20/11/2009

ZUMBI DOS PALMARES (20.11.1655 - 20.11.1695).

Solon Dias Santos

(Militante do PCB-São Paulo)

Zumbi dos Palmares foi aprisionado aos três meses de idade, em Palmares, Alagoas, pela expedição de Brás da Rocha Cardoso, em 1655, e dado ao padre Antônio de Melo, em Porto Calvo (Alagoas), que o batizou com o nome de Francisco e o criou e o educou até a idade de 15 anos. Aos dez anos de idade, Francisco já sabia escrever e fazer conta e falar corretamente Latim e Português (o idioma pátrio não era o mais falado na época). Francisco ajudava o padre nos afazeres cotidianos da paróquia, servindo inclusive como coroinha da igreja local.

Aos 15 anos de idade, fugiu para Palmares indo morar com seu tio, Ganga Zumba, líder do quilombo de Palmares. Ganga Zumba era o título que os negros cabindas atribuíam à sua divindade suprema.

Palmares distava, segundo alguns, a 30 léguas (180 km) ao sertão e cerca de 16 léguas (96 km) da cidade de Porto Calvo, em região onde predominava as palmáceas. Essa mata se estendia do cabo de S. Agostinho (cidade do Cabo, Pernambuco) até o curso inferior do rio S. Francisco (próximo à cidade de Penedo, Alagoas).

Os primeiros mocambos foram construídos, na região, por volta dos anos 1602-04. Aos poucos, os arraiais se multiplicaram, principalmente a partir da invasão holandesa. O período de ocupação dos holandeses, em Pernambuco (1630-54), favoreceu e muito a fuga dos escravos para os quilombos, entre os quais se destacava Palmares, o maior de todos.

Durante sessenta anos, Palmares gozou de certa tranqüilidade se desenvolvendo como uma sociedade de traços socialistas, ao estilo do socialismo tribal das comunidades ancestrais africanas, notadamente as de Angola. Foi em Palmares que se constituiu o primeiro governo livre da América.

Quilombo é uma concepção urbanística africana correspondente às nossas cidades, mas de outro feitio, respeitada as diferenças culturais daqueles povos. Os quilombos da serra da Barriga (Alagoas) desenvolveram-se bastante praticando a policultura agrícola e comercializando seus produtos com as diferentes vilas da região.

Segundo alguns cálculos, Palmares chegou a contar com 20 mil habitantes, população considerável para a época. Na realidade, eram vários quilombos, sendo três deles os maiores e Palmares era, por assim dizer, a capital, o centro administrativo e militar da república palmarina. A capital de Palmares era Macaco, ou Cerca Real de Macaco, devido às fortificações, às paliçadas de Macaco, à semelhança das aringas dos sobas africanos.

Francisco, pela formação cultural, pelo conhecimento adquirido e pela iniciativa que tomava frente às diferentes demandas da comunidade, logo assumiu a liderança de sua comunidade, sendo eleito, aos 17 anos de idade, Zumbi dos Palmares, cargo semelhante ao de Ministro da Guerra. Zumbi significa: a força do espírito presente.

Como ministro da guerra, mostrou-se grande estrategista militar, comparado a outros grandes estrategistas da história ocidental. Acredita-se que Zumbi era descendente de guerreiros imbangalas, ou jagas, da região africana que mais tarde se tornaria o país Angola.

Com a expulsão dos holandeses, os latifundiários, os capitalistas, os senhores-de-engenho da época começaram a assediar os quilombos, a perseguir os quilombolas, à semelhança do que fazem os latifundiários de hoje com os movimentos dos sem-terra.

Até a expulsão dos holandeses, as escaramuças contra Palmares visavam reaver escravo fugido, mas a partir de 1667, as invasões logo assumiram outro propósito, ou seja, apropriação das terras dos quilombolas. O sargento-mor, Manuel Lopes, em 1675, levou a guerra ao coração de Palmares, atacando sua capital, Macaco. Em 1677, outra expedição chefiada por Fernão Carrilho arrasou as plantações quilombolas, destruiu vários mocambos, inclusive o de Aqualtune, mulher de Ganga Zumba, matando um de seus filhos, Toculo, e aprisionando outros dois, Zambi e Acaiene.

Os sucessivos ataques a Palmares enfraqueceram o governo de Ganga Zumba, forçando-o à celebração de um acordo com o governo da classe dominante da época, altamente desfavorável aos quilombolas e que contribuiu para a ruptura das relações entre Zumbi e seu tio. O acordo dividiu a opinião popular, e a história nos ensina que um povo dividido é fácil ser dominado. Lembremo-nos do dito romano: divide et impera (dividir para reinar), princípio aplicado ainda hoje pelo imperialismo estadunidense no Iraque, Afeganistão etc.

O acordo com o Governo de Pernambuco consistia, em resumo, no seguinte: Ganga Zumba se mudaria para uma nova área da Região, não mais acolheria escravos fugidos, devolvendo, inclusive, aqueles não nascidos no Quilombo e reclamados pelos senhores-de-engenho, em troca o governo reconheceria o Quilombo como vila.

Vejamos, mais de perto, o significado do acordo para Zumbi. O governo da classe dominante concedia uma saída política para um grupo em particular, muito conveniente para Ganga Zumba que não tinha compromisso com a causa da abolição da escravidão. Era uma solução individual, não coletiva e quem sabe temporária. Tal proposta lembra os apelos dos religiosos atuais que pregam a salvação individual, ou dos novos ideólogos burgueses que pregam a iniciativa pessoal, do tipo, você S.A. Tais propostas isolam as pessoas e ocultam as causas da opressão, da exploração que estão na base das sociedades fundadas na propriedade privada dos meios de produção, sejam elas escravista, feudal ou capitalista.

Zumbi, além de esclarecido, era um homem compromissado, jamais trocaria a causa da libertação de todo um povo por um prato de lentilhas. Travou-se, então, uma queda de braço entre as lideranças de Zumbi e de seu tio. O fato é que Ganga Zumba foi morto, envenenado, cabendo, a partir de então, a Zumbi a condução da chefia do Quilombo.

Em 1692, o governo da classe dominante de Pernambuco contratou o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho para destruir Palmares. Este bandeirante era bastante conhecido, na região, pela crueldade, já tendo destruído, no Piauí, a mando dos latifundiários, muitas aldeias indígenas e matado seus habitantes.

O bandeirante sofreu, inicialmente, várias derrotas na tentativa de assaltar Palmares, que se localizava no alto da serra da Barriga, rodeada por cercas tríplices e por valetas, contando ainda com um sistema de sentinelas, alerta 24 horas. Os ataques a Palmares, porém, continuaram intermitentes, até sua derrota final, em 1694.

Domingos Jorge Velho não se dava por vencido, voltando a Palmares cada vez mais armado e com maior número de homens, até que numa calada noite de fevereiro de 1694, comandando entre 3 mil e 9 mil homens, com canhões, túneis cavados, atacou e destruiu Palmares. No corre-corre da escuridão, cerca de 200 negros caíram no precipício. Outros tantos foram assassinados e milhares aprisionados, quebrando, assim, a resistência audaz dos quilombolas.

Zumbi e alguns camaradas conseguiram escapar, recuando para a serra de Dois Irmãos, onde pretendia reorganizar a resistência. Um seu ajudante, porém, meses depois, foi capturado e sob tortura revelou onde ficava a nova base da resistência quilombola. Surpreendido, Zumbi lutou, mesmo assim, até a morte, que se deu em 20.11.1695.

A luta heróica de Zumbi nos ensina várias coisas, a saber: sem luta coletiva não há redenção, não há saída individual para os problemas sociais. Como as lutas coletivas dos negros depois de Zumbi não foram muito expressivas, a abolição da escravidão somente adveio em 1888, quase dois séculos após; a abolição não significou uma ruptura com o processo de dominação, ainda hoje há remanescentes quilombolas que reivindicam a posse de cerca de oito mil áreas entre agrícola e urbana, herança de seus antepassados; a solução para os problemas sociais da atualidade somente virá pela união dos explorados, nós, o proletariado, brancos, negros, indígenas e mestiços.

Zumbi dos Palmares tornou-se um símbolo da resistência contra a opressão, contra a exploração de uma classe social sobre outra; um símbolo da valentia, preferindo mil vezes quebrar-se a vergar-se aos desígnios da classe dominante.

solonsantos@yahoo.com.br

Consulta ao jornal HP, Encl. Larousse Digital, O Estado de S.Paulo e outros textos.

19/11/2009

Mostra exibe vídeos sobre lutas populares

As lutas de movimentos sociais e organizações populares ganham destaque na 2ª Mostra Luta!, que acontece entre os dias 21 e 28 de novembro, em Campinas (SP), no Museu da Imagem e do Som (Rua Regente Feijó, 859 – Centro).
O objetivo da Mostra, organizada pelo Coletivo de Comunicadores Populares, é dar visibilidade a produções que enfocam a luta e a resistência dos trabalhadores no Brasil, temas que não costumam ter espaço nos tradicionais meios de comunicação.
O evento também se propõe a ampliar o debate sobre as lutas por transformação social e discutir a importância do audiovisual como instrumento de contra-informação ao monopólio midiático, além de ser um espaço de organização para os que militam pelo direito à expressão.
Para este ano, foram recebidos filmes de Norte a Sul do país, entre longas, médias e curtas-metragens, de ficção e documentário. Serão 40 vídeos exibidos, entre inscritos e convidados, e o lançamento da mostra será feito com o longa-metragem “Linha de montagem”, de Renato Tapajós, seguida de debate com o diretor. Todos os vídeos inscritos, independente da seleção para exibição na mostra, serão incorporados ao acervo do MIS e do Coletivo de Comunicadores Populares, para mostras itinerantes, exibições públicas ou projetos sem fins lucrativos.
Além das exibições, sempre seguidas de debates, a programação da mostra inclui uma exposição fotográfica, com imagens de lutas sociais do Brasil e de outros países da América do Sul, que terá início na abertura da mostra e fica até 15 de dezembro. Além dos vídeos e fotografias, acontecerão mesas de debate sobre comunicação com entidades e movimentos convidados, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), ENECOS (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social), ABRAÇO (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias), Flaskô, entre outros.
A 2ª Mostra Luta! tem entrada franca. A programação e outras informações podem ser acessadas na página da Mostra na internet, http://mostraluta.org/.

17/11/2009

O CASO UNIBAN É FRUTO DA MERCANTILIZAÇÃO DO ENSINO

Renato Nucci Junior (Militante e dirigente do PCB-São Paulo)

Nunca na história desse país o ensino superior esteve tão submetido à lógica mercantil como no governo Lula. Através do programa Universidade Para Todos, que concede bolsas de estudos parciais e integrais em Instituições de Ensino Privado (IEP), o Estado afastou a inadimplência, o maior risco nesse tipo de negócio, garantindo o lucro fácil dos capitalistas que vendem uma mercadoria chamada educação. Essa política de expansão das vagas via ensino privado, tornou as IEP’s tão lucrativas que algumas negociam suas ações em bolsa através da Oferta Pública de Ações. Em 2008, as IEP’s se tornou a terceira atividade econômica mais lucrativa do país, com o valor de suas ações em bolsa sendo superadas apenas pelos setores de tecnologia de informação e o de cigarros, bebidas e alimentos.
Mas o que tem a ver a mercantilização do ensino com os fatos ocorridos na Uniban, onde uma estudante foi hostilizada e quase currada por centenas de alunos por estar usando um microvestido? Tudo. Ao preferir punir a vítima das agressões, a aluna Geisy Arruda, a Uniban agiu como age qualquer capitalista privado. Entre punir e perder centenas e perder uma aluna, a Uniban calculou qual prejuízo seria menor e decidiu por expulsar Geisy. A Uniban só não contava com a reação da opinião pública, que indignada obrigou a direção da universidade a voltar atrás e suspender, sem maiores explicações, a pena aplicada.
Mas a relação entre a mercantilização e a privatização do ensino com o caso de uma estudante achincalhada e quase estuprada por um bando de alunos alucinados não param por aí. A tentativa da Uniban de expulsar a aluna Geisy Arruda está em consonância com a lógica da lucratividade das IEP’s também por outras razões. Em primeiro lugar, porque ao preferir punir a vítima, se preocupando como procuramos demonstrar acima em garantir seus lucros, a Uniban não demonstrou qualquer motivação em combater os valores machistas e a violência contra as mulheres presentes em todas as camadas da sociedade brasileira. Como vendedora de uma mercadoria chamada educação, a preocupação da Uniban é ganhar dinheiro. E para isso, o que mais importa é garantir a alunos ávidos em concorrer egoisticamente por uma vaga no mercado de trabalho, o seu sucesso profissional a qualquer custo através da venda de um canudo de papel. Com função tão limitada, as IEP’s se desobrigam de qualquer papel formativo ou corretivo, como o combate aos preconceitos de gênero. Além do mais, e o caso em tela é exemplar, ao restringir sua função como em todas as IEP’s a produção de força de trabalho qualificada (?) em escala industrial visando com isso ganhar rios de dinheiro, a Uniban renunciou a um papel primordial da universidade: o de estimular o pensamento crítico. Entre as luzes e a sombra, entre a razão e a ignorância, a direção da Uniban, em respeito ao seu objetivo maior que é o de lucrar, para não perder alunos escolheu ficar do lado das sombras e da ignorância.
Pelos motivos aqui expostos, o caso Uniban revela a necessidade de se fortalecer em todos os níveis uma rede pública de ensino, através da ampliação de vagas nas universidades públicas e na estatização de todo o sistema de ensino privado. E no caso do ensino superior, pensar um modelo de Universidade Popular cujos objetivos não sejam apenas o de formar força de trabalho qualificada, mas de desenvolver um pensamento crítico vinculado à luta por uma nova sociedade, capaz não só de eliminar as desigualdades sociais, mas também pôr fim a todo tipo de preconceito, seja ele qual for.

Campinas, novembro de 2009.

16/11/2009

15 de Novembro: Por que não canto o Hino Nacional

Por Mário Maestri, de Porto Alegre*
Uma linguagem mandarinesca esconde os verdadeiros conflitos de uma sociedade dividida por interesses de classe, um Estado fundado e construído através da produção consciente da miséria, da exploração e da desigualdade.
No início do século 19, os soldados franceses enviados por Bonaparte para vergar a barbárie e restabelecer a civilização na parte francesa da ilha de Santo Domingos, futuro Haiti, escutavam, ao longe, assustados e perplexos, o ressoar da canção querida que seus oficiais lhes proibiam cantar. Eram os negros insurrectos que, entoando a Marselhesa, surgiam da profundeza da noite para desbaratar as linhas do exército invicto.
Avante, filhos da Pátria
O dia de glória chegou
Contra nós, levantou-se, O estandarte ensanguentado da tirania.
Escutai, nos campos, rugir esses ferozes soldados?
Eles vêm, nos nossos braços, degolar vossos filhos, vossas companheiras.
Às armas, cidadãos!
Formai, vossos batalhões!
Marchemos! Marchemos!
A Marselhesa teria sido composta para o exército do Reno, em 1792, pelo capitão-engenheiro Claude-Joseph de Lisle Rouget. Ela transformou-se na principal canção popular marcial e, muito mais tarde, no hino nacional da França, pela decisão e vontade anônimas e soberanas da população nacional em armas. A Marselhesa foi selecionada entre tantos outros hinos porque, na forma e no conteúdo, sintetizava o entusiasmo com que a França democrática, republicana e plebeia levantava-se para vergar os aristocratas e conservadores que, dentro e fora do país, coligavam-se contra a revolução. Após o golpe militar de 1799, Bonaparte proibiu aos soldados franceses cantar a Marselhesa, tamanha era seu poder de invocação democrática e revolucionária. A tradição conta que teria apenas permitido que fosse entoada, por uma única vez, em 1805, em Austerlitz, quando da grande vitória sobre os imperadores da Áustria e da Rússia.
Pela Internacional!
No século 19, através do mundo, a Marselhesa tornou-se a canção do movimento democrático e socialista. Em 1870, com a Terceira República francesa, ela foi reconduzida como hino patriótico francês. Portanto, em 1871, na Comuna de Paris, o mundo do trabalho e a ordem do capital defrontaram-se, de armas à mão, cantando o mesmo hino. Durante os combates parisienses, foi composto o “Canto da Internacional: hino dos trabalhadores”, que o jornal oficial da Comuna falhou ao prognosticar como a possível “Marselhesa da nova Revolução” – como lembra Luiz A. Gini. Cem mil trabalhadores foram mortos, fuzilados ou aprisionados durante e após os combates pelas forças da reação burguesa. O Canto da Internacional não prosperou. Porém, a canção revolucionária A Internacional, com música do operário Pierre Degeyter [1888] e poema escrito por Eugène Pottier, que participara da Comuna, em 1871, terminou celebrizando-se, no fim do século 19. Desde então, A Internacional constituiu o hino dos trabalhadores franceses e de todo o mundo, cantado com a mesma música nos mais diversos idiomas.
De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da idéia a chama já consome A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo! De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo, Sejamos tudo, ó produtores!
Refrão (bis)
Bem unidos façamos, Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional.
Macieira não dá laranjas. A gênese histórica e social radicalmente distinta do hinário patriótico brasileiro explica seu nulo poder evocativo popular e democrático. A ruptura da união do Brasil com Portugal foi certamente o movimento de independência mais atrasado e mais conservador das três Américas. Para tranquilizar os interesses britânicos e portugueses, as classes dominantes provinciais do Brasil aceitaram o tacão centralizador e despótico de um príncipe português que era, igualmente, o herdeiro da coroa lusitana que renegavam. Para garantir a continuidade da ordem negreira, os grandes proprietários de todas as províncias optaram por um Estado monárquico, centralizador e antiliberal. Independência de branco Muito logo, os senhores teriam a prova amarga da tacanhice da solução bragantina. Em novembro de 1823, apenas 14 meses após o Sete de Setembro, dom Pedro desferia o primeiro golpe militar do Brasil independente, fechava a assembléia nacional constituinte e legislativa e ditava a constituição ant-liberal que governaria o Brasil até 1889. A Independência de 1822 foi coisa de branco, de escravista e de rico, para branco, escravista e rico. A grande maioria da população trabalhadora, formada por africanos e brasileiros escravizados, prosseguiu sob o jugo absolutista e colonial do bacalhau de cinco dedos do escravista impiedoso. O Hino da Independência teve autores mais ilustres do que a Marselhesa e a Internacional. A letra foi escrita por Evaristo da Veiga, prócer da Independência, e a música, composta pelo imperador em pessoa. Em verdade, o hino já seria executado, em 7 de setembro, à noite, no Teatro da Ópera, em São Paulo, diante do digno compositor e da igualmente digna elite escravista da cidade. Tudo muito chic e oportuno, portanto! Uma independência socialmente excludente geraria hino esteticamente excludente.
Já podeis da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.
Como assinala Flávio R. Kothe, em O cânone imperial, o primeiro verso realiza-se na segunda pessoa do plural, comum à linguagem áulica da Corte e desconhecida da população livre pobre, para não falar da população trabalhadora, que se comunicava em boa parte através de línguas e koinés africanas e indígenas. A contradição berrante entre os “filhos da pátria” que saudavam a “liberdade” que raiara “no horizonte” e as multidões de homens e mulheres de pele negra e parda acorrentadas à escravidão até a morte registrava o fato de que a massa trabalhadora não faria, sequer formalmente, por 66 anos, parte da nação que surgia. A pátria que se criava tinha poucos, mas escolhidos filhos. República do fazendeiro O golpe militar de 15 de novembro de 1889 pôs fim a um centralismo monárquico que a Abolição tornara desnecessário e, de lambuja, sufocou a proposta de refundação da nacionalidade brasileira defendida pelo movimento abolicionista. Então, todos os habitantes do Brasil passaram a participar, formalmente, de uma república essencialmente federalista e oligárquica e nulamente democrática e plebeia. A ruptura com o passado monárquico exigiu a produção de novos símbolos republicanos, em geral construídos com o velho e usado material simbólico imperial, para que não esquecessem que, no fundo, pouco mudara. Em forma ainda mais radical, o hino mais cantado na República materializou formalmente a profunda rejeição, pelas novas classes dominantes, das classes populares, na nova ordem republicana. As exóticas inversões sintáticas e o elitismo vocabular dos versos do Hino Nacional Brasileiro, musicado por Francisco Manuel da Silva, em 1841, registraram plenamente o elitismo da nova república dos coronéis e latifundiários, onde se manteve o mundo do trabalho na submissão, a ferro e fogo, se necessário, como comprovam, entre outros sucessos, a guerra de Canudos-Belo Monte, em 1897; a Revolta da Chibata, em 1910; a guerra do Contestado, em 1912. O pernosticismo lexical e o preciosismo sintático usados por Osório Duque Estrada, na construção, em 1909, da letra definitiva do Hino Nacional, foram tão radicais que ele ainda hoje é praticamente incompreensível para a imensa maioria da população, incapaz de dar sentido a vocábulos retorcidos como “plácido”, “retumbante”, “fúlgido”, “resplandecente”, “impávido”, “florão”, “garrida”, “lábaro”, “verde-louro”, “clava” etc. Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante
A linguagem do mito
A esquizofrenia patente de uma população cantando hino que não entende, ensejou propostas de simplificação linguística ou modificação radical da letra da canção pátria, para que o povo pudesse compreender o que cantava. Essas tentativas de remendo ignoram a funcionalidade, na ótica das classes proprietárias brasileiras, do caráter estrangeiro da língua em que foi composto o Hino Nacional. O linguista marxista Mikhail Bakhtine lembrava que, por além da compreensão, na “consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira fundiu-se com a idéia de poder, de força, de santidade, de verdade”. Por isso, em geral, o discurso religioso dá-se em língua impossível ou difícil de ser compreendida pelos crentes. Comumente, seu caráter evocativo se dissolve como sorvete exposto ao sol ao ser traduzido em língua de gente. Foi com indignação e perplexidade que ouvi meu professor de latim explicar que o mágico e magnético “It missa est” de minha infância queria dizer qualquer coisa como “podem ir jogar futebol que a missa já terminou”. Os conteúdo irracionais de uma narrativa podem ser mais facilmente veiculados quando o estranhamento linguístico que produz nos receptores dificulta eles penetrem racionalmente os conteúdos sociais e ideológicos reais da mensagem. A linguagem esotérica e arcaica galvaniza comumente sentimentos mágicos e aristocráticos imprecisos e difusos. No mundo das percepções invertidas e alienadas, a sentimentos superiores não pode corresponder, jamais, linguagem e conceitos inferiores. Ou seja, comumente, para que conteúdos elitistas alcancem efeito popular, eles não podem ser vertidos em linguagem popular compreensível. A linguagem mandarinesca supera a impossibilidade de escrever, em língua de gente, canção que registre, no seio de espaço geográfico nacional, os inexistentes interesses comuns a banqueiros e bancários, a empregadores e empregados, a investidores e desempregados, a latifundiários e sem terra. Assim sendo, a linguagem rebuscada e incompreensível materializa facilmente sentimentos produzidos na esfera da irracionalidade social. Nesse sentido, a repetição de uma produção verbal semi-compreensível, associada a sentimentos alienados e irracionais sacralizados, enseja que o homem comum, educado na repetição do rito desde criança, associe-se, periodicamente, a ato unitário de celebração nacional que consolida a perpetuação de Estado fundado e construído através da produção e reprodução consciente da miséria, da exploração e da desigualdade. Por tudo isso e mais um pouco, não canto o Hino Nacional.
15/11/2009
Fonte: ViaPolítica/
O autor Mário Maestri, 61, rio-grandense, historiador, é doutor em História pela Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica, e professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Passo Fundo (UPF).