10/10/2008

A crise financeira global tem uma causa social: os baixos salários mundiais

por Emiliano Brancaccio [*] entrevistado por Waldemar Bolze.
O sr. sustenta que a crise financeira não é um fenómeno puramente técnico, mas tem uma causa social. Por que?
O ponto de partida é a fraqueza do movimento trabalhista, a qual tornou possível um mundo de salários baixos. Contudo, este muto é estruturalmente instável, o que estamos agora principiando a experimentar. Hoje todos os países tentam manter o nível de salário baixo, diminuindo portanto a procura interna, e têm de encontrar mercados externos para os seus próprios produtos.
Este mecanismo funcionou durante os últimos dez anos porque os Estados Unidos funcionaram como um "aspirador" para os produtos excedentes de outros países. E não porque os salários dos trabalhadores fossem demasiado altos e sim porque foi acumulada uma enorme dívida privada nos EUA. O sistema levou a trabalhadores a pagarem suas dívidas hipotecárias com novos empréstimos e a pagarem os juros dos empréstimos com novos cartões de crédito.
Poderia uma estrutura de crédito realmente tão frágil manter-se?
Isto não era senão um bomba relógio, a qual explodiu agora. As consequências são mais uma vez passadas aos trabalhadores e empregados, ao passo que os executivos da Wall Street, que fabricaram estes explosivos, podem até mesmo lucrar com isso.
Tome, por exemplo, o plano Paulson. Ele estipula que o governo vai comprar os activos arriscados dos bancos de investimento e em troca colocar dinheiro fresco à sua disposição, deixando a possibilidade de que os bancos, uma vez passada a tempestade, possam recuperar os seus títulos. Se o governo pagar preços bastante altos, os banqueiros podem finalmente embolsar um lindo lucro a expensas do orçamento do Estado.
Qual o impacto óbvio que terá esta crise?
Dependerá muito da sua duração e profundidade. Por enquanto, o establishment está a seguir uma estratégia que Giuseppe Tomasi di Lampedusa descreveu no seu livro O Leopardo: "Se quisermos que tudo permaneça na mesma, temos de mudar alguma coisa". O plano Paulson é um exemplo desta estratégia, porque consiste numa permuta de cash por dívidas, concebida para intervir o menos possível em termos de propriedade e de controle do capital bancário. O mesmo se aplica às vendas de acções preferenciais ao governo porque este restringe o direito de voto nas assembleias de accionistas.
Será que a ideologia do neoliberalismo fracassou e que os dias do capitalismo estão contados?
A ideia é divertida, mas seria ingénuo assumir um fim iminente do capitalismo. Não posso ver como tal coisa possa materializar-se. O grande ausente neste colossal estado de emergência é precisamente o movimento trabalhista. Ao invés disso, vejo a possibilidade de uma mudança no poder relativo dos lobbies das finanças para grupos de pressão política e também de lobbies ocidentais e americanos para outros asiáticos.
Podemos então falar do declínio do império americano?
Apesar da aparência e de todas as altas temporárias e dos acontecimentos a curto prazo, o declínio americano tem-se verificado de há pelo menos um quarto de século. Um sintoma deste declínio é o comportamento a longo prazo do dólar, cujo preço – convertido à divisa de hoje – em 20 anos caiu de 1,50 euro para cerca de 70 centavos de euro. Este declínio assegura desconfiança em relação ao dólar e provavelmente impedirá os EUA de desempenharem novamente o papel de "aspirador" para os produtos excedentes de outros países. Uma vez que não há um poder hegemónico internacional alternativo, há um perigo de que o sistema monetário internacional venha a encontrar-se num beco sem saída. Neste caso, o desenvolvimento desta crise poderia ganhar características realmente negras e imprevisíveis.
A entrevista original em alemão foi publicada em junge Welt , de 09/Outubro/2008.
[*] Professor de economia do trabalho na Universidade de Sannio, membro da Rifondazione Comunista, e conselheiro da maior federação italiana de sindicatos metalúrgicos, a FIOM-CGIL.

09/10/2008

Grupo de Estudos Caio Prado Jr.

O Grupo de Estudos Caio Prado Jr. convida a todos a participarem de uma nova atividade de formação política. Nosso próxima encontro será em 11 de outubro com o tema "Estado, capitalismo e democracia". A palestra ficará sob a responsabilidade do camarada Marcos Cassim, professor de sociologia da educação da Faculdade de Pedagogia da USP de Ribeirão Preto e membro da direção estadual do Partido Comunista Brasileiro (PCB).Dia: 11/10/2008Horário: 09h30Local: Sindicato dos Químicos de Campinas e Região, na Avenida Barão de Itapura, 2022, Jardim Guanabara, Campinas/SP.

Impressões preliminares sobre o processo eleitoral

O Secretariado Nacional do PCB está fazendo um levantamento completo da participação do Partido nas eleições municipais realizadas neste domingo, em todo o país, para divulgar em breve a nossos militantes e amigos.
A Comissão Política Nacional do Comitê Central se reunirá no próximo dia 14 de outubro, para fazer a avaliação do quadro político e o balanço eleitoral, além de decidir o posicionamento do PCB em cada município em que haverá segundo turno, que será realizado em 26 de outubro.
Mas as informações colhidas até aqui permitem-nos afirmar que se confirmaram os termos da declaração do Secretariado Nacional, às vésperas das eleições deste domingo, que aqui resumimos:
"Independentemente dos resultados matemáticos e eleitorais, nossa campanha foi vitoriosa politicamente.
Na grande maioria dos Estados, afirmamos nossa identidade, dialogamos com o povo.
Não fizemos qualquer concessão ao oportunismo, à demagogia, à mistificação e às ilusões de classe. Mostramos ao povo que é impossível "humanizar" ou "reformar" o capitalismo.
Apresentamos um programa de governança comunista, apontando para os enfrentamentos de classe na cidade, com propostas que permanecem como eixos de luta, como a priorização de investimentos nas áreas mais carentes, a retomada do Estado para a garantia da universalidade do acesso aos direitos sociais e a participação direta da população nas decisões políticas, com os conselhos populares.
Apontamos para o socialismo, como único caminho para buscar uma sociedade justa, fraterna, solidária e igualitária.
Denunciamos a criminalização dos movimentos sociais; defendemos a reestatização da Petrobrás; demos solidariedade à luta dos povos da América Latina e do mundo contra o imperialismo; mostramos que só o poder popular pode representar algum avanço democrático."
"Confirmando as limitações da democracia burguesa, esta eleição será, como sempre, ganha pelas grandes máquinas eleitorais milionárias; os candidatos são apresentados como produtos ao "mercado do voto". Apesar de nossos candidatos a Prefeito terem, em geral, se diferenciado positivamente, a eleição majoritária para o PCB sempre apresenta mais dificuldades. Mas poderemos talvez aumentar um pouco nossa bancada de Vereadores, elegendo camaradas em alguns Estados, além daqueles em que já temos parlamentares (Amapá, Maranhão, Pernambuco e Piauí)."
Até o momento, podemos informar que o nosso Partido elegeu Vereadores nesses quatro Estados citados e em mais outros cinco (Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Paraíba e Sergipe), totalizando nove Estados. Como prevíamos, não elegemos nenhum Prefeito na nossa legenda. Mas participamos da coligação que elegeu alguns Prefeitos, dos quais dois Vice-Prefeitos são do nosso Partido.
O desempenho dos nossos candidatos a Prefeito acabou refletindo a desigualdade do horário gratuito de televisão. Como o cálculo é de dois terços do tempo em função do tamanho da bancada de Deputados Federais e um terço em função do número de candidatos a prefeito, tivemos candidatos do PCB que tiveram apenas alguns segundos e outros dois minutos e meio. A votação dos nossos candidatos a Prefeito variou muito em função deste fator, oscilando de menos de 1% até 5% dos votos.
Mas, como afirmamos naquela nota, "a eleição não será o principal critério para medir o crescimento do nosso Partido, que vem reforçando seu trabalho junto aos trabalhadores e à juventude, praticando o internacionalismo proletário, ajudando a unir os comunistas revolucionários e a esquerda socialista".
Quanto ao segundo turno, que se dará em 29 dos municípios com mais de 200.000 eleitores, na maioria deles o PCB certamente se absterá de apoiar qualquer candidato, pois as disputas serão no campo conservador.
Mas haverá casos em que podemos dar um apoio político no segundo turno, quando o confronto se der entre a direita e o campo popular e democrático. Mas sempre será um apoio independente, unilateral, crítico, com nossa identidade e integridade preservadas.
A ação política do Partido continua centrada na luta de massas pela reestatização da Petrobrás, na construção de uma organização intersindical nacional classista, na solidariedade internacionalista, na unidade comunista e na formação de uma frente antiimperialista de esquerda, na perspectiva do Bloco Histórico do Proletariado e da construção do socialismo.

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2008
Ivan Pinheiro Secretário Geral do PCB

Greve dos Bancários

Após paralisação de 24 horas promovida na semana passada, os bancários de todo o país voltarão a entrar em greve, desta vez por tempo indeterminado, a partir do dia 7. Para falar a respeito do ponto de vista da categoria, uma das que mais simbolizam a opressão do capital sobre o trabalhador, o Correio conversou com Francisvaldo Mendes, bancário do Bradesco, instituição privada do setor de maior lucratividade no país.

De acordo com Mendes, um dos representantes nacionais do Sindicato dos Bancários, os trabalhadores já não suportam mais as pressões a que são submetidos em nome de metas e vendas de serviços, e reivindicam aumento levando em conta também a inflação. Para ele, a classe precisa novamente demonstrar sua unidade nacional, pois o patronato sabe igualmente se organizar em conjunto, porém com vistas a retirar direitos dos trabalhadores e cerceando o direito à livre organização de seus funcionários, como se tem visto na atual luta.

Correio da Cidadania: Quais são as tensões entre os trabalhadores bancários e seus patrões, de modo que a greve se fez necessária, e quais as reivindicações mais imprescindíveis para a classe?

Francisvaldo Mendes: Na verdade, fizemos no dia 30/09 uma paralisação de 24 horas por causa do processo negocial que tivemos, já que nossa data-base era 01/09. Os bancos tiveram lucros enormes (por volta de 13, 15, 16%) e nas negociações ofereceram um aumento de apenas 7,5%, enquanto nossa pauta de reivindicações está em 13%, que seria inflação + aumento real; os banqueiros oferecem só a inflação. Portanto, fizemos uma greve de 24 horas de advertência no dia 30 e, no dia 07/10, teremos uma assembléia geral que irá deflagrar a greve por tempo indeterminado.

A principal reivindicação (há várias outras) é a pressão no local de trabalho. Há um assédio moral intenso em todas as agências bancárias por vendas de produtos, metas a serem atingidas e a categoria não agüenta mais. Muitos bancários estão adoecendo e este é um dos motivos que mais lhes causa revolta. Também reivindicamos a PLR (Participação nos Lucros e Resultados) que todos os anos tem contado com a inclusão dos trabalhadores. Neste ano, os banqueiros baixaram bastante as perspectivas, com alguns bancos excluindo os trabalhadores completamente de quaisquer participações, sendo que todos eles obtiveram grandes lucros.

CC: Na sua avaliação, qual o resultado prático das paralisações já ocorridas em várias capitais e outras cidades?

FM: O resultado prático é a pressão sobre os bancos para que apresentem uma nova proposta e reabram as negociações, interrompidas no final de setembro e ainda não retomadas.

Portanto, essa paralisação é para que efetivamente se retomem as negociações, além de melhorar a proposta apresentada pela FENABAN (Federação Nacional de Bancos).

CC: Com os bancos anunciando taxas recordes de lucro, como explicar tamanha disparidade entre as propostas dos trabalhadores e a de seus chefes?

FM: Nesse caso é a histórica briga de classes. Na verdade, existe uma briga em que os patrões se apropriam cada vez mais da força de trabalho dos bancários, e dos trabalhadores de maneira geral, para acumularem e gerarem sempre mais riquezas.

O que queremos é ver rebatida toda a pressão que sofremos no local do trabalho, mostrando à população que ela é também explorada. Hoje qualquer cliente de agência bancária é intimidado para comprar produtos, seguros etc. Achamos que isso faz com que se veja o bancário como inimigo, sendo que este é forçado a pressionar o cliente. Queremos mostrar à população que ela também é vítima dos interesses dos banqueiros, que impõem produtos a serem vendidos pelos bancários.

CC: Como avalia o posicionamento e a unidade da classe nessa luta?

FM: A categoria bancária é uma das poucas, está entre as três ou quatro, que faz o contrato coletivo nacional. Portanto, o piso do bancário de São Paulo é o mesmo piso daquele que está no Acre. A importância do contrato nacional é exatamente a de mostrar a unidade da classe e não fragmentar os trabalhadores bancários.

Por exemplo, peguemos as montadoras de automóveis: há um piso na região de São José, outro no Paraná e outro em Campinas, configurando dessa forma negociações diferentes, sendo que a categoria dos empresários, por sua vez, é unificada. Ela conversa entre si, a fim de manter o mercado, o lucro, sempre acumulando capital. A mesma coisa fazem os banqueiros.

Assim, enquanto categoria que consegue fazer um contrato coletivo nacional unificado, nós podemos fazer um bom debate de enfrentamento contra a unidade que a burguesia e a classe patronal têm entre elas. A unidade é fundamental para que possamos derrotar um projeto político e de exploração das classes dominantes.

Às vezes, vemos que alguns bancos são mais mobilizados que outros. Normalmente, os bancos estatais são mais mobilizados que os privados, já que sofrem menos pressão de demissão, conseguindo assim se organizar melhor. Porém, se nos concentrarmos somente nesses bancos, acaba se fragmentando a classe trabalhadora sem que se consiga passar o recado à classe patronal. A importância da unidade - e os bancários possuem histórico de unidade, até porque têm esse contrato coletivo conquistado – é fundamental, a fim de que se conquistem cada vez mais direitos para a categoria.

CC: E o que pensa da assembléia do sindicato em São Paulo, realizada na semana passada e cercada de polêmicas entre a própria classe, sendo questionada por parte dos participantes?

FM: Não se tratou de algo feito às escuras, como se chegou a pensar. Foi realizada na noite do dia 29, na quadra dos bancários, com a presença de 1300 deles. Houve uma votação, com duas propostas em pauta: uma de paralisação por tempo indeterminado e outra por paralisação de 24 horas, que foi a proposta ganhadora.

Não houve nada às escondidas. Houve divergências a respeito da assembléia, mas todos entenderam que a unidade da categoria era mais importante que a disputa interna.

CC: Dizem que alguns bancos, especialmente privados, estão cerceando o direito à greve que os trabalhadores têm garantido constitucionalmente. Até que ponto isso é verdade? Qual o grau de pressão exercido pelo patronato na luta atual?

FM: Os bancos privados têm incorrido nessa prática constantemente. Por exemplo, quando estamos nas portas das agências de bancos privados tratando de convencer politicamente os bancários, eles chamam a PM e se utilizam dela para obrigar os trabalhadores a voltarem para dentro do banco. Há casos em que alugam helicópteros – como o Unibanco, que possui heliporto em sua sede na Praça do Patriarca – e fazem seus funcionários entrarem no banco desse jeito.

Os banqueiros exercem todo tipo de assédio, a todo instante. Ligam para o celular da pessoa e, caso esta se encontre na greve com o telefone desligado, fazem chamadas para as suas casas, para suas esposas e mães, pressionando-os a irem trabalhar. Existe todo tipo de enfrentamento num período de greve como esse.

CC: Que fim acredita que o confronto atual levará? A classe pode se preparar para novas lutas num futuro bem próximo?

FM: Creio que sim. Começaremos na quarta-feira uma greve por tempo indeterminado. A categoria está ciente de que os banqueiros não concederão nenhum aumento, vide que já se passou o primeiro mês de pagamento a partir da data-base da greve.

Portanto, teremos a greve nessa semana e espero que seja forte, para mostrar a força da categoria. O momento é de tentar ganhar a consciência dos trabalhadores, mostrando que, sem organização, não conseguiremos conquistar nada.

É importante ressaltar que a intenção é fazer uma grande greve no país, em todos os estados, combinando a luta de todos eles, pois não adianta Brasília e Rio de Janeiro entrarem em greve e São Paulo não. Todos precisam estar combinados e unificados para que possamos efetivamente responder à pressão do patronato, que ultimamente vem tentando retirar direitos dos trabalhadores.
Fonte: Correio da Cidadania

07/10/2008

Para compreender a crise financeira

Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há alternativas?
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Depois de terem vivido uma segunda-feira de pânico, os mercados financeiros operam, hoje, em meio a muito nervosismo. A bolsa de valores de Tóquio caiu mais 3%, apesar de o Banco do Japão injetar mais 10 bilhões de dólares no sistema bancário. Na Europa, há pequena recuperação das bolsas, diante de rumores sobre uma redução coordenada das taxas de juros, pelos bancos centrais. Em contrapartida, anunciou-se que a situação do Royal Bank os Scotland (RBJ) pode ser crítica — e que outros bancos estariam sob forte pressão.
A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15 e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras norte-americanas [1] deixou claro que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário. No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700 bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também a chamada “economia real”. Por falta de financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril – uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas podem sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”, segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos “quatro grandes” europeus [3], convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país...
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e Europa estão viveram, na segunda-feira (6/10) um dia de quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos importantes. Em São Paulo, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar chegou a R$ 2,20.
Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas “injusto”, mas também “ineficaz e ineficiente”. Injusto porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o Estado assuma seus “títulos podres”) sem assumir, em troca, parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas — e ameaçadas de perder seus imóveis —, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada “ditadura dos acionistas”, que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Wallerstein vê nos sistemas públicos de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna, quem se preocupará em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do sistema [4]. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
[1] Em 12/9, o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as autoridades monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch anunciou sua venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a maior do mundo, até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo nacionalizada no dia seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O Dexia recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de euros, patrocinada pelos governos da França e Bélgica. O Reino Unido nacionalizou o Bradford & Bingley (especialista em hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander. O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou numa operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir, seu terceiro maior banco
[3] Alemanha, França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
[4] Sobre a contra-utopia hayekiana, ler, no Le Monde Diplomatique, “Pensando o Impensável” , de Serge Halimi
Fonte: Le Monde Diplomatique