03/07/2010

EM DEFESA DO MEIO AMBIENTE BRASILEIRO E DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS SAUDÁVEIS: NÃO AO SUBSTITUTIVO DO CÓDIGO FLORESTAL!

O Código Florestal (Lei nº. 4.771, de 15 de setembro de 1965) está baseado em uma série de princípios que respondem às principais preocupações no que tange ao uso sustentável do meio ambiente.

Apesar disso, entidades populares, agrárias, sindicais e ambientalistas, admitem a concreta necessidade de aperfeiçoamento do Código criando regulamentações que possibilitem atender às especificidades da agricultura familiar e camponesa, reconhecidamente provedoras da maior parte dos alimentos produzidos no país.

É essencial a implementação de uma série de políticas públicas de fomento, crédito, assistência técnica, agro industrialização, comercialização, dentre outras, que garantirão o uso sustentável das áreas de reserva legal e proteção permanente. O Censo Agropecuário de 2006 não deixa dúvidas quanto à capacidade de maior cobertura florestal e preservação do meio ambiente nas produções da agricultura familiar e camponesa, o que só reforça a necessidade de regulamentação específica.

Essas políticas públicas vinham sendo construídas entre os movimentos e o Governo Federal a partir do primeiro semestre de 2009, desde então os movimentos aguardam a efetivação dos Decretos Reguladores para a AF que nos diferenciam do agronegócio.

Foi criada na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial, para analisar o Projeto de Lei nº. 1876/99 e outras propostas de mudanças no Código Florestal e na Legislação Ambiental brasileira. No dia 09 de junho de 2010, o Dep. Federal Aldo Rebelo (PCdoB/SP) apresentou à referida Comissão um relatório que continha uma proposta de substituição do Código Florestal.

Podemos afirmar que o texto do Projeto de Lei é insatisfatório, privilegiando exclusivamente os desejos dos latifundiários. Dentre os principais pontos críticos do PL, podemos citar: anistia completa a quem desmatou (em detrimento dos que cumpriram a Lei); a abolição da Reserva Legal para agricultura familiar (nunca reivindicado pelos agricultores/as visto que produzem alimentos para todo o país sem a necessidade de destruição do entorno) possibilidade de compensação desta Reserva fora da região ou da bacia hidrográfica; a transferência do arbítrio ambiental para os Estados e Municípios, para citar algumas.

Estas mudanças, no entanto, são muito distintas das propostas no Projeto de Lei (PL). Nos cabe atentar para o fato de que segundo cálculos de entidades da área ambiental, a aplicação delas resultará na emissão entre 25 a 30 bilhões de toneladas de gás carbônico só na Amazônia. Isso ampliaria em torno de seis vezes a redução estimada de emissões por desmatamento que o Brasil estabeleceu como meta durante a 15ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 15) em Copenhague, em dezembro de 2009 e transformada em Lei (Política Nacional de Mudança do Clima) 12.187/2009.

De acordo com o substitutivo, a responsabilidade de regulamentação ambiental passará para os estados. É fundamental entendermos que os biomas e rios não estão restritos aos limites de um ou dois estados, portanto, não é possível pensar em leis estaduais distintas capazes de garantir a preservação dos mesmos. Por outro lado, esta estadualização representa, na prática, uma flexibilização da legislação, pois segundo o próprio texto, há a possibilidade de redução das áreas de Preservação Permanentes em até a metade se o estado assim o entender.

O Projeto acaba por anistiar todos os produtores rurais que cometeram crimes ambientais até 22 de julho de 2008. Os que descumpriram o Código Florestal terão cinco (5) anos para se ajustar à nova legislação, sendo que não poderão ser multados neste período de moratória e ficam também cancelados embargos e termos de compromisso assinados por produtores rurais por derrubadas ilegais. A recuperação dessas áreas deverá ser feita no longínquo prazo de 30 anos. Surpreendentemente, o Projeto premia a quem descumpriu a legislação.

O Projeto desobriga a manutenção de Reserva Legal para propriedades até quatro (4) módulos fiscais, as quais representam em torno de 90% dos imóveis rurais no Brasil. Essa isenção significa, por exemplo, que imóveis de até 400 hectares podem ser totalmente desmatados na Amazônia – já que cada módulo fiscal tem 100 hectares na região –, o que poderá representar o desmatamento de aproximadamente 85 milhões de hectares. A Constituição Federal estabeleceu a Reserva Legal a partir do princípio de que florestas, o meio ambiente e o patrimônio genético são interesses difusos, pertencentes ao mesmo tempo a todos e a cada cidadão brasileiro indistintamente. É essencial ter claro que nenhum movimento social do campo apresentou como proposta a abolição da RL, sempre discutindo sobre a redução de seu tamanho (percentagem da área total, principalmente na Amazônia) ou sobre formas sustentáveis de exploração e sistemas simplificados de autorização para essa atividade.

Ainda sobre a Reserva Legal, o texto estabelece que, nos casos em que a mesma deve ser mantida, a compensação poderá ser feita fora da região ou bacia hidrográfica. É necessário que estabeleçamos um critério para a recomposição da área impedindo que a supressão de vegetação nativa possa ser compensada, por exemplo, por monoculturas de eucaliptos, pinus, ou qualquer outra espécie, descaracterizando o bioma e empobrecendo a biodiversidade.

O Projeto de Lei traz ainda a isenção em respeitar o mínimo florestal por propriedade, destruindo a possibilidade de desapropriação daquelas propriedades que não cumprem a sua função ambiental ou sócio-ambiental, conforme preceitua a Constituição Federal em seu art. 186, II.

Em um momento onde toda a humanidade está consciente da crise ambiental planetária e lutando por mudanças concretas na postura dos países, onde o próprio Brasil assume uma posição de defesa do desenvolvimento sustentável, é inadmissível que retrocedamos em um assunto de responsabilidade global, como a sustentabilidade ambiental.

O relatório apresentado pelo deputado Aldo Rebelo contradiz com sua história de engajamento e dedicação às questões de interesse da sociedade brasileira. Ao defender um falso nacionalismo, o senhor deputado entrega as florestas brasileiras aos latifundiários e à expansão desenfreada do agronegócio.

Sua postura em defesa do agronegócio é percebida a partir do termo adotado no relatório: Produtor Rural. Essa, mais uma tentativa de desconstrução do conceito de agricultura familiar ou campesina, acumulado pelos movimentos e que trás consigo uma enorme luta política dos agricultores e agricultoras familiares.

Por tudo isso, nós, organizações sociais abaixo-assinadas, exigimos que os assuntos abordados venham a ser amplamente discutidos com o conjunto da sociedade. E cobramos o adiamento da votação até que este necessário debate ocorra e que o relatório do deputado absorva as alterações mencionadas no corpo do texto.

ENTIDADES

CUT – CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES

FETRAF – FEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA FAMILIAR

VIA CAMPESINA

CPT – COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

MAB – MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS

MMC – MOVIMENTO DAS MULHERES CAMPONESAS

MPA – MOVIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES

MST – MOVIMENTO DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS SEM TERRA

ABEEF – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS ESTUDANTES DE ENGENHARIA FLORESTAL

CIMI – CONSELHO INDIGENÍSTA MISSIONÁRIO

FEAB – FEDERAÇÃO DOS ESTUDANTES DE AGRONOMIA DO BRASIL

MCP - MOVIMENTO CAMPONÊS POPULAR

UNICAFES – UNIÃO NACIONAL DE COOPERATIVAS DA AGRICULTURA FAMILIAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA

PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO

ABRA – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE REFORMA AGRÁRIA

ABA – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGROECOLOGIA

ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

TERRAS DE DIREITOS

INESC – INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS

ABONG – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS

AMIGOS DA TERRA BRASIL

ABRAMPA – ASSOCIAÇÃO BRA

MMM - MARCHA MUNDIAL DE MULHERES

SOF - SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA

IBAP – INSTITUTO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA

REDLAR – RED LATINOAMERICANA DE ACCIÓN CONTRA LAS REPRESAS Y POR LOS RIOS, SUS COMUNIDADES Y EL ÁGUA

FUNDAÇÃO PADRE JOSÉ KOOPMANS

PROTER – PROGRAMA DA TERRA

IBASE – INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS

AS-PTA – AGRICULTURA FAMILIAR E AGROECOLOGIA

APTA – ASSOCIAÇÃO DE PROGRAMAS EM TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS

AFES – AÇÃO FRANCISCANA DE ECOLOGIA E SOLIDARIEDADE

CAIS - CENTRO DE ASSESSORIA E APOIO A INICIATIVAS SOCIAIS

CENTRO DE ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR MARIANA CRIOLA

CEDEFES - CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO ELÓY FERREIRA DA SILVA

CEPIS – CENTRO DE EDUCAÇÃO POPULAR DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

CNASI – CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE ASSOCIAÇÕES DOS SERVIDORES DO INCRA

COMITÊ METROPOLITANO DO MOVIMENTO XINGU VIVO

DIGNITATIS

FASE – SOLIDARIEDADE E EDUCAÇÃO

INSTITUTO MADEIRA VIVO

ONG REPORTER BRASIL

02/07/2010

Estamos às portas de outro quatriênio de ofensiva oligárquica contra o povo

por FARC-EP
Com o triunfo ilegítimo do continuísmo, repudiado pela abstenção da cidadania, o país entrou em um processo de radicalização da luta política no qual o povo será protagonista de primeira grandeza. Toda a maquinaria do Estado, todos os recursos mafiosos do governo, suas manhas delitivas de fraude e corrupção, de chantagem e intimidação, foram postos a serviço da vitória do continuísmo, procurando desesperadamente por essa via um escudo que proteja Uribe da iminente acusação do povo e da justiça, diante de uma gestão criminosa e de lesa-pátria. O regime de Uribe foi a mais séria tentativa de impor violentamente um projeto político da extrema-direita neoliberal baseado no paramilitarismo. Seu governo passará à história como o mais vergonhoso das últimas décadas, o mais assassino de sua população civil, o mais submisso à política dos EUA e, devido a esta circunstância, o mais compulsivo provocador de instabilidade nas relações com os países vizinhos. Durante estes oito anos governou a mentira e a falsidade, a manipulação e o engano. Uribe e o continuísmo fizeram acreditar que sua política de segurança era de todos, quando na realidade somente assegurava, através da repressão, os lucros de privilegiados setores investidores, que aumentaram o desemprego e a pobreza. Fizeram acreditar que defender a soberania era entregar a pátria ao governo de Washington e transformar a Colômbia em um país ocupado militarmente por uma potência estrangeira. Arranjaram tudo para pousar de paladinos da luta contra o narcotráfico. Dizem ao país que não existem guerra nem conflito armado, mas não explicam porque há "Plano Patriota" e invasão ianque... "Segurança democrática" são os falsos positivos e a impunidade. É poder eleger como Presidente o ministro da defesa que mais estimulou estes crimes de lesa-humanidade. É repartir terras à agro-indústria paramilitar porque essa tem sim fortaleza financeira e os pobres trabalhadores rurais não. E é subsidiar ou presentear de maneira segura verbas públicas aos empresários do agronegócio que financiaram as campanhas eleitorais. "Segurança Democrática" são as fossas comuns com mais de 2.000 cadáveres, como a que existe em um canto da base militar de La Macarena, e são mais de quatro milhões de camponeses refugiados pela violência do Estado. É mentir sobre o fim da guerrilha bolivariana das FARC-EP e preocupar-se com a vitalidade de uma organização que combate firmemente pela Nova Colômbia como confirmam suas atividades militares do mês de maio. "Segurança Democrática" é mudar a Constituição para adequá-la a um interesse particular quando for necessário e é ter uma espúria maioria no Congresso e socavar a autoridade do judiciário com o aplauso dos apoios incondicionais. Também é repartir cargos burocráticos, vantagens e contratos, e aproveitar o governo para enriquecer-se sem nenhum questionamento moral... A abjeta defesa do militarismo oficializada por Uribe e seu chamamento a criar novas leis de impunidade castrense, anunciam o que virá durante o período presidencial de Juan Manuel Santos. Sua cínica queixa e seu lamento farisaico ao superproteger um torturador-assassino, como o coronel Plazas Vegas, os altos comandantes militares e o ex-presidente Belisario Betancourt, responsáveis pelo holocausto do Palácio da Justiça (bombardeado por tanques em 1985 quando a guerrilha do M-19 o invadiu), são patética evidência de seu esforço para oferecer desde já, prevenindo-se contra futuras acusações contra si. E, naturalmente, como forma de engrenar o narcoparamilitarismo na direção do Estado, com garantias legais para fazer desaparecer, torturar e assassinar opositores. O "foro militar" que Uribe reclama é patente de impunidade criminosa como demonstra a história recente da Colômbia. A veemente defesa presidencial do ex-diretor da DIAN (impostos e aduana) e da "UIAF" (Unidade Administrativa Especial de Informação e Análise Financeira), senhor Mario Aranguren, que delinquiu a favor de Uribe e certamente por ordem sua, evidencia a índole de quem aspira transcender ocultando, não só seu passado criminoso, mas as vergonhosas baixezas de sua prática como governante. Estamos às portas de outro quatriênio de ofensiva oligárquica contra o povo em todos os sentidos, manchado com suaves e enganosas promessas oficiais em torno de uma vitória militar como têm repetido sem cessar durante 46 anos, sem se preocupar, nem muito menos se comprometera superar, as causas que geram o conflito. A profunda crise estrutural de que padece a Colômbia não tem solução no continuísmo. A extrema-direita neoliberal, acreditando que ainda pode resolver de cima para baixo, convocou a uma união nacional sem povo, na qual somente reinam as ambições dos mesmos que lucram com o investimento seguro: os grupos financeiros, o setor empresarial, os pecuaristas e latifundiários, os paramilitares, os partidos que, como piranhas, disputam os favores do poder, os grandes meios de comunicação que aplaudem os êxitos em litros de sangue da política guerreirista... Nessa "união" não se vê povo em parte alguma porque a prosperidade daqueles se sustenta na miséria e exploração dos de baixo, dos excluídos. Este bicentenário do grito de independência deve abrir passagem para a luta do povo por seus direitos, pela pátria, pela soberania, justiça social e paz. A mudança das injustas estruturas é possível com a mobilização e a luta de todo o povo por sua dignidade. Nada se pode esperar dos criminosos montados no poder do Estado. Somente a luta unificada pode nos conduzir a uma Colômbia Nova. Como temos reiterado desde Marquetalia, em 1964: estamos dispostos a encontrar saídas políticas para o conflito, reiterando ao mesmo tempo que nossa decisão de entregar tudo pelas mudanças e pelos interesses populares é irredutível, sem importar as circunstâncias, obstáculos e dificuldades que nos imponham. A justiça social espera vencer na mobilização do povo.
Secretariado do Estado-Maior Central das FARC-EP
Montanhas da Colômbia, junho de 2010
O original encontra-se em ANNCOL .
A versão em português encontra-se em pcb.org.br
Este comunicado encontra-se em http://resistir.info/ .

01/07/2010

Unidos contra nós, divididos entre si: Toronto e o assalto europeu aos padrões de vida

por Ben Hillier [*]
Martin Wolf descreveu como "um banho de sangue" . O editorial do Financial Times considerou que era uma "leitura gélida" . O orçamento da Grã-Bretanha é de austeridade, tal como nunca se vira ao longo de gerações. Um corte de 25 por cento na despesa pública, 250 mil ou mais empregos no sector público a serem eliminados. Isso é só o começo. Já há apelos para que o próximo orçamento vá ainda mais longe. Num país em que – mesmo antes de a crise o atingir – mais de um quarto da população era considerada "pobre para a fila do pão" , o establishment está a gritar: "toda a gente tem demasiado do bom!" É um apelo que ecoa nos corredores do poder do mundo todo. Irlanda, Grécia, Grã-Bretanha, Itália, França e Alemanha, para não mencionar a Europa do Leste, estão no comboio neoliberal – em grande estilo. Mas a Irlanda e a Grécia estão a mostrar que é improvável que a austeridade resolva os problemas. Quando falha o crescimento económico, as receitas do estado falham também; se a deflação principiar – uma possibilidade muito real – o fardo da dívida aumentará. Um ou dois incumprimentos parece certo que ocorram. Mas as classes dominantes não estão perturbadas. O seu objectivo principal não é simplesmente administrar as consequências da crise financeira. Elas têm um plano a longo prazo para esmagar totalmente a classe trabalhadora, deitar abaixo o consumo e remodelar as expectativas de como o ser humano tem direito de viver. Como mencionou um responsável do Tesouro Britânico ao Financial Times ainda antes de o orçamento confirmar:
Qualquer pessoa que pense que a revisão da despesa é apenas para poupar dinheiro está a errar o alvo... Isto é uma oportunidade que só ocorre uma vez numa geração de transformar o modo como o governo funciona.
Ou seja, o governo não deveria funcionar. Não para os pobres, pelo menos. Outrora dizia-se que o capitalismo podia sobreviver a qualquer crise desde que os trabalhadores pudessem arcar com o peso da mesma. Talvez. O problema para os ricos e poderosos, contudo, é que esta crise é estrutural. Os trabalhadores e os pobres não a provocaram. Atacá-los – mesmo que isto signifique remover todos os ganhos social-democratas dos últimos 60 anos – não a resolverá. Os ricos também precisam empurrar o fardo dos pagamentos para os ombros uns dos outros. Este é o contexto no qual foi efectuada a cimeira do G20 em Toronto. Há um fosso aparente revelado na reunião; é difícil dizer quão profundo é ele, mas é significativo. De um lado estão os europeus e o Japão, que estão a aplicar austeridade; do outro estão os Estados Unidos, os quais estão a advertir que neste ponto a política de contracção podia ser desastrosa. Paul Krugman queixou-se de que a viragem para o endurecimento fiscal na Europa representa "a vitória de uma ortodoxia que tem pouco a ver com a análise racional..." Se se tratasse simplesmente de ideologia então isto seria verdade (e pareceria representar uma mutação histórica – os americanos a argumentarem por mais despesa do estado e os europeus a apelarem por cortes de benefícios). Mas os ricos e poderosos são um grupo pragmático e não estão de todo interessados em teoria. A sua viragem para a austeridade faz parte de uma estratégia calculada de "empobrece o teu vizinho". Colectivamente ela pode ser auto-destrutiva, mas a um nível de país individual ela não é nem ligeiramente irracional. Para entender o que está a acontecer precisamos primeiro reconhecer que as únicas coisas que importam no pretenso "consenso G20" mundial são o que fazem as grandes economias. Como com todas as coisas internacionais, os acordos são mantidos de pé pelo poder, não pelo consenso. Isto é verdadeiro tanto para a "coligação de vontades" no Iraque como para os comunicados do G20. A cimeira de Toronto foi acerca da Alemanha, dos EUA e da China. Em menor medida foi acerca do Japão, da França e da Grã-Bretanha. Estavam todos ali para compor os números, dar apoio político – ou terem os seus rabos chutados. A declaração da cimeira contém duas propostas significativas a que as economias avançadas estão a seguir. Primeiramente há um compromisso para activar "planos fiscais para reduzir em 2013 reduzir défices pelo menos à metade e estabilizar ou reduzir rácios dívida-PIB em 2016". Esta é a austeridade que está a ser desencadeada de modo tão gélido na Europa. Ela representa o maior ataque à classe trabalhadora no período do pós-guerra. A segunda directiva do G20 é que "as economias excedentárias empreenderão reformas para reduzirem a sua dependência da procura externa e centrarem-se mais em fontes internas de crescimento". Isto é destinado directamente à Alemanha e à China. Durante a última década, os EUA desempenharam o papel de "consumidor de último recurso"; a contracção de empréstimos que efectuaram durante a última década foi para impulsionar o crescimento global e agora consideram que é tempo de os alemães e os chineses pagarem o favor. O pacote de austeridade alemão mostra que o capital germânico não está a fazer nada disto. Nem o de qualquer país da Europa. E a China está a mover-se para o crescimento moderado. De facto, quase todos os outros governos decidiram começar, ou continuar, a poupar. Isto significará despesas de consumo mais baixas e, muito possivelmente, menos crescimento do investimento. As importações são muito mais prováveis que sejam mais baixas do que o seriam de outra forma. Quanto a isto, os desejos europeus de divisas desvalorizadas, cortes nas despesas internas, cortes salariais e exportações relançadas estão em conflito com os planos da classe dominante dos EUA. (Note-se no entanto que a Europa está longe de unificada – a Grécia e a Irlanda, por exemplo, foram postas na linha pelo establishment alemão.) Os chineses estão a fazer movimentos para "reequilibrar" – a antever acontecimentos fatais quanto à sua capacidade para continuar exportações em massa para uma eurozona que está a esmagar o consumo, e uns EUA cuja perspectiva futura parece nada segura – mas eles não têm a capacidade para absorverem exportações europeias e estado-unidenses. Com a sua economia ainda em crescimento, continuarão a importar equipamento industrial pesado e maquinaria da Alemanha, Japão e EUA. Mas com os seus próprios mercados de exportação deprimidos, lutarão a médio prazo: é improvável que sejam capazes de absorver a sua própria produção, muito menos compensar a lacuna do resto do mundo. Com toda a gente a poupar, os EUA ficam sob pressão para fazer o mesmo. Os conservadores nos EUA a bloquearem a oferta a governos estaduais e locais não são ideologicamente dogmáticos a este respeito. Isto é capital a tentar "manter-se real". Mas por enquanto a administração não pode ir para a austeridade completa. A economia dos EUA está a crescer mais depressa do que a da eurozona, mas os dados do emprego e da habitação indicam que a recuperação é frágil. O governo está hesitante em privar-se das despesas. Quando finalmente o fizer, a realidade de que não podem ser todos exportadores e incidirem em excedentes comerciais pesará sobre o mundo. Alguém tem de ser um comprador e tomador de empréstimos. A tornar as coisas piores para o capital americano, a divisa dos EUA tem-se apreciado contra o Euro e está super-valorizada contra o Yuan, apesar da recente apreciação deste último. Tudo isto torna a exportação muito mais difícil. Além disso, os problemas a mais longo prazo nas economias avançadas – tendência a declínio das taxas de crescimento e de investimento, com base em retornos estagnantes em relação ao investimento – que foram mascaradas pela acumulação de dívida ficaram expostos. A partir da década de 1980 uma proporção apreciável dos lucros totais na economia foi alimentar o sector financeiro em busca de taxas de lucro mais elevadas. O resultado foi a expansão significativa do sector financeiro global e a transmutação das corporações produtivas e industriais em alguma coisa a assemelhar-se a "dispositivos financeiros". Ao longo da última década e meia, em particular, o consumo pessoal foi mantido artificialmente alto para compensar o consumo produtivo mais baixo. As companhias, uma atrás das outras, estavam a cozinhar os livros contabilísticos a fim de impelir mais para o alto os preços das acções. Em 2005, a cada quatro dias os mercados financeiros estavam a comerciar o equivalente ao valor total anual das exportações globais. Mas apesar de os retornos serem muito bons nesta esfera, eles foram conseguidos ao custo de uma série de bolhas especulativas e crises de dívida: as crises de dívida do Terceiro Mundo da década de 1980; o colapso do mercado de acções dos EUA de 1987; o colapso parcial da indústria de caixas económicas nos EUA de 1989; o crash dos preços da propriedade imobiliária e das acções de 1990 no Japão; a crise financeira do Extremo Oriente; o colapso do mercado de acções das dot.com; e o recente colapso imobiliário nos EUA e na Europa Ocidental. A guerra do capital contra o trabalho travada através da política governamental já se intensificou na Europa num grau nunca visto desde a depressão da década de 1930. Os EUA começaram a seguir o exemplo. Despedimentos em massa e salários deitados abaixo não têm sido suficientes para ressuscitar economias. A austeridade tão pouco fará isso; ela provavelmente tornará todas as coisas piores Dizer que tudo agora está pendurado por fio pode ser exagerado. Mas quando a actual recuperação parar – como é quase certo acontecer – as divisões entre as classes dominantes dos diferentes países serão expostas mais uma vez. Elas pressionarão mais duramente umas contra as outras para comutar o fardo da responsabilidade. As queixas quanto a divisas e desacordos fiscais de hoje estão destinadas a ficarem muito mais desagradáveis; os ataques governamentais a ficarem muito piores.
[*] Colaborador de Socialist Alternative .
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

30/06/2010

EUA e Israel: rumores de um ataque ao Irã, a partir do Cáucaso

Por Stratfor Intelligence
Em teoria, os estados do Cáucaso da Geórgia e do Azerbaijão não estariam em má localização para uma base aérea para atacar o Irã, e há rumores de que preparativos de tal ataque estão em andamento, pelo menos desde 2008. Agora, uma avalanche de informes revitalizou os rumores, que nunca se provaram acurados. Seria preciso existir atividade visível o bastante nas bases aéreas do Cáucaso, contra oIrã, o que dificultaria manter esses preparativos em segredo, e um ataque desses não é provavelmente uma prioridade no topo da lista das atuais prioridades estratégicas dos EUA. Circulam rumores de que a bases aéreas nos estados do Cáucaso da Georgia e do Azerbaijão podem estar sendo usadas pelos EUA ou porIsrael para levar a cabo um ataque contra o Irã. Até onde o Stratfor conseguiu apurar, esses rumores podem ser rastreados na fonte da Bahraini news source Akhbar al Khaleej, que disse na semana passada(citando apenas “fontes”) que informes recentes de aviões de guerra israelenses operando a partir de uma base aérea na Arábia Saudita não passaram de uma mera operação de desinformação designada para distraira atenção dos EUA ou dos esforços israelenses no Cáucaso. Essa atual avalanche de informações foi originada em 18 de junho, num artigo do escritor sensacionalista estadunidense Gordon Duff. Contudo, rumores de que Israel está usando a Georgia como uma base para um ataque ao Irã remontam ao menos a 2008. Nunca se provou que esses rumores eram acurados e Stratfor não tem evidência crível de que os rumores atuais sejam de alguma maneira diferentes. Em teoria, o Cáucaso não seria uma má localidade para usar uma base aérea para atacar o Irã. No cenário dos EUA, operações de combate aéreo a partir dessas bases suplementariam as atividades em operação em outras bases na região, bem como por meio de uma série de porta-aviões (ao menos o dobro do número atual da 5 Frota, que é de dois). A maior parte do sistema iraniano de defesa do seu espaço aéreo está orientada para o Iraque, o Golfo Pérsico e o Golfo de Oman, visto que um ataque aéreo viria provavelmente das bases aéreas dos EUA em operação no Iraque, de bases nos estados do Golfo Árabe e de porta-aviões no mar. Além disso, bases no Cáucaso estariam muito mais próximas de alguns alvos-chave, como Teerã e seus arredores. Conseguir se aproximar do mar Cáspio faria com que as aeronaves estadunidenses gastassem muito menos tempo sobre o território iraniano e menos tempo em trânsito, permitindo mais incursões. E com as bases aéreas no Cáucaso, os Estados Unidos estariam essencialmente prontos para atacar o Irã de todos os lados, complicando ainda mais os desafios já significativos da força de defesa aérea de Teerã. Há na Geórgia e no Azerbaijão aproximadamente uma dúzia de bases aéreas (em cada um). Algumas delas (incluindo os grandes aeroportos) parecem ser campos ativos que poderiam ser de qualidade suficiente para os aviões de combate americanos. Mas nenhuma das melhores destas bases está absolutamente isolada, com muitas das suas pistas à vista a partir ao menos de uma comunidade agrícola, senão de uma cidade inteira. Isso tornaria extremamente difícil, senão impossível esconder os preparativos de um ataque, menos ainda a chegada de esquadrões aéreos de combate. As pistas de pouso mais isoladas são geralmente as da era soviética e provavelmente requereriam melhorias consideráveis, envolvendo equipamentos pesados e montanhas de materiais de construção antes que pudessem ser usados pelas aeronaves de combate americanas. E mesmo ativos os campos de pouso utilizáveis da era soviética, desenhados para as aeronaves russas com trens de pouso mais resistentes, são ásperos demais para os jatos de combate de alto-padrão dos americanos. Do mesmo modo, a restauração – senão a fabricação desde o começo – de instalações de filtros de combustível e de estoque seriam necessárias. E, em muitos casos, mais espaço asfaltado seria extremamente desejável para a movimentação e apoio de aeronaves de combate. O fato principal é que todo esse trabalho demandaria um considerável intervalo de tempo, e se um ataque estivesse programado para breve, o trabalho teria de ter começado meses atrás. E teria sido extremamente difícil desviar a atenção dos esforços de guerra em andamento dos habitantes locais, que teriam não apenas notado o aumento do tráfico de caminhões e de outras atividades como provavelmente teriam sentido algum impacto na economia local, dados os esforços militares massivos. Seja como for, esquadrões de guerra e a infraestrutura e suporte que eles demandam são muito difíceis de esconder. Do mesmo modo, mover combatentes e transportar aeronaves até mesmo em aeroportos em atividade ou em bases aéreas é algo que provavelmente é noticiado ao redor de uma vasta área geográfica – tão vasta que estabelecer controles sobre a informação provar-se-ia difícil. Isso seria especialmente verdade no caso de uma base aérea isolada e fora de uso há muito tempo, já que um grande aumento no barulho, com obras e vôos seriam imediatamente óbvios até mesmo para um observador desatento. Enquanto isso, também haveria transporte de cargas e material por via terrestre. Tudo isso seria difícil, senão impossível esconder de Moscou, visto que a FSB [a agência de inteligência] russa tem uma forte presença e um conhecimento da situação em ambos os países, e essas atividades não poderiam ser escondidas dos satélites espiões russos. Essas realidades logísticas levaram os EUA a cuidadosamente telegrafarem suas intenções anteriormente, tanto na Operação Escudo do Deserto e Tempestade no Deserto, em 1990-91, como na Operação Liberdade para o Iraque em 2003. A incapacidade de esconder um empreendimento desse porte não invalida uma grande campanha aérea, mas torna difícil ocultar os seus preparativos. E isso é mais do que apenas um desafio técnico. As razões para osEstados Unidos não atacarem o Irã – e fazer o que for necessário para dissuadir Israel disso – são evidentes. De acordo com as estimativas da inteligência americana, o Irã não decidiu se continua buscando o desenvolvimento de um dispositivo nuclear, e se decidir ir em frente levaria ao menos dois anos ainda para chegar ao ponto de uma limitada e rude capacidade nuclear. E há os desafios de saber onde atacar, visto que a inteligência é extremamente limitada quanto à localização das instalações nucleares iranianas. Nesse ínterim, a dinâmica política e de segurança no Iraque permanecem extremamente frágeis, e a economia global está marchando lentamente – a última coisa de que precisa é uma crise no Estreito deHormuz. A retirada norte-americana do Iraque, a missão no Afeganistão e a recuperação da economia são simplesmente prioridades mais elevadas para a Casa Branca, e há pouca indicação de uma mudança significativa nessas prioridades. Até onde se vê, a possibilidade real de os EUA atacarem o Irã é pouco mais do que uma ferramenta de negociação.
Tradução: Katarina Peixoto

29/06/2010

Desigualdade abissal

24 Junho 2010
Paulo Passarinho*
Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura; mentira, repetida inúmeras vezes, se transforma em verdade; ou, hegemonia também se constrói através do discurso, especialmente pela sua própria repetição foram algumas das sentenças que me vieram à cabeça quando li um recente artigo de Caetano Veloso. No texto, o artista, se declarando eleitor de Marina Silva, escreveu que entre Serra e Dilma ficaria com a candidata lulista, "porque ela defende a independência do Banco Central".
Uma amiga me explicou que é natural que seja assim, pois, se assim não for, o Banco Central fica subordinado aos políticos, sempre muito corruptos ou irresponsáveis. Ponderei que a solução da "independência" significa colocar o Banco Central sob comando dos bancos privados, principais beneficiários do modelo e da política econômica. Além de serem os principais financiadores dos tais políticos que não prestam...
Acho que deixei a minha amiga com uma pulga atrás da orelha, mas atentei para a força que determinadas "verdades", exaustivamente repetidas pela mídia dominante, exerce sobre todos nós.
E me ocorreu um outro fenômeno, ora em curso: acho que ninguém mais atenta, se importa ou acredita que continuamos submetidos a um modelo econômico totalmente controlado pelo sistema financeiro, e nocivo ao povo e à nação brasileira.
A razão desse fenômeno se relaciona a algumas versões construídas durante esses quase oito anos de governo Lula.
Desenvolvimentismo e distribuição de renda passaram a ser as maiores características de um "novo modelo" que teria se implantado no país. Marcio Pochmann, atual presidente do IPEA, em artigo publicado no O Globo, chegou a escrever que "nos últimos anos o Brasil passou a acusar importantes sinais de transição para o modelo social-desenvolvimentista".
Desenvolvimentismo deve ser traduzido por taxas de crescimento da economia, que nos teria retirado da estagnação econômica, marca deixada por nossa história econômica, de 1980 para cá.
O exame, contudo, das taxas de crescimento do país entre os anos de 2003 e 2009 não nos permite aceitar tanto otimismo. Nesse período, de acordo com dados oficiais e estudos do professor Reinaldo Gonçalves, o país cresceu a uma média de 3,5%. Esse resultado, primeiramente, nos coloca ainda muito distantes da média histórica de crescimento do PIB brasileiro. Entre 1890 e 2009, a taxa média de crescimento real foi de 4,5%. Entre 1932 e 1980, essa taxa chega a 6,8%.
Não restam dúvidas que houve mudanças no ritmo do crescimento econômico do país em relação ao governo anterior, de FHC, quando essa taxa média foi de apenas 2,3%. Mas, o próprio Reinaldo Gonçalves nos pondera que de 2003 a 2008 tivemos uma conjuntura internacional extremamente favorável. Nesse período, a renda mundial cresceu à taxa média real anual de 4,2% e o comércio mundial a uma taxa anual de 7,2%. Mesmo incluindo o ano de crise de 2009, essas taxas ficam respectivamente em 3,6% e 4,3%.
O resultado que alcançamos, assim, em termos da participação do Brasil na economia mundial, poderá surpreender a muitos: em 2002, tínhamos uma participação de 2,81% no PIB mundial, e agora, em 2009, representamos 2,79% da produção mundial.
Em termos mais diretos, esses dados nos mostram que, em comparação com os outros países, nós crescemos menos do que a maioria desses, não nos aproveitando a contento de uma conjuntura internacional extremamente favorável.
Mas, e a distribuição de renda?
Esse é um outro assunto que merece maior atenção do que as manchetes de jornais nos sugerem.
Primeiramente, de acordo com os dados da PNAD, existe uma melhor distribuição de renda entre aqueles que vivem de rendimentos do trabalho - salários, diárias, renda de autônomos. A PNAD capta com mais precisão esse tipo de rendimento, não cobrindo de forma adequada rendimentos típicos dos capitalistas, especialmente juros e lucros. Entretanto, esse é um processo que vem sendo observado desde 1995 e se associa a vários fatores: forte redução dos índices inflacionários; reajustes reais do salário-mínimo, programas de transferência de renda e a extensão de direitos da seguridade social.
A evolução do salário mínimo real, a partir de 1995, nos dá uma clara idéia desse processo. De acordo com o Dieese, e tendo o salário mínimo de julho de 1940 como referência para um índice igual a 100, em 1995 tivemos o mais baixo valor da história, com o índice de 24,53. Em 2003, esse índice já havia se recuperado, chegando a 30,70 (elevação de 25,15%, em relação a 1995), e em 2008 alcançou a 42,75 (elevação de 39,25%, em relação a 2003). Desse modo, entre 1995 e 2008, o crescimento real do valor do salário-mínimo foi de 74,28%, continuando a sua trajetória de elevação real até hoje, em 2010.
Mas, além desse importante dado sobre o salário-mínimo, tivemos o crescimento do emprego formal. O governo tem se utilizado dos dados do Caged - Cadastro Geral de Emprego e Desemprego do Ministério do Trabalho - para a divulgação de dados recordes de geração de empregos no país. Contudo, o que não se divulga com tanto estardalhaço é que os saldos positivos na geração de novos postos de trabalho no país ocorrem exclusivamente até a faixa salarial correspondente a dois salários-mínimos. A partir da faixa salarial entre dois e três SM's, o saldo de vagas é negativo. Não há, portanto, saldo positivo na geração de empregos nas faixas salariais acima de dois salários.
Esse fenômeno pode nos ajudar a entender os dados de um estudo do IPEA que apontou que, entre 2002 e 2008, trabalhadores brasileiros mais qualificados (na verdade, com mais de 9 anos de estudo) tiveram, na média, queda nos seus rendimentos. Esse estudo aponta que nas ocupações que exigem um nível de escolaridade acima de onze anos, por exemplo, houve uma redução no salário médio de mais de 12%, neste período considerado.
Dessa forma, muito antes de festejarmos a criação de uma nova classe média ou a ascensão de milhões a uma nova classe social, o que devemos admitir é que temos reduzido de fato o número de miseráveis.
E, principalmente, em função da extensão de mecanismos de crédito aos mais pobres - com prazos de pagamento extremamente elásticos, além de taxas de juros que garantem altíssimas rentabilidades aos financiadores -, houve um aumento do consumo de bens duráveis para uma imensa parcela da população.
Neste contexto, mecanismos como o crédito consignado ou a ampliação da oferta dos serviços de cartão de crédito, estimularam esse tipo de consumo, através principalmente do aumento do nível de endividamento das famílias.
Confundir esse processo em curso com o fortalecimento da classe média, me parece uma grosseira simplificação. O propalado crescimento da chamada "classe C" - para estudos veiculados pela FGV-RJ, e com ampla repercussão na imprensa (para muitos, golpista) brasileiros com uma renda familiar de R$ 1.200,00 já estariam classificados nessa categoria! - deveria ser analisado com mais critério e cuidado.
E, antes de chegarmos a conclusões rápidas ou superficiais, sobre um processo de real melhoria da distribuição de rendas - incluindo os capitalistas, é claro - no Brasil, é importante assinalar que mantemos uma das estruturas tributárias das mais regressivas do mundo. E, ao mesmo tempo, a política fiscal praticada pelo governo - onde no ano passado, por exemplo, mais de 35% do Orçamento Geral da União se destinaram ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública - privilegia, de forma escancarada, aos mais ricos.
Por tudo isso, prefiro ficar com as palavras de Jessé Souza, coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor do livro A Ralé Brasileira. Em recente entrevista, ele afirmou: "Esses índices mostram apenas que a pobreza absoluta diminuiu. Mas a desigualdade é um conceito relacional. O Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta. Entre 30% e 40% de sua população tem inserção precária no mercado e na esfera pública. Somos uma sociedade altamente conservadora, que aceita conviver com parcela significativa da população vivendo como "subgente". Essa c lasse social, que chamamos provocativamente de "ralé", é a mão de obra barata para as classes média e alta que podem - contando com o exército de empregadas, motoboys, porteiros, carregadores, babás e prostitutas - se dedicar às ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio. É isso que chamo de "desigualdade abissal" como nosso problema central".
Desigualdade abissal que - sem uma profunda alteração do modelo econômico em curso, com uma total alteração da política econômica dos banqueiros - não será alterada.
*Paulo Passarinho é economista e presidente do CORECON-RJ

28/06/2010

PELO REAJUSTE DE TODAS AS APOSENTADORIAS PELO SALÁRIO MÍNIMO E FIM DO FATOR PREVIDENCIÁRIO

Renato Nucci Junior
(Membro do Comitê Central do PCB)

O governo Lula, contrariando expectativas geradas por suas próprias declarações sancionou, em 15 de junho, projeto aprovado no Congresso que garante reajuste de 7,72% para as aposentadorias com valor acima do salário mínimo. Lula vetou, porém, o fim do fator previdenciário. A sanção de Lula ao projeto aprovado no Congresso é o capítulo final de uma novela iniciada em 2009 entre seu governo e as duas principais centrais sindicais governistas: CUT e Força Sindical. Ambas agiram conjuntamente no sentido de esvaziar a aprovação pelo Congresso do PL 1/07, que garantia a todas as aposentadorias o mesmo reajuste aplicado ao salário mínimo, bem como do PL 3.299/08, que punha fim ao fator previdenciário, os dois de autoria do Senador Paulo Paim (PT/RS). Caso fossem aprovados, passariam a depender do veto ou sanção de Lula, colocando tanto o seu governo como sua bancada de apoio no Congresso em uma tremenda saia justa.
Para poupar o governo de maiores constrangimentos, pois os dois projetos já tinham sido aprovados no Senado devido a uma pressão das associações de aposentados, as centrais acertaram com o deputado Pepe Vargas (PT/RS), relator do PL 3.299/08, uma proposta alternativa. No caso do fator previdenciário, acertou-se um protocolo de intenções que levassem à substituição do fator previdenciário para a fórmula 85/95. Na fórmula sugerida pela CUT, seria garantida a aposentadoria integral sem qualquer redutor, caso a soma do tempo de contribuição com a idade chegasse em 85 para as mulheres e 95 para os homens.
No caso do reajuste das aposentadorias, acertou-se com o governo no mesmo protocolo de intenções, que as aposentadorias com valor maior do que o mínimo teria por base a inflação medida pelo INPC mais a metade do crescimento do PIB de 2009. O índice a que se chegou foi de 6,14% a ser aplicado em 1º de janeiro de 2010, bem distante dos 9% aplicados ao salário mínimo e às aposentadorias com idêntico valor. A proposta foi enviada pelo governo ao Congresso através da Medida Provisória 475/2009. Porém, na Câmara dos Deputados foram apresentadas várias emendas quanto ao índice de correção relacionado ao PIB. A que ganhou apoio dos líderes de bancada foi a emenda apresentada pelo deputado Paulinho da Força (PDT/SP), líder da mesma central que meses antes havia ajudado a barrar o PL 3.299/08, de conteúdo mais avançado, pois garantia indefinidamente para todas as aposentadorias o mesmo reajuste aplicado ao salário mínimo. A emenda propunha a correção do índice em 80% do PIB e não a metade acertada pelas centrais com o governo. O resultado foi uma a elevação do índice dos 6,14% iniciais para 7,72%. Outra emenda à MP 475/2009, de autoria do Deputado Federal Fernando Coruja (PPS/SC), punha fim ao fator previdenciário. Ao ir à votação no Congresso as duas emendas foram aprovadas, com votos da própria base de apoio do governo, que temiam reprovar medidas de grande interesse popular em um ano eleitoral, quando deputados e senadores estão de olho na reeleição.
Coube a Lula, no derradeiro capítulo dessa novela, a responsabilidade individual em tomar uma decisão que lhe confere o cargo: sancionar ou vetar a MP com as alterações aprovadas pelo Congresso. O presidente se viu metido, por sua própria base de apoio no Congresso, em uma encalacrada. Se vetasse as alterações propostas pelo Congresso em sua MP, daria munição a setores da oposição burguesa (DEM, PSDB e PPS) para queimá-lo e, por tabela, respingos cairiam em Dilma Roussef, sua candidata presidencial. Por outro, se sancionasse o projeto, seria acusado por outros setores da mesma oposição burguesa de populismo e irresponsabilidade fiscal, provocando desconfianças junto à própria burguesia, que em bloco refuta qualquer medida tendente a ampliar os gastos do governo, ainda mais em áreas de interesse popular. A saída de Lula foi postergar ao máximo sua decisão, tomando-a justamente em 15 de junho, quando as atenções nacionais se voltavam para a estréia do Brasil na Copa. Por fim, Lula sancionou o reajuste de 7,72%, mas vetou o fim do fator previdenciário. Mas por quê essa escolha? Por quê aprovar o reajuste, mas vetar o fim do fator?
A escolha entre sancionar um e vetar o outro, segue uma lógica que passa pelos cálculos eleitorais, sobre o que resultaria em menor perda de votos, mas a transcende, ancorando-se em cálculos de natureza política e que visam manter a estrutura de um sistema previdenciário desfavorável aos interesses dos trabalhadores. Vejamos. O reajuste de todas as aposentadorias em 7,72%, como vimos, é medida pontual, não se configurando em uma completa mudança no mecanismo de cálculo. Mantém-se a estrutura de reajustes diferenciados entre os aposentados que recebem um salário mínimo e os que ganham mais do que o mínimo. O governo até pode a partir dessa experiência, para o reajuste das aposentadorias em 2011, apresentar ao Congresso índices diferenciados, mas já prevendo, para evitar desgastes e dar certa legitimidade à ação legislativa, a possibilidade de uma emenda que eleve um pouco mais a proposta inicial. Assistiríamos, assim, a uma grande representação no Congresso, entre um governo e seus líderes parlamentares em luta para manter o equilíbrio das contas públicas, contra a irresponsabilidade de parlamentares que de olho em votos futuros se arvorariam repentinamente em defensores do povo, sofrendo a acusação, por parte de economistas e dos editores e jornalistas econômicos de serem populistas e irresponsáveis, por não se preocuparem com as contas públicas. Ao fim e ao cabo de muita encenação, chegariam, governo e parlamentares tanto da situação como da oposição, a um acordo considerado “bom para todos”, mas sem alterar uma vírgula sequer no reajuste diferenciado entre as aposentadorias. Quanto aos custos adicionais gerados por essa elevação, sua cobertura viria de cortes em outras áreas e fontes de custeio e em uma limitação das emendas parlamentares ao Orçamento. Essa é a maneira como o governo cobrirá o custo adicional de R$ 1,6 bilhão por causa do reajuste de 7,72%.
Com o fator previdenciário é diferente. Seu fim representaria uma mudança substancial nas políticas aplicadas nas duas últimas décadas no sistema de aposentadorias, que consistem num ataque profundo aos direitos dos trabalhadores. Mas o que é o fator previdenciário de que tanto ouvimos falar? O fator foi criado pela Lei 9.876/99, no segundo mandato de FHC. Ele se insere no conjunto de reformas regressivas inauguradas pelos governos neoliberais brasileiros a partir da década de 1990, especialmente com Fernando Henrique, mas mantidas e aprofundadas nas duas gestões de Lula, que tem como um dos alvos principais a previdência social. Esse ataque é parte de uma estratégia do capital, que visa retroceder as conquistas econômicas, políticas e sociais alcançadas pelos trabalhadores brasileiros, principalmente na Constituição de 1988, com o desmonte de todas as políticas sociais. A principal justificativa seria a de impedir as chamadas aposentadorias precoces, como forma de reduzir o inexistente déficit da previdência, evitando um suposto desequilíbrio das contas públicas.
O fator previdenciário é uma fórmula de cálculo para a concessão das aposentadorias, cujas variáveis são idade mínima (63 anos e 4 meses para os homens e 58 anos e 4 meses para as mulheres), a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do trabalhador (35 anos para os homens e 30 anos para as mulheres). Para um trabalhador se aposentar recebendo a média integral, ele tem de combinar todos esses fatores. Caso não consiga, o que é a regra geral, os trabalhadores sofrem enormes prejuízos, levando na maioria dos casos ao pagamento de um “pedágio” por aqueles que não atingem idade e tempo mínimo de contribuição, reduzindo drasticamente o valor das aposentadorias. Em 2007, essa redução por causa do fator previdenciário significou uma diminuição no valor das aposentadorias, em 30% para os homens e 36% para as mulheres. Trata-se, portanto, de uma medida desigual e injusta para os trabalhadores brasileiros, que começam a labutar muito cedo, em empregos informais e onde são obrigados a contribuir mais tempo para atingir a média integral.
É nesse contexto, marcado por uma eleição presidencial onde pretende fazer a sua sucessora e calculando o que seria menos prejudicial à manutenção de um sistema previdenciário desfavorável ao trabalhador, que o governo Lula sancionou o reajuste de 7,72%, mas vetou o fim do fator previdenciário. Como demonstramos, o reajuste ainda fica abaixo do valor aplicado ao salário mínimo e é pontual. Porém, o fator previdenciário é diferente, pois se trata de uma medida inserida em uma política de desmonte dos serviços públicos e dos direitos sociais e trabalhistas, cujo fim acarretaria prejuízos aos interesses de frações do capital cujos lucros advém dos juros ganhos com os títulos públicos. A desculpa manifestada por tais frações, reverberada pela grande imprensa e garantida pelo governo Lula, é sempre a de manter o equilíbrio fiscal. Traduzindo, os gastos com o custeio da máquina pública, além da previdência e os investimentos em saúde e educação, por exemplo, devem ser limitados, pois primeiro deve-se garantir o pagamento dos detentores de títulos da dívida pública. Só em 2009, 36% do Orçamento da União, R$ 380 bilhões, foi destinado ao pagamento dos juros da dívida pública. É para isso que servem os superávits primários, uma economia feita pelo setor público no que tange a investimentos sempre no sentido de gerar um saldo positivo nas contas públicas, cuja finalidade é garantir recursos para o pagamento dos juros da dívida pública. E é para isso, também, que o governo Lula, seguindo os passos de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, mantém no caso da previdência uma política que ataca os interesses dos aposentados e trabalhadores.
Por essas razões, aposentados, pensionistas e trabalhadores ainda na ativa tem uma grande luta pela frente. Em primeiro lugar é preciso garantir para todas as aposentadorias o mesmo índice de reajuste do salário mínimo e uma política de recuperação no valor das aposentadorias e pensões, bem como pôr fim ao fator previdenciário e a qualquer critério que estabeleça idade mínima para a aposentadoria. O reajuste de 7,72% é uma vitória parcial, pois ainda se mantém abaixo do índice aplicado ao salário mínimo e o fator previdenciário ainda impera, atacando os interesses daqueles que após anos de exploração e trabalho árduo, vê o gozo do seu direito à aposentadoria se tornar cada vez mais distante. Nessa luta, seus principais inimigos são os poderosos interesses de frações da classe dominante brasileira, que tem no pagamento dos juros dos títulos públicos uma importante fonte de acumulação de capital. Uma luta que não pode poupar o governo Lula, que no comando da máquina de Estado, administra-o para atender os interesses de uma burguesia parasitária que ganha muito dinheiro às custas da miséria dos trabalhadores.

Campinas, junho de 2010.