05/09/2008

Um processo infame contra Carlos Lozano


Por Juan Cendales (de Rebelión); tradução: Ítalo Rocha

Será realizado em Bogotá, neste mês, o interrogatório de Carlos Lozano - membro do Comitê Central do Partido Comunista Colombiano, Diretor do semanário A VOZ e integrante da Direção Nacional do Pólo Democrático Alternativo - sob a acusação de supostos vínculos com as FARC, por haver "se excedido" em suas funções de mediador, dizem os acusadores. Alguns dizem que as acusações incluem até o terrorismo e, segundo um comentarista de imprensa, por "não haver feito os esforços necessários para que o PCC renegasse a teoria da combinação de todas as formas de luta".

É óbvio que não é um julgamento contra uma pessoa.
Inicia-se, na Colômbia, um processo de repressão contra o Partido Comunista Colombiano e contra os sobreviventes do genocídio da União Patriótica. Os autores e cúmplices do genocídio contra a UP e o PCC estão ansiosos. O Vice-presidente Santos saiu repentinamente de seu
silêncio prolongado para lançar sandices e impropérios contra o Partido Comunista e contra a União Patriótica. O jornal O Tempo, de sua propriedade, publicou um texto de um militar especialista em difamação.

Nota-se claramente que se trata de uma campanha articulada. Entre outras coisas, buscam desesperadamente atenuar a sentença que a Corte Interamericana deverá aplicar contra o Estado colombiano, pelo genocídio contra a UP e o PCC. Será a maior condenação que algum Estado já terá recebido nestes organismos.

Contra Carlos Lozano não existem elementos para nenhum julgamento. Trata-se de uma
aberta perseguição política do governo através de uma questionada Promotoria.
Será que a acusação de terrorismo tem a ver com a bomba que explodiu no semanário A Voz, em Bogotá, quando Carlos já era seu Diretor? Ou se refere a outra poderosa bomba que deixaram em frente à nova sede de A Voz e que não conseguiu explodir, há apenas dois anos atrás? Ou as tantas vezes que os seguranças ou o próprio Carlos enfrentaram agentes que os seguem provocativamente por toda Bogotá?

O processo que se pretende instaurar na Colômbia trata de dois crimes muito especiais: o crime de opinião e o crime de sobrevivência. Não se pode pensar diferente de como pensa o príncipe, porque isso é um crime. E o outro crime, muito mais grave, mais condenável e perseguido com furor e paixão pelo uribismo é o crime de sobreviver. Carlos Lozano, como a maioria dos atuais dirigentes do Partido Comunista Colombiano, pertence a uma geração de dirigentes que sobrevivem aos mais espantosos genocídios e perseguições. Uma geração que perdeu os seus melhores amigos e camaradas, que um a um foram caindo crivados pelas balas do regime. Deste mesmo regime que hoje julga os sobreviventes.

Sobreviver agora é subversivo. Leonardo Posada, José Antequera, Bernardo Jaramillo, Millar Chacón. São só alguns nomes dessa geração liquidada. Junto a outros um pouco mais velhos, como Manuel Cepeda, Jaime Pardo Leal, Teofilo Forero e outros cinco mil mortos. Não seria nada estranho que, de acordo com a lógica de Uribe e de Santos, eles também sejam chamados a julgamento. Podiam acusá-los talvez de morte ilícita. De terem se excedido em suas mortes. Ou algo parecido. Pode-se esperar qualquer coisa deste regime putrefato do uribismo. Por isso, se requer agora, sem hesitações e sem titubear, a maior solidariedade anti-fascista.

"LATINO-AMERICANOS, UNI-VOS"

04/09/2008

PARAGUAI: um país em disputa!

Ivan Pinheiro(*)

Na abertura da cerimônia de posse de Fernando Lugo, ouviu-se duas vezes seguidas o Hino Nacional. Na primeira, cantada em espanhol, os comandantes militares encheram o peito, perfilaram-se e colocaram a mão direita em continência. Na segunda, em guarani, eles se descontraíram e arriaram os braços. Em seguida, ouviram inertes o novo Presidente anunciar, entre outras intenções, que acabará com a corrupção e que as Forças Armadas terão que passar ao povo segurança e respeito, ao invés de medo.
A posse foi marcada pela esperança popular, após sessenta anos do mesmo partido conservador no poder. 96% dos paraguaios confiam que haverá mudanças positivas. Houve simbolismo até no tratamento aos chefes de Estado da América do Sul. Foram marcantes as ausências de Alan Garcia, do Peru, e Álvaro Uribe, da Colômbia. Foi impressionante o recado do povo paraguaio, ao aplaudir os presentes exatamente na proporção das mudanças que promovem em seus países, na seguinte ordem crescente: Tabaré Vasquez, Bachelet, Lula, Cristina Kirchner, Rafael Correa, Evo Morales e Hugo Chávez.
Uma semana depois da posse, a primeira providência de Lugo foi substituir os comandantes militares. A segunda foi decretar o início da reforma agrária, exatamente em terras onde o ditador Strossner expulsou guaranis para doá-las ilegalmente a aliados, incluindo alguns colegas de farda.
Mas apesar da manifesta vontade política do novo Presidente e de seus compromissos com os movimentos sociais, sobretudo indígenas e camponeses, serão enormes as dificuldades para levar adiante seu programa de mudanças democráticas, populares e nacionais:
- o Paraguai se ressente até hoje do massacre levado a efeito pela chamada Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) - lá chamada de "Tríplice Infâmia" - que dizimou quase toda a população, especialmente a masculina. As tropas brasileiras, ao se retirarem, saquearam o país, inclusive o Arquivo Nacional paraguaio, absurdamente ainda não devolvido pelo nosso governo.
- o país conta com menos de seis milhões de habitantes, cuja maioria vive na pobreza e no analfabetismo. A população é submetida a uma alienação profunda. O país é satélite econômico e cultural dos Estados Unidos e "sócio de luxo" de Taiwan: à falta de indústrias, exporta matérias-primas e importa quase tudo, inclusive bugigangas para intermediar.
- a frente que elegeu Lugo é heterogênea: - APC (Alianza Patriótica para el Cambio) - Partido Liberal e Tekojoja; - APS (Alianza Patriótica Socialista) - Partido Comunista Paraguaio, Partido Convergência Popular Socialista, Partido da Unidade Popular, Plenária Política Campesina e Indígena etc; - PMAS (Partido do Movimento ao Socialismo).
- o Vice-Presidente é do Partido Liberal, um partido social-liberal. É o partido mais forte dos que apoiaram Lugo e o único deles que elegeu representantes: quase um terço dos Deputados e Senadores, além de alguns governadores e prefeitos.
- os Colorados (há 60 anos no poder) têm as maiores bancadas no Congresso Nacional (Câmara e Senado), além do maior número de Governadores e Prefeitos; em aliança com o partido de Lino Oviedo, a oposição de direita tem dois terços das duas casas legislativas. O outro terço é de liberais.
- os partidos de esquerda estão em reconstrução. Nenhum deles elegeu parlamentares ao Congresso Nacional, nem governadores e prefeitos. Só o Tekejoja elegeu um deputado, mas específico para o Parlatino. O novo Presidente é filiado a esse partido, criado por movimentos sociais antes das eleições.
- Fernando Lugo terá que conviver com uma cúpula burocrática corrupta e reacionária: colorados ocupam os principais cargos na Justiça, no Corpo Diplomático, nas Forças Armadas, nos Ministérios, no Congresso Nacional e até na Presidência da República e no Palácio de Governo. Uma das maiores fontes de corrupção é Itaipu Binacional.
- a classe operária e os sindicatos têm pouco peso político. Com o avanço avassalador do agronegócio (o país é o quarto produtor mundial de soja), o papel do campesinato também diminuiu.
- os jornais diários e canais de televisão são todos burgueses.
A fronteira e a identidade cultural com a Bolívia podem ajudar na consolidação do processo de mudança, ainda que os povos originários no Paraguai não tenham o peso quantitativo e qualitativo que têm naquele país vizinho.
No entanto, a necessidade de saída para o mar e de renegociação dos acordos energéticos com Brasil e Argentina podem levar Lugo a gravitar em torno dos governos desses dois países, exatamente dos mais moderados, do ponto de vista de mudanças. Lula e a nossa esperta diplomacia podem se valer da situação para fortalecer no Paraguai os interesses da burguesia brasileira, integrada ao capital internacional. Ao invés de territórios, como no passado, agora conquistamos mercados.
O Presidente está sendo obrigado a compor o governo com a velha fórmula de destinar os ministérios econômicos para conservadores (como o Ministério da Fazenda, entregue a um ex-ministro de Nicanor Duarte, afinado com as políticas do FMI) e os ministérios políticos e sociais para progressistas.
Se resolver ser fiel às promessas de mudanças, Lugo terá que adotar no curto prazo ações emergenciais destinadas a mitigar alguns problemas sociais, para não perder a credibilidade popular, criando condições para uma governabilidade social, já que não disporá de governabilidade institucional, salvo se trair seu programa. Essas ações servem também para evitar um golpe da direita, que começou a ser costurado quinze dias após a posse, conforme Lugo denunciou publicamente. Afinal, a direita paraguaia é articulada com o imperialismo norte-americano, que mantém, perto do aeroporto de Assunção, uma base de espionagem para todo o Cone Sul. O Paraguai tem uma das maiores reservas de água potável do mundo, o Aqüífero Guarani.
A convocação de uma Assembléia Constituinte específica, com composição distinta do Congresso Nacional e aberta a candidaturas de partidos e movimentos sociais, pode ser uma alternativa para mudar a correlação de forças, desde que precedida de medidas sociais efetivas e de grandes mobilizações populares.
Talvez o melhor modelo ainda seja o que está dando certo na Venezuela, no Equador e na Bolívia, cujos Presidentes se elegeram sem maioria no parlamento ou sem nenhum parlamentar, como foi também o caso de Rafael Correa. O Presidente convoca uma consulta popular, através de plebiscito, para o povo decidir se quer convocar uma Constituinte específica.
Mas para começar a enfrentar alguns problemas sociais o Presidente só dispõe de uma fonte: a água, que pode representar para ele o que o petróleo representa para Hugo Chávez e o gás para Evo Morales.
Mas isso dependerá de uma melhor remuneração do excedente de energia elétrica que o país vende, sobretudo para o Brasil, pois não consome mais do que 5% da produção. Daí a necessidade de renegociar com o Brasil o acordo de Itaipu Binacional, assinado por ditaduras nos dois países, em 1973, pelo prazo de 50 anos!
Temos com o Paraguai uma dívida humanitária. O Brasil é co-responsável pela situação de miséria em que vive a maioria do povo paraguaio. Portanto, cabe-nos pressionar o governo brasileiro a renegociar os termos do acordo de Itaipu, como uma reparação histórica, não como uma oportunidade de negócios.
Não há um país na América do Sul em que nossa solidariedade pode ajudar tão concretamente um povo irmão e vizinho a viver melhor.
(*) - Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB (Partido Comunista Brasileiro)

02/09/2008

No referendo, o sinal para a virada

Ao discursar no início do ano, vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, antecipava: uma consulta popular poderia ser ponto de bifurcação para mudanças profundas. Diplô Brasil publica a fala, que vê o país envolto em revolução radical — porém pacífica, democrática e inclusiva
Por: Álvaro Garcia Linera

Nessa sessão inaugural do Congresso Nacional, com o objetivo de refletir o que se passa hoje na Bolívia, quero compartilhar com vocês, de maneira muito breve, três conceitos: o da revolução, o da transição estatal e o de Estado.
O que é, em sentido estrito, uma revolução? Fundamentalmente, trata-se de uma transformação radical, rápida, sob controle do poder do Estado. Isso significa, em primeiro lugar, que em toda revolução se dá a formação de uma nova colisão de classes sociais e de grupos culturais anteriormente marginalizados do poder político e que agora assumem o controle direto do poder do Estado.
Uma revolução é, também, uma mudança rápida do poder estatal de um bloco de classes sociais a outro. Quando essa mudança do poder do Estado é feita através da força, falamos de uma revolução violenta. Tanto a Bolívia como outros países do mundo têm exemplos de revoluções violentas. Agora, quando a transição de um bloco social de classes a outro sob poder do Estado realiza-se por meios pacíficos e eleitorais, falamos de uma revolução democrática. Ambas, revoluções violentas e democráticas, são uma transformação do Estado – podendo-se, dessa forma, chamá-las de revoluções políticas.
Quando a mudança política não só modifica a estrutura do Estado mas também a estrutura econômica da sociedade e seus hábitos culturais, falamos de uma revolução sócio-cultural. Nem toda revolução política é necessariamente uma revolução sócio-cultural. Somente o será, quando essa mudança do bloco sob o poder do Estado gerar transformações estruturais na economia, na cultura e nos hábitos da sociedade.
O que modifica, em profundidade, uma revolução? Quem controla, de maneira estrutural, o poder do Estado?
"Quando quem passa a ocupar o poder são classes totalmente distintas, falamos de uma revolução. E ele é tão mais radical quanto maior for a distância entre o bloco dominante antigo e o novo"
Quando essa modificação se dá no interior de um mesmo grupo de classes sociais, é simplesmente uma transição política ou uma reacomodação do mesmo bloco no poder. Mas quando quem passa a ocupar o poder são classes sociais totalmente diferentes ao governo anterior, falamos de uma revolução. Neste caso, a distância entre a bloco dominante antigo — deslocado do poder —, e o bloco emergente é diretamente proporcional à radicalidade de uma revolução.
Mas o que é esse Estado do qual estamos falando? Em termos sintéticos, podemos dizer que um Estado é, em primeira instância, em seu fundamento íntimo e elementar, monopólio da coerção legítima e dos tributos. Em sua composição e estrutura articulada, um Estado é uma correlação de forças; uma institucionalidade; e um sentido comum.
Quando dizemos correlação de forças, significa que existem grupos e classes sociais que têm maior capacidade de incidência na tomada de decisões políticas e econômicas, no controle da coerção legítima, na modificação de pressupostos, nos contratos públicos, na administração da justiça, na viabilização de investimentos, na planificação cultural etc. Em toda sociedade moderna e enquanto houver Estado, haverá classes sociais com menos capacidade de influência. A isso, damos o nome de correlação de forças.
A institucionalidade do Estado, seus poderes Executivo, Legislativo e Judicia, suas normas, trâmites, burocracia, memória são as maneiras pelas quais essa correlação de forças se consagra, materializa-se, objetiva-se, e se torna procedimento, norma e memória do Estado.
E, por último, um Estado é um sentido nacional comum. Ou seja, um conjunto de idéias dirigentes, em torno das quais governantes e governados organizamos e imaginamos nosso destino comum para as décadas seguintes.
"Uma crise de Estado torna-se visível quando pedaços importantes da sociedade, anteriormente apáticos, mobilizam-se por outros projetos de vida econômica e política. A Bolívia vive um processo assim desde 2000"
Por iso, uma revolução que transforma o Estado é um processo político que muda a correlação de forças; troca um grupo social por outro; é um processo político que modifica as instituições, as formas como se objetivam as correlações de forças; e, fundamentalmente, uma revolução é uma modificação mental que transforma em sentido comum da sociedade, das percepções, dos desejos e a maneira como uma sociedade imagina seu destino, o de seus filhos, de sua comunidade, de sua pátria.
Com estas idéias teóricas gerais, queria refletir com vocês sobre como essa mudança estrutural do Estado está acontecendo na Bolívia. De um Estado neoliberal para um Estado que podemos chamar: social, pluricultural e autônomo.
Toda revolução, toda a transição estatal passa por um largo processo – não acontece da noite para o dia. A revolução boliviana que teve sua coroação em 1952, foi precedida, ao menos, por sete anos de gestação e, por último, de culminação. As crises bolivianas de Estado, — que seguimos vivendo hoje —, visualizou-se em 2000. O primeiro momento de uma crise de Estado ou de uma revolução é o momento da visualização das crises.
Quais são as características da visualização de uma crise de Estado ou de uma revolução? Primeiro, o governo legalmente constituído perde o controle das expectativas e das aspirações de uma parte relativamente importante da sociedade. Em segundo lugar, o governo perde a liderança política, portanto, estamos diante de governos em momentos de crises de Estado, que já não têm capacidade de seduzir os cidadãos. Em terceiro lugar, a cise de Estado manifesta-se quando o controle das Forças Armadas racha, ou quando organismos legítimos da coerção da sociedade entram em contradição e cisões internas. Por último, uma crise de Estado é visualizada quando pedaços importantes da sociedade, anteriormente apáticos, mobilizam-se com outros projetos de vida econômica e política. A Bolívia viveu esses momentos no ano 2000 – dias dramáticos de crises, mas que deram lugar a todo processo que dura até hoje.
"O novo imaginário de país é marcado pela nacionalização dos recursos naturais, pela igualdade entre os povos indígenas e mestiços e pela busca da distribuição territorial do poder do Estado, sob a forma de descentralização ou autonomia"
O segundo momento da crise de Estado ou da revolução é o que chamamos, segundo Gramsci, o empate catastrófico.
O empate catastrófico significa a emergência de um bloco social com vontade de disputar o poder de Estado em nível nacional. A chave para um empate catastrófico acontece quando antigas coalizões do velho poder têm à frente um novo bloco emergente com ânsias de poder político – do poder do Estado. Isso é justamente o que se sucedeu com os movimentos sociais bolivianos. Da atitude sindicalista reivindicativa, que caracterizou os anos 1980 e 1990, eles passam, nos anos 2000, a assumir uma vontade de poder estatal e a dar início a esse empate catastrófico.
Em segundo lugar, um empate catastrófico surge quando se confrontam duas visões de país, duas visões de mundo que disputam o imaginário e a esperança da coletividade social. No período de 2003 - 2005, esse empate catastrófico apresentou-se com uma disputa entre dois horizontes. São dois imaginários coletivos: um, o dos últimos 20 anos, em que predominava o apego às privatizações, ao investimento estrangeiro, a uma globalização descontrolada, à conformação de coalizões partidárias para dar governabilidade e a um tipo de colonialismo interno disfarçado; o outro, o que se confrontou com o primeiro com vontade de poder e que deu lugar ao empate catastrófico, foi um novo horizonte de país marcado pela nacionalização dos recursos naturais, pela igualdade entre os povos indígenas e mestiços e pela busca da distribuição territorial do poder do Estado sob a forma de descentralização ou de autonomia.
Existe empate catastrófico quando há um bloco social que busca disputar o poder em escala nacional, quando há visões de país confrontadas e quando esse bloco com vontade de poder tem a capacidade de mobilizar, em escala nacional, distintos segmentos sociais. A Bolívia viveu tal empate catastrófico em torno de 2005.
"A terceira etapa da revolução, a que chegamos nas eleições de 2005, permite que novas classes, povos e identidades culturais tenham capacidade de influir no âmbito público estatal, sem necessidade de alianças políticas"
Em dezembro de 2005, o país entrou numa terceira etapa da revolução ou da crise estatal, como podemos chamar: a conquista democrática do poder político. Por meio de eleições, modificaram-se as estruturas de classes, povos e identidades culturais, que hoje têm maior capacidade de decisão no âmbito público estatal sem necessidade de alianças políticas. Isso, somado à distância cultural entre as forças sociais vitoriosas e as derrotadas poderia, sem dúvida, ajudar a explicar o processo de polarização que posteriormente o país viveu, já que os canais de vinculação nos hábitos, na vida cotidiana e na própria gestão de governo, são bastante escassos. Isso gerou distanciamentos entre o bloco do poder ascendente e o bloco de poder decadente.
Uma quarta etapa de um processo revolucionário é a expansão e assentamento nacional e institucional do novo poder; um processo de irradiação das novas decisões, os novos horizontes do bloco de poder emergente. No caso da Bolívia, isso se deu através de um conjunto de medidas institucionais. No plano econômico: primeiro a recuperação dos recursos naturais, que modificou a relação do Estado boliviano com a economia mundial. Agora, 75% da da renda petroleira é apropriada publicamente, o chamado government take. Em segundo lugar, uma nova política de terras; em terceiro, um papel renovado na construção de empresas do Estado competitivas e adequadas aos tempos modernos e de transformações tecnológicas. Já no plano político: o referendo que procura institucionalizar a nova correlação de forças no âmbito nacional.
Por último, a expansão e assentamento nacional do novo bloco de poder se deu, fundamentalmente, por meio da consolidação de um só horizonte nacional, de um só ideário de transformação social. Sejamos de esquerda ou de direita, tenhamos posições mais ou menos conservadoras ou mais ou menos radicais, hoje a política da Bolívia apresenta quatro fundamentos – e ninguém que queria fazer política no país pode afastar-se deles.
O primeiro é o papel econômico protagonista, decisivo e condutor do Estado. O segundo fundamento da política do século 21, pelo menos nessas duas décadas, é a igualdade: mestiços e indígenas, indígenas e mestiços, com direitos iguais, sentados na mesma mesa, definindo a economia, a política e o rumo da sociedade. O terceiro fundamento da política é a redistribuição da riqueza; ninguém discute hoje a necessidade e obrigatoriedade de quitar a dívida e a ferida social de uma pátria agoniada pela pobreza. E o quarto é a redistribuição territorial do poder do Estado.
"É nítida a cisão do bloco conservador. Uma vertente busca o poder político a longo prazo, por meios democráticos. Lamentavelmente, há também um bloco conservador radical e violento, que felizmente é minoritário"
Hoje em dia na Bolívia, não se confrontam duas visões de país. Em algum momento, possivelmente, poderia surgir uma nova visão de país com vontade de poder, é provável, teoricamente deve-se considerar a hipótese, mas nesses anos, nesse meses, existe somente uma visão de poder. A diferença – e isso se comprovou muitas vezes no debate no Senado ou com os prefeitos – é como se acentua ou se intensifica um e outro dos quatro pilares; uns querem uma desconcentração territorial do poder mais rápida; já outros, querem acelerar o papel protagonista do Estado na economia.
Mas hoje, quem quem quiser fazer política na Bolívia, tem que obrigatoriamente ocupar-se destes quatro princípios. Portanto, falamos da consolidação e da vitória irreversíveis, de um único sentido comum e um único projeto de transformação estatal. Diferenças existem nas velocidades, acentuações, mas todos – esquerda e direita, moderados ou radicais – movemos nossa atividade política em torno desses quatro princípios.
Uma quinta etapa do processo revolucionário, paralela a quarta, é, sem dúvida, o recuo do antigo bloco de poder, das forças conservadoras, ao plano regional – e sua adequação parcial ao novo sentido comum. Há uma crise interna de lideranças e, é nítido, uma cisão do bloco conservador, configurando-se duas vertentes. Uma delas, democrática, assume a busca do poder político a longo prazo, por meio de métodos democráticos: da luta eleitoral, do Congresso, do debate ideológico. Lamentavelmente, surge também um bloco conservador radical e violento, felizmente minoritário, mas que expressa uma conseqüência política de toda revolução: o surgimento de setores que gostariam mudar o curso do processo político servindo-se da violência e da intolerância.
Por último, toda revolução tem o que chamamos de um ponto de bifurcação, que não tem nada a ver com o racha da sociedade, como mal interpretou algum comentarista. O ponto de bifurcação, que de fato é um conceito da física, da termodinâmica, do professor Ilya Prigogino, está associado com o surgimento de ordem a partir da incerteza, a construção da estabilidade a partir da instabilidade.
"A grande aposta do governo nacional e das forças políticas do Congresso é que a nova bifurcação se dê da mesma forma como começou esta revolução: por meios democráticos, pacíficos e eleitorais"
Estamos vivendo um momento de instabilidade e toda revolução, em suas cinco ou seis etapas, tem momentos de instabilidade. O momento em que a instabilidade amadurece, para parir uma estabilização do sistema estatal e politico, é o do ponto de bifurcação e estabilização do novo Estado. Quando chegará tal ponto de bifurcação, última etapa deste processo revolucionário, é algo que os atores políticos deverão definir.
Permitam-me lembrar dois momentos de pontos de bifurcação. O primeiro – violento – deu-se em 1952. A revolução aconteceu em 1947, a vitória eleitoral em 1951 e o ponto de bifurcação em 1952, com uma insurreição. Outro exemplo, mas não violento, foi em 1986. O velho Estado nacional popular caía e emergia, vigoroso, o Estado neoliberal. A crise manifestou-se em 1977, o MNR e ADN ganharam as eleições em 1985, mas a bifurcação deu-se pouco antes de 1986, quando os mineiros que marchavam a La Paz foram cercados e preferiram regressar, pacificamente vencidos, a suas minas, para nunca mais voltar à vida política.
É provável que estejamos nos aproximando de um ponto de bifurcação. Mas a grande aposta do governo nacional e das forças políticas do Congresso é que tal bifurcação se dê da mesma forma como começou esta revolução: por meios democráticos, pacíficos e eleitorais.
A proposta de referendo ou de uma série deles em 2008 é uma aposta para consolidar a estabilização do novo Estado, a partir de um processo democrático eleitoral, onde o que se dispute sejam idéias e convicções, não pedras e balas. Por tal resolução da consolidação do novo Estado por meios pacíficos e democráticos, apostamos que a Bolívia alcance estabilidade.
"O novo bloco de poder não é egoísta, não fecha as portas. Convoca as demais forças a pactuar. A Bolívia precisa ter certeza de mudança, mas também estabilidade e segurança nas regras pacíficas e democráticas da transformação"
Os resultados de uma revolução verificam-se mediante muitos dados e cifras. Permitam-me explorar dois resultados que me parecem irreversíveis e que definem a situação da Bolívia do século 21. Aconteça o que acontecer daqui por diante, será com paz e democracia.
O primeiro resultado é a igualdade — entre povos, sociedades, culturas, idiomas, vestimentas, cores de pele. Isso é um fato irreversível: já não se pode voltar atrás. A Bolívia já não suportaria um regresso a formas de dominação colonial e de racismo camuflado. A Bolívia mudou e, hoje, indígenas e mestiços, como nesta mesa, podemos compartilhar a tomada de decisões políticas e econômicas, e a forma como conduziremos o país.
O segundo: o papel do Estado. Passamos de um Estado fraco, raquítico, ligth, que nos jogou para o fim da fila de uma globalização desrespeitosa e alocada, a um Estado forte. Hoje, o Estado boliviano controla cerca de 21% da economia, do PIB do país. Nosso horizonte é chegar a 30%. No que diz respeito à produção direta de riquezas, o Estado Boliviano que recebemos encontrava-se literalmente aniquilado, participando com apenas 0,6% da produção, controla hoje pelo menos 8% do aparato produtivo. Nossa esperança é chegar a 20 a 25% como um Estado sólido, moderno e capaz de redistribuir sua riqueza.
Daqui por diante, o grande objetivo é concluir pacífica e pactuadamente tal processo de transformação do Estado. O novo bloco de poder não é egoísta, não fecha as portas. O novo bloco de poder convoca as demais forças, as emergentes e as deslocadas, a pactuar-se, a integrar-se e a ser partícipes de uma única estrutura estatal, capaz de dar à Bolívia a certeza de mudança, mas também estabilidade e segurança nas regras pacíficas e democráticas da transformação.
(Tradução: Aurelie Tolat e Carolina Gutierrez).
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

01/09/2008

Grupo de Estudos Caio Prado Jr


Companheiras e companheiros, dando prosseguimento às suas atividades, o Grupo de Estudos Caio Prado Junior convida para a palestra "Conceito de Hegemonia e Bloco Histórico", a ser proferida por Antônio Carlos Mazzeo, professor universitário e membro do Comitê Central do PCB.

Dia: 13/09/2008 (sábado)

Horário: 09h30

Local: Sindicato dos Químicos Unificados (av. Barão de Itapura, 2022, Jardim Guanabara, Campinas-SP).

Realização: Partido Comunista Brasileiro - PCB

Direitos Humanos e Sociabilidade Burguesa

Antonio Carlos Mazzeo *

"Toda emancipação é a recondução do mundo
humano, das relações, ao próprio homem."
(Karl Marx)

A questão dos Direitos Humanos, mais do que nunca, está na pauta das sociedades civis contemporâneas, no contexto de um mundo em constante mudança e permanente tensão. De fato, esse problema ganha dimensão já em finais do XVII e, principalmente, no XVIII século, com a Revolução Francesa ou melhor dizendo, é posta pelos ideólogos da Grande Revolução, os philosophes franceses, não por mera intencionalidade, mas como necessidade mesma da sociabilidade burguesa, quando a construção de relações sociais objetivadas pelo trabalho livre determinam uma regulação racional dessa nova forma de compra e venda da força de trabalho.
Mas o fundamental, aqui, é que façamos uma primeira definição do conceito, isto é, o princípio básico delineador dos Direitos Humanos são os direitos dos homens vivendo em sociedade, quer dizer, a regulação das relações sociais. Como não podemos falar em direito sem um conceito de ética, há também um ponto de essência que solda a relação entre ética e direitos. Mas esses elementos, por sua vez, constituem princípios e normas produzidas numa determinada sociabilidade, quer dizer, não ocorrem abstratamente, mas são expressões de um tempo histórico. As regulações jurídicas sempre estiveram estreitamente vinculadas à forma da sociabilidade, ao caráter da propriedade e à divisão social do trabalho. Daí encontrarmos, por exemplo, os códigos de comportamento moral e legal, "ditados pelos deuses", nas sociedades palaciais, como o "Código" de Hammurabi ou os Dez Mandamentos judaicos que estabeleciam regras nas relações entre os homens livres, em geral self-sustaining peasents, na definição de Marx, e desses com seus escravos, etc. A laicização das leis, com origem na Grécia Antiga, e a ética, resultante de um longo processo da construção da consciência filosófica, materializada na filosofia jônica, propiciaram que as leis fossem encaradas como produto dos homens, mesmo que elaboradas em consonância com uma justiça alicerçada numa ética virtuosa de inspiração divina, como evocavam Sócrates e Platão.
Mas a própria noção de ética vincula-se à determinadas normas e conceitos desenvolvidos no escopo de um determinado "tipo histórico" de sociabilidade. No Mundo Antigo e no período mercantilista, por exemplo, não havia restrições éticas para a escravidão.
Mas é na sociedade civil resultante das relações sociais capitalistas – a sociedade civil burguesa (bürgerliche Gesellschaft) (1) – que temos a plena laicização das relações jurídicas e políticas, resultante da revolução democrático-burguesa, na Inglaterra e principalmente na França. Nessa forma de sociabilidade a questão dos direitos ganha dimensão concreta. Dados os limites desse artigo, não poderemos entrar a fundo na discussão sobre a complexidade da definição do caráter dos direitos.(2) Mas podemos dizer que há um elemento mínimo definidor dos direitos posto exatamente pela revolução democrática, como o direito à liberdade e o direito à justiça, que atingem o estatuto de valor universal, ainda que de forma abstrata.
Por isso, Bobbio realça a dificuldade em se definir direitos como liberdade e justiça, argumentando que a própria idéia fundamental de direito, baseada na noção dos "direitos naturais" avocados pelos jusnaturalistas é problemática e dificulta a adoção de princípios universalistas.(3) Mesmo a tese do "Estado democrático de direito", como um lócus de manutenção de direitos pode ser posta em xeque, se partirmos da conceituação marxiana que as idéias dominantes numa sociedade são as da classe que a domina e de que o conjunto da estrutura jurídico-legal que organiza a bürgerliche Gesellschaft, o "Estado democrático de direito", ao limite, regula as relações de propriedade e as formas de divisão do trabalho da sociabilidade capitalista.
Efetivamente, esbarra-se na contradição existente entre a vida na comunidade política e a vida na sociedade civil, quer dizer, entre a vida pública do citoyen e a vida privada do bourgeois,(4) no igualitarismo formal determinado pela política que, di per se, constitui o lado pragmático da regulação da desigualdade real posta pelo liberalismo e que por isso mesmo, traz em si o aspecto onto-negativo de uma pseudo-emancipação da sociabilidade humana.(5)
A Revolução Burguesa construtora da noção de Direitos Humanos, por seus limites intrínsecos, não consubstanciou esses direitos na perspectiva de uma emancipação concreta que transcenda a negatividade do formal ou da regulação racional e pragmática da desigualdade posta pela onto-negatividade da política. Somente com a eliminação dos entraves inerentes à bürgerliche Gesellschaft daremos o passo em direção à concreção de uma real sociedade dos Direitos, porque humanamente emancipada.
(1) Adotamos aqui, a conceituação de sociedade civil desenvolvida por K.Marx in A Questão Judaica, RJ, Achiamé, s/d
(2) Veja-se a problematização feita por N. Bobbio no já clássico L'Età dei Diritti, Milão, Einaudi, 1990
(3) idem
(4) Na definição do jovem Marx: "O Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do homem, em oposição à sua vida material [...] Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ser coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como particular; considera outros homens como meios, degrada-se a si próprio como meio e converte-se em joguete de poderes estranhos." K. Marx, op. cit., pág. 20
(5) Utilizo o conceito cunhado por J.Chasin de onto-negatividade da política, desenvolvido em seu texto Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, posfácio do livro de F.J. Teixeira, Pensando com Marx - Uma Leitura Crítico-Comentada de O Capital, SP, Ensaio, 1995. Chasin retoma as teses de Marx sobre a contradição entre Estado e sociedade civil, onde o aparelho estatal burguês controla a sociedade real - civil - a partir do contexto alienado de relações sociais que engendram uma igualdade formal do qual ele é a expressão ideológica. Nesse sentido, a política é a materialização pragmática dessa alienação. Ver pág.354 e segts.

* Antonio Carlos Mazzeo - Professor Livre-Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP