16/11/2009

15 de Novembro: Por que não canto o Hino Nacional

Por Mário Maestri, de Porto Alegre*
Uma linguagem mandarinesca esconde os verdadeiros conflitos de uma sociedade dividida por interesses de classe, um Estado fundado e construído através da produção consciente da miséria, da exploração e da desigualdade.
No início do século 19, os soldados franceses enviados por Bonaparte para vergar a barbárie e restabelecer a civilização na parte francesa da ilha de Santo Domingos, futuro Haiti, escutavam, ao longe, assustados e perplexos, o ressoar da canção querida que seus oficiais lhes proibiam cantar. Eram os negros insurrectos que, entoando a Marselhesa, surgiam da profundeza da noite para desbaratar as linhas do exército invicto.
Avante, filhos da Pátria
O dia de glória chegou
Contra nós, levantou-se, O estandarte ensanguentado da tirania.
Escutai, nos campos, rugir esses ferozes soldados?
Eles vêm, nos nossos braços, degolar vossos filhos, vossas companheiras.
Às armas, cidadãos!
Formai, vossos batalhões!
Marchemos! Marchemos!
A Marselhesa teria sido composta para o exército do Reno, em 1792, pelo capitão-engenheiro Claude-Joseph de Lisle Rouget. Ela transformou-se na principal canção popular marcial e, muito mais tarde, no hino nacional da França, pela decisão e vontade anônimas e soberanas da população nacional em armas. A Marselhesa foi selecionada entre tantos outros hinos porque, na forma e no conteúdo, sintetizava o entusiasmo com que a França democrática, republicana e plebeia levantava-se para vergar os aristocratas e conservadores que, dentro e fora do país, coligavam-se contra a revolução. Após o golpe militar de 1799, Bonaparte proibiu aos soldados franceses cantar a Marselhesa, tamanha era seu poder de invocação democrática e revolucionária. A tradição conta que teria apenas permitido que fosse entoada, por uma única vez, em 1805, em Austerlitz, quando da grande vitória sobre os imperadores da Áustria e da Rússia.
Pela Internacional!
No século 19, através do mundo, a Marselhesa tornou-se a canção do movimento democrático e socialista. Em 1870, com a Terceira República francesa, ela foi reconduzida como hino patriótico francês. Portanto, em 1871, na Comuna de Paris, o mundo do trabalho e a ordem do capital defrontaram-se, de armas à mão, cantando o mesmo hino. Durante os combates parisienses, foi composto o “Canto da Internacional: hino dos trabalhadores”, que o jornal oficial da Comuna falhou ao prognosticar como a possível “Marselhesa da nova Revolução” – como lembra Luiz A. Gini. Cem mil trabalhadores foram mortos, fuzilados ou aprisionados durante e após os combates pelas forças da reação burguesa. O Canto da Internacional não prosperou. Porém, a canção revolucionária A Internacional, com música do operário Pierre Degeyter [1888] e poema escrito por Eugène Pottier, que participara da Comuna, em 1871, terminou celebrizando-se, no fim do século 19. Desde então, A Internacional constituiu o hino dos trabalhadores franceses e de todo o mundo, cantado com a mesma música nos mais diversos idiomas.
De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da idéia a chama já consome A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo! De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo, Sejamos tudo, ó produtores!
Refrão (bis)
Bem unidos façamos, Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional.
Macieira não dá laranjas. A gênese histórica e social radicalmente distinta do hinário patriótico brasileiro explica seu nulo poder evocativo popular e democrático. A ruptura da união do Brasil com Portugal foi certamente o movimento de independência mais atrasado e mais conservador das três Américas. Para tranquilizar os interesses britânicos e portugueses, as classes dominantes provinciais do Brasil aceitaram o tacão centralizador e despótico de um príncipe português que era, igualmente, o herdeiro da coroa lusitana que renegavam. Para garantir a continuidade da ordem negreira, os grandes proprietários de todas as províncias optaram por um Estado monárquico, centralizador e antiliberal. Independência de branco Muito logo, os senhores teriam a prova amarga da tacanhice da solução bragantina. Em novembro de 1823, apenas 14 meses após o Sete de Setembro, dom Pedro desferia o primeiro golpe militar do Brasil independente, fechava a assembléia nacional constituinte e legislativa e ditava a constituição ant-liberal que governaria o Brasil até 1889. A Independência de 1822 foi coisa de branco, de escravista e de rico, para branco, escravista e rico. A grande maioria da população trabalhadora, formada por africanos e brasileiros escravizados, prosseguiu sob o jugo absolutista e colonial do bacalhau de cinco dedos do escravista impiedoso. O Hino da Independência teve autores mais ilustres do que a Marselhesa e a Internacional. A letra foi escrita por Evaristo da Veiga, prócer da Independência, e a música, composta pelo imperador em pessoa. Em verdade, o hino já seria executado, em 7 de setembro, à noite, no Teatro da Ópera, em São Paulo, diante do digno compositor e da igualmente digna elite escravista da cidade. Tudo muito chic e oportuno, portanto! Uma independência socialmente excludente geraria hino esteticamente excludente.
Já podeis da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.
Como assinala Flávio R. Kothe, em O cânone imperial, o primeiro verso realiza-se na segunda pessoa do plural, comum à linguagem áulica da Corte e desconhecida da população livre pobre, para não falar da população trabalhadora, que se comunicava em boa parte através de línguas e koinés africanas e indígenas. A contradição berrante entre os “filhos da pátria” que saudavam a “liberdade” que raiara “no horizonte” e as multidões de homens e mulheres de pele negra e parda acorrentadas à escravidão até a morte registrava o fato de que a massa trabalhadora não faria, sequer formalmente, por 66 anos, parte da nação que surgia. A pátria que se criava tinha poucos, mas escolhidos filhos. República do fazendeiro O golpe militar de 15 de novembro de 1889 pôs fim a um centralismo monárquico que a Abolição tornara desnecessário e, de lambuja, sufocou a proposta de refundação da nacionalidade brasileira defendida pelo movimento abolicionista. Então, todos os habitantes do Brasil passaram a participar, formalmente, de uma república essencialmente federalista e oligárquica e nulamente democrática e plebeia. A ruptura com o passado monárquico exigiu a produção de novos símbolos republicanos, em geral construídos com o velho e usado material simbólico imperial, para que não esquecessem que, no fundo, pouco mudara. Em forma ainda mais radical, o hino mais cantado na República materializou formalmente a profunda rejeição, pelas novas classes dominantes, das classes populares, na nova ordem republicana. As exóticas inversões sintáticas e o elitismo vocabular dos versos do Hino Nacional Brasileiro, musicado por Francisco Manuel da Silva, em 1841, registraram plenamente o elitismo da nova república dos coronéis e latifundiários, onde se manteve o mundo do trabalho na submissão, a ferro e fogo, se necessário, como comprovam, entre outros sucessos, a guerra de Canudos-Belo Monte, em 1897; a Revolta da Chibata, em 1910; a guerra do Contestado, em 1912. O pernosticismo lexical e o preciosismo sintático usados por Osório Duque Estrada, na construção, em 1909, da letra definitiva do Hino Nacional, foram tão radicais que ele ainda hoje é praticamente incompreensível para a imensa maioria da população, incapaz de dar sentido a vocábulos retorcidos como “plácido”, “retumbante”, “fúlgido”, “resplandecente”, “impávido”, “florão”, “garrida”, “lábaro”, “verde-louro”, “clava” etc. Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante
A linguagem do mito
A esquizofrenia patente de uma população cantando hino que não entende, ensejou propostas de simplificação linguística ou modificação radical da letra da canção pátria, para que o povo pudesse compreender o que cantava. Essas tentativas de remendo ignoram a funcionalidade, na ótica das classes proprietárias brasileiras, do caráter estrangeiro da língua em que foi composto o Hino Nacional. O linguista marxista Mikhail Bakhtine lembrava que, por além da compreensão, na “consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira fundiu-se com a idéia de poder, de força, de santidade, de verdade”. Por isso, em geral, o discurso religioso dá-se em língua impossível ou difícil de ser compreendida pelos crentes. Comumente, seu caráter evocativo se dissolve como sorvete exposto ao sol ao ser traduzido em língua de gente. Foi com indignação e perplexidade que ouvi meu professor de latim explicar que o mágico e magnético “It missa est” de minha infância queria dizer qualquer coisa como “podem ir jogar futebol que a missa já terminou”. Os conteúdo irracionais de uma narrativa podem ser mais facilmente veiculados quando o estranhamento linguístico que produz nos receptores dificulta eles penetrem racionalmente os conteúdos sociais e ideológicos reais da mensagem. A linguagem esotérica e arcaica galvaniza comumente sentimentos mágicos e aristocráticos imprecisos e difusos. No mundo das percepções invertidas e alienadas, a sentimentos superiores não pode corresponder, jamais, linguagem e conceitos inferiores. Ou seja, comumente, para que conteúdos elitistas alcancem efeito popular, eles não podem ser vertidos em linguagem popular compreensível. A linguagem mandarinesca supera a impossibilidade de escrever, em língua de gente, canção que registre, no seio de espaço geográfico nacional, os inexistentes interesses comuns a banqueiros e bancários, a empregadores e empregados, a investidores e desempregados, a latifundiários e sem terra. Assim sendo, a linguagem rebuscada e incompreensível materializa facilmente sentimentos produzidos na esfera da irracionalidade social. Nesse sentido, a repetição de uma produção verbal semi-compreensível, associada a sentimentos alienados e irracionais sacralizados, enseja que o homem comum, educado na repetição do rito desde criança, associe-se, periodicamente, a ato unitário de celebração nacional que consolida a perpetuação de Estado fundado e construído através da produção e reprodução consciente da miséria, da exploração e da desigualdade. Por tudo isso e mais um pouco, não canto o Hino Nacional.
15/11/2009
Fonte: ViaPolítica/
O autor Mário Maestri, 61, rio-grandense, historiador, é doutor em História pela Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica, e professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Passo Fundo (UPF).

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