados isolados servia para criminalizar a idéia de socialismo, de comunismo, de resistência social.

A metamorfose do PCI – hoje Partido Democrático – em partido da ordem, responsável pelas privatizações, perda de conquistas sociais – como a estabilidade no trabalho, aposentadoria etc. –, facilitou a derrota operária e popular nos anos 1980. As condições de vida na Itália despencaram. Hoje, os salários equilibram-se aos das nações mais atrasadas do leste da Europa. Os contratos de trabalho mantêm milhões de italianos, sobretudo jovens, na precariedade e pobreza, enquanto os muito ricos tornam-se ainda mais ricos. Atualmente quase 40% da população já pode ser definida estatisticamente como pobre e a queda continua, sobretudo com a atual crise!

CC: Mas qual o sentido da militância extremada do governo Berlusconi em favor da extradição de Cesare Battisti.

Florence Carboni: Berlusconi retorna pela terceira vez, após a administração desastrosa de centro-esquerda de Romano Prodi, de 2006 a 2008, que lançou na prostração a esquerda, com dois anos de continuação das políticas conservadoras iniciadas por Berlusconi. Por primeira vez desde a II Guerra, não foi eleito um comunista ao parlamento! Parte do eleitorado de esquerda nem votou, sobretudo no Partido Refundação Comunista, para se opor à sua participação no governo Prodi.

O novo bloco berlusconiano, o chamado Povo da Liberdade, formado por neoliberais, separatistas (Liga Nord), neofascistas (AN) etc., almeja a destruição do movimento social e a instauração de governo autoritário, através de medidas de exceção e do confisco de prerrogativas do judiciário e do parlamento. O fato de Berlusconi ser proprietário monopólico da mídia facilita esse projeto, implementado no contexto de medidas populistas e fascistizantes, como a responsabilização dos trabalhadores imigrados, superexplorados pela crise econômica, o desemprego, a violência etc. Mesmo os ciganos com cidadania italiana foram fichados, perseguidos, tiveram seus acampamentos queimados.

Os valores sagrados da família – castidade, casamento indissolúvel, proibição da interrupção da gravidez, escola privada etc. – são agitados e promovidos, também para estreitar a aliança com o Vaticano. A desapiedada demagogia de Berlusconi sobre Eluana Englaro, em uma defesa obscurantista e não-científica de vida biológica acabada há duas décadas, enquanto permite e manda os médicos denunciarem pacientes estrangeiros sem papéis, tem como objetivo último fortalecer a proposta da necessidade de mudança da Constituição, como já assinalado.

O ataque do governo Berlusconi a Cesare Battisti insere-se nessa operação geral de revisão do passado, que apresenta como terrorista toda e qualquer luta anti-fascista e anti-capitalista. A diabolização de Battista – sobretudo nesse momento de crise, em que têm sido freqüentes os protestos dos trabalhadores e dos estudantes – permite manter a criminalização dos movimentos sociais, do socialismo, do comunismo, sobretudo por ser esse pedido de extradição um caso patente de arbitrariedade, devido à clara improcedência das acusações.

CC: Quanto ao processo aberto na Itália contra Battisti, apoiado nas ‘delações premiadas’, juristas divergem sobre a motivação política dos atos imputados. Vocês conhecem o histórico desses processos. Eles ocorreram respeitando o ordenamento jurídico e os direitos do acusado?

Mário Maestri: O julgamento de Battisti é um pasticcio italiano, à salsa Guantanamo, explicável apenas devido à maré neoliberal que varreu a Itália e a Europa em fins dos anos 1980. Battisti foi militante de base de Proletários Armados para o Comunismo - PAC, grupo marginal dos anos 1970. Sobre ele, Pietro Mutti, dirigente daquela organização, quando preso em 1982, despejou, por além do crível, a responsabilidade de todas as ações mortais do grupúsculo. Isso porque, como declarou o próprio Mutti, Battisti se encontrava no exterior. No Brasil, na ditadura, era habitual entregar sob tortura companheiros mortos e no exterior, para não comprometer militantes presos ou no país.

O único ato de sangue perpetrado pelo PAC enquanto Battisti ainda militava no grupo foi o justiçamento, em junho de 1978, do coronel Antonio Santoro, comandante dos agentes penitenciários, crime que foi assumido por Mutti. E foi precisamente esse ato que motivou o abandono de Battisti da organização, devido à ruptura do princípio inicial do PAC de que seus "atentados" não causariam "morte humana".

A "delação premiada" valeu a Mutti a redução da prisão perpétua a poucos anos de cárcere. A seguir, ele desapareceu providencialmente, impossibilitando confirmação de suas afirmações, qualificadas como fantasiosas pelo próprio tribunal de Milão, em março de 1993. Militantes do PAC que se dissociaram dos atos praticados, mas não renegaram seus princípios políticos, confirmaram as declarações de Mutti, também para minorar as próprias penas, sempre porque Battisti estava ao seguro no estrangeiro.

Florence Carboni: Fala-se pouco que Battisti foi condenado à revelia, sem a apresentação de qualquer testemunha ocular dos atos que lhe são imputados, sem uma única prova objetiva, um único indício sólido. A justiça italiana – e a seguir européia – não encontrou irregularidades nessa condenação de um militante de esquerda apoiada apenas em denúncias. Porém, em 2004, inocentou os fascistas pelo massacre de Piazza Fontana porque as provas consistiam apenas em declarações de arrependidos!

Havia meses que Battisti não fazia parte do PAC quando ocorreram os três últimos atos que lhe foram imputados. E dois deles ocorreram no mesmo dia, em 16 de fevereiro de 1979: a morte, em Milão, do joalheiro Pierluigi Torregiani, e a do açougueiro neofascista Lino Sabbadin, em Santa Maria di Sala, no Vêneto, cidade que Battisti teria declarado sequer saber onde ficava, quando, já na França, leu no jornal Le Monde a notícia de que fora considerado responsável pela morte. Como era materialmente impossível a participação em ambas as ações, Mutti, a seguir, modificou a acusação para a participação de Battisti em uma reunião que discutira os atentados.

Quando da quarta execução, do policial torturador Andrea Campagna, em abril de 1979, em Milão, Battisti já não militava mais na organização havia meses. Para a Justiça, essa é a única morte da qual Battisti seria o executor direto. Além de jamais terem sido apresentadas provas positivas, comprovou-se que a carta, em que Battisti aceitou os advogados que o representaram no julgamento à revelia, foi forjada, o que lhe garantiria, segundo a lei, novo julgamento, direito que lhe foi sempre negado.

CC: Qual é a opinião de vocês sobre a concessão de asilo político a Cesare Battisti pelo ministro da Justiça Tarso Genro?

Florence Carboni: Tarso Genro honrou sua função de ministro da Justiça com essa sua sábia e democrática decisão. Concedeu asilo devido aos sucessos políticos terem ocorrido quando os governos italianos agiam na semi-ilegalidade, contra o movimento social e a esquerda. Acredito que a abnormidade patente do processo possa também ter influenciado sua decisão. Tarso seguiu o caminho cidadão do governo Mitterand, que concedeu asilo a Battisti e a outros refugiados italianos, asilos retirados pelo direitista e corrupto Chirac.

É também possível que nessa decisão tenha pesado o fato de que a Justiça penal brasileira se paute pelo princípio da reabilitação, e não pela vingança. Não há no Brasil pena de morte nem prisão perpétua. O máximo da pena é trinta anos, no contexto do princípio de progressão de regime carcerário. As acusações fajutas a Battisti são velhas de trinta anos, quando tinha pouco mais de vinte anos! No Brasil, após trinta anos, há prescrição penal. Nas três últimas décadas, Battisti viveu como cidadão exemplar. Entregá-lo à sanha de um governo fascistizante seria um crime.

CC: O caso será examinado no Supremo, que julgará se o ato de Tarso procede. No entanto, a lei que disciplina a outorga do refúgio diz que a sua concessão impede o exame do pedido de extradição. Como vocês acham que o STF vai decidir, considerando a sua composição? Uma decisão contra a permanência de Battisti repercutiria negativamente em termos de direitos humanos e civis?

Mário Maestri: A grande mídia e parte da magistratura, sempre contrárias aos trabalhadores, servem-se também do caso Battisti para criminalizar a resistência social e a luta socialista no Brasil. As informações que elas fornecem são literalmente caricaturais. Apresentam Battisti como terrorista que assassinou quatro pessoas em país democrático. Não falam de que Battisti é acusado, sem provas críveis, como responsável direto por apenas um ato de sangue, realizado em uma Itália em que o Estado atacava legal e ilegalmente os trabalhadores.

No Brasil, a diabolização de Battisti serve também para defender os terroristas de Estado, responsáveis durante a Ditadura militar [1964-85], por criminosos atos indescritíveis contra prisioneiros indefesos. Criminosos de Estado que gozaram e gozam de absoluta anistia e ampla premiação, social e econômica. Seus atos seriam justificados por terem sido cometidos contra comunistas terroristas como Battisti.

Na vanguarda desse movimento está o senhor Gilmar Mendes, rico empresário do ensino particular, indicado ao STF por FHC, onde se celebrizou pela presteza em liberar o mega-empresário e mega-corrupto Daniel Dantas, ação execrada publicamente por mais de quatrocentos juízes federais! Sua mobilização para que o STF usurpe prerrogativa do ministro da Justiça e do Executivo acompanha o movimento das nossas classes abonadas que, para avançar a operação conservadora, rastejam diante das pressões do governo berlusconiano, fazendo ouvidos de mercador às qualificações grosseiras do Brasil como "país de samba", "republiqueta", "terra de dançarinas", feitas por governantes, deputados, jornalistas etc. italianos.

A defesa de Cesare Battisti é uma questão de princípio. Olga Benário Prestes foi jovem comunista alemã, responsável por ação armada para libertar seu companheiro da prisão alemã, em 1926, durante regime certamente mais democrático que o italiano em 1970. Foi entregue aos nazistas, em 1936, grávida, em plena vigência da ordem democrática no Brasil, sem que o ato ignóbil causasse comoção ou oposição na Justiça, na imprensa e nas elites brasileiras de então. Morreu executada em campo de extermínio. Se estivesse sendo julgada hoje sua extradição, nossa mídia e classe política conservadora certamente estariam berrando para que fosse entregue aos seus carrascos!

A defesa de Battisti deve se transformar para os democratas e homens de bem do Brasil em questão de princípio, como se tornou sua entrega ao governo fascistizante italiano para o mundo conservador brasileiro.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

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