20/03/2010

O déficit da esquerda é organizacional

José Paulo Netto*

Para os revolucionários inscritos na tradição marxista colocam-se atualmente problemas inteiramente novos. Não é a primeira vez que, nos últimos cento e cinqüenta anos, uma conjuntura deste tipo se instaura (nem será, talvez, a última). Mas, certamente, nenhuma das conjunturas anteriores revestiu-se da dramaticidade com que se apresenta a situação atual.

Com efeito, o exaurimento de todas as possibilidades civilizatórias do capital alcança hoje um nível tal que a manutenção, ainda que seja por uns poucos decênios, da ordem capitalista implica um grau de violência e barbarização que tornará inviável a sobrevivência da humanidade (o desastre ecológico é apenas um signo, embora crucial, das perspectivas horrorosas que se põem a médio, senão a curto, prazo). E isto se dá na quadra histórica, emergente na transição dos anos 1970 aos 1980, em que o projeto revolucionário fundado em Marx (e, de fato, o processo revolucionário real que tomou sua primeira forma na Revolução de Outubro) registrou derrotas históricas de larga incidência.

Em poucas palavras: nunca foram tão ameaçadoras as perspectivas imediatas da vida da humanidade e, simultaneamente, nunca o movimento revolucionário inspirado em Marx viu-se diante de tantas dificuldades. Precisamente por isto, vale a pena provocar a imaginação com um breve exercício de polêmica: nosso – dos revolucionários –déficit não é teórico, é organizacional.

A potencialidade teórica do marxismo

É enorme a bibliografia sobre as crises do marxismo e, sem prejuízo de observações pertinentes que nela se encontram, quase toda possui um denominador comum: identifica a crise de uma ou outra vertente da tradição marxista (que, de fato, é um acervo ídeo-teórico e político muito diferenciado) com a crise do marxismo. Se houve, e de fato houve, uma paralisia no desenvolvimento da tradição marxista no segundo terço do século XX – aqui, as hipotecas derivadas do stalinismo foram decisivas -, paralisia que compeliu Lukács a reclamar, nos anos 1960, um “renascimento do marxismo”, o que os anos posteriores a 1970 revelaram foi a crise terminal de uma vertente particular (certamente relevante) daquela tradição: o marxismo-leninismo oficial, prolongamento do “marxismo vulgar” dominante na Segunda Internacional1.

Mas, marginalmente ao marxismo-leninismo e após a denúncia do “culto à personalidade” (1956), outras vertentes marxistas se desenvolveram (ou continuaram se desenvolvendo) e constituíram um acúmulo ídeo-teórico capaz de propiciar um conhecimento social adequado. Um exame cuidadoso da documentação produzida por marxistas de diferentes matizes, a partir dos anos 1950, revela a emersão de um estoque crítico que, depois dos anos 1970, só fez crescer. Ao contrário do que sustenta o senso comum das ciências sociais acadêmicas e do que é veiculado pelos meios de comunicação social, a elaboração teórica de extração marxista tem se revelado capaz de análises extremamente corretas (ou seja: validadas pela dinâmica social real) dos processos histórico-sociais dos últimos trinta anos. Não é este o lugar para oferecer provas bibliográficas desta afirmação, mas basta cotejar, por exemplo, a visão da dinâmica econômico-social do sistema capitalista nos últimos vinte e cinco anos oferecida por diferentes teóricos marxistas (Mandel, Mészáros, Chesnais, Husson et alii) com aquela traçada pelos apologistas do capital para aquilatar da atualidade e da atualização da capacidade heurística do referencial analítico elaborado originalmente por Marx.

É evidente que este efetivo desenvolvimento de vertentes da tradição marxista está longe de significar que inúmeros complexos problemáticos, que peculiarizam a atual quadra histórica, estejam minimamente equacionados2. Há toda uma série de níveis societários - no plano da cultura, no espaço da vida cotidiana, no campo das relações entre ciência e ética, nos domínios da demografia, da territorialidade etc. – em que se acumulam dilemas e impasses sobre os quais o estoque de conhecimentos é extremamente assimétrico em comparação à sua magnitude. As lacunas teóricas existentes são indiscutíveis e não há por que dissimulá-las. Mas, ainda aqui, cumpre sublinhar que carências crítico-cognitivas de monta afetam o conjunto das teorias sociais contemporâneas e são imensamente mais expressivas no campo dos saberes funcionais à ordem do capital – que, no plano teórico-social, mostra-se cada vez menos apta a engendrar concepções que resistam às fortes tendências constitutivas do que Lukács, na esteira de Marx, designou como “decadência ideológica”.

Com estas considerações - necessariamente breves e esquemáticas -, o que pretendo ressaltar, com ênfase, é que as dificuldades com que se defrontam hoje os revolucionários que se reclamam vinculados à tradição marxista não derivam essencialmente de uma “crise teórica”. A potencialidade teórica da tradição marxista tem resistido à prova da história.

Teoria e política

Em alguma passagem de seus escritos, P. Togliatti anotou: “quem erra na análise, erra na ação”. A observação é crucial para os revolucionários (como, aliás, já o sabia Marx): para aqueles que se propõem como tarefa a supressão da ordem do capital e a ultrapassagem da sociedade burguesa, o conhecimento verdadeiro da realidade social é, como Lukács esclareceu desde 1923, uma questão de vida ou de morte. Isto equivale a dizer que, para os revolucionários, a formulação de projetos e o estabelecimento de estratégias no marco das lutas de classes supõem o máximo conhecimento possível da dinâmica social concreta.

Esta determinação, que parece incontestável, requer três notações minimamente convalidadas pela experiência histórica. A primeira é que tal determinação diz respeito àqueles que se empenham na superação da ordem do capital – a manutenção e a gestão desta ordem reclamam, obviamente, conhecimentos e saberes; entretanto, a natureza destes pode ser meramente manipulatória e instrumental; já o empenho exitoso na desarticulação da sociedade burguesa no rumo das transformações socialistasexige o conhecimento teórico rigoroso da estrutura e da dinâmica da vida social. Em segundo lugar, ela se refere aos segmentos dirigentes dos movimentos revolucionários – a elevação do nível de consciência das massas, sempre potenciado nas lutas e em especial nas conjunturas revolucionárias, não elimina a efetiva fronteira distintiva (sempre móvel) entre elas e as suas vanguardas. Finalmente, é preciso lembrar que nenhum processo revolucionário se deflagra contando com um conhecimento teórico exaustivo e total das suas possibilidades e limites – se assim fosse, certamente a história moderna não registraria nenhuma revolução.

É necessário acrescentar, porém, que aquela determinação - quem erra na análise, erra na ação – está longe de significar que quem acerta na análise tem êxito na ação revolucionária. Para os revolucionários, o acerto na análise (vale dizer: um acúmulo crítico que garanta o máximo conhecimento possível da realidade social) écondição necessária para o êxito da intervenção política, mas não é condição suficiente. A política (revolucionária) não se reduz à teoria (revolucionária) ou, mais exatamente, a política não é teoria.

Na tradição marxista, foram freqüentes os equívocos derivados de uma interpretação simplista da decantada “relação entre teoria e prática”, que não poucas vezes conduziram - confundindo unidade com identidade – a desastres simultaneamente teóricos e políticos. Por isto mesmo, é preciso afirmar com vigor que teoria e política configuram âmbitos distintos, mesmo que não divorciados, na totalidade das formas pelos quais os homens e as mulheres procuram compreender e transformar o mundo. No âmbito da teoria, o conhecimento verdadeiro é um fim; no âmbito da política, o conhecimento é um meio 3. Na teoria, importa a verdade; a política é o campo dasrelações de força. As conexões entre teoria e intervenção política não são unívocas nem diretas, até porque suas dinâmicas são estruturalmente diversas - atemporalidade da ação política não é a da elaboração teórica (antes, é reiteradamente emergencial).

Nada disso aponta no sentido de subestimar o peso do conhecimento teórico na intervenção política revolucionária – ao contrário, decorre desta linha de argumentação a conseqüência da mais exigente qualificação das vanguardas e de seus representantes mais destacados, notadamente quando se verifica que, no decurso do tempo, esta qualificação veio registrando uma curva descendente4. Mas, sem qualquer concessão a um weberianismo ocasional, se se constata a existência de “duas vocações”, a teórica (científica) e a política, que não se excluem, mas que, se não coincidem necessariamente nas mesmas figuras (como, para citar tipos diversos, em Lênin, Mariátegui, Togliatti, Cunhal), há que dizer que elas podem articular-se no “intelectual coletivo” que as vanguardas organizadas devem estruturar.

Esta argumentação, porém, aponta num sentido preciso (e obviamente polêmico): não são as lacunas teóricas que estão na raiz das dificuldades políticas com que se vêem a braços os revolucionários de inspiração marxista. A paralisia que enfermou a vertente teórica dominante da tradição marxista ao tempo do stalinismo (o marxismo-leninismo oficial), bem como outros esclerosamentos, certamente foi um componente ponderável a embaraçar o desenvolvimento do movimento revolucionário – que, por outro lado, nunca se reduziu aos processos de transformação social substantiva direcionados por vanguardas de corte marxista. O insuficiente conhecimento de que esta tradição dispõe sobre vários domínios da vida social contemporânea decerto incide negativamente na potenciação de vetores revolucionários. Nada disto, todavia, é o determinante essencial das dificuldades atuais - até porque, como se referiu, a massa crítica produzida nos últimos trinta anos, no marco da tradição marxista, está longe de ser negligenciável. O determinante essencial parece residir na problemática da organização política dos revolucionários.

O déficit da organização política

A passagem de Lenin é conhecida à exaustão: “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário” – mas nem sempre se leva em conta que ela vem inscrita num texto (Que fazer?) em que o futuro líder da Revolução de Outubro está tematizando, centralmente, o problema da organização política. Não me parece adulterar sua tese interpretá-la como exigindo a referência teórica (que, para ele, estava dada: o marxismo) para que a organização política (o partido) pudesse direcionar o processo revolucionário na Rússia czarista - mas a centralidade, no processo revolucionário, cabe à organização e à direção política.

Recordemos que o texto lenineano (fundante de um partido novo) inscreve-se nas polêmicas que se travaram num arco temporal que pode ser claramente delimitado: o período que vai do Bernstein-Debatte (a segunda metade dos anos 1890) até a elaboração

trotskiana do Programa de transição (às vésperas da Segunda Guerra Mundial). Aí se compreendem a crise da Segunda Internacional, a Revolução de Outubro, o fracasso da revolução no Ocidente, os giros da Terceira Internacional, a emersão do fenômeno stalinista etc. As riquíssimas polêmicas dessas quase quatro décadas tiveram sempre, explícita ou tacitamente, a centralidade da organização política (as vanguardas e sua relação com as massas) como elemento constitutivo. Todos os confrontos, colisões, divergências etc. - expressando decerto diferenças nas concepções teóricas - relacionavam-se à problemática da organização política. Elas são nítidas nas formulações (e práticas) de Kautsky, de R. Luxemburgo, de Lênin e mesmo de Trótski e Bukharin, apenas para referir os seus protagonistas mais conhecidos5. Depois deste período de polêmicas, praticamente não se introduziu nada de novo nos elementos nelas contidos.

A recorrência a tais polêmicas e, igualmente, às soluções que nelas foram propostas é, obviamente, de capital importância para enfrentar as dificuldades atuais. E, sendo procedente a hipótese com que aqui se trabalha, segundo a qual o “núcleo duro” dessas dificuldades radica na problemática da organização política, de tanto maior relevo se reveste a análise daquelas polêmicas e das implicações práticas das soluções nelas aventadas.

Todavia, e este é o ponto que me interessa salientar, a análise crítica dessa herança do movimento revolucionário, realizada com o estudo da experiência histórica do período que lhe corresponde (que tanto condicionou aquela herança quanto foi por ela modificada), pouco pode contribuir para romper com os nós que embaraçam hoje a atividade revolucionária. Com certeza, a meu juízo, essa análise reafirmará seja a indispensabilidade do máximo conhecimento possível da realidade social, seja a centralidade da organização política – mas não nos dirá nada acerca das formas concretas dessa organização nem sobre a sua articulação com instâncias e sujeitos sociais. Para ser bem claro: a análise crítica daquele legado haverá somente de nos indicar, à exceção dos dois constitutivos acima mencionados (o conhecimento e a organização política), a que herança devemos renunciar. Extrairemos, por exemplo, lições de Rosa Luxemburgo (quando alertava que a ditadura do proletariado poderia se tornar uma pura e simples ditadura) e de Trótski (quando denunciava/analisava a burocratização) - mas não extrairemos elementos positivos para uma refundação político-organizacional.

De fato, os dois constitutivos que deverão estar presentes para que se possa promover uma ofensiva socialista expressam os elementos universais do processo revolucionário conducente à superação da ordem do capital. Mas a sua particularização conseqüente com a quadra histórica contemporânea supõe e implica uma concretização para a qual a experiência passada pouco pode contribuir. Os problemas inteiramente novos, a que me referi na abertura desta rápida comunicação, escapam ao âmbito próprio daquela experiência – que, entretanto, permanece ainda como a referência básica do movimento revolucionário.

Um mundo novo

A constatação pode ser acaciana, mas deve ser repetida: as transformações societárias que se explicitaram nos últimos trinta anos configuraram um mundo novo.

A análise deste mundo revela que a teoria social de Marx é completamente atual: o modo de produção capitalista, em todas as diversas formações sociais existentes, obedece à dinâmica que foi idealmente (teoricamente) reproduzida n’O capital: exploração do trabalho, crescimento destrutivo e autodestrutivo, concentração e centralização de riqueza e poder, contradições e antagonismos etc., com toda a sua coorte de conseqüências deletérias no plano sócio-cultural e humano. A análise marxista do capitalismo contemporâneo, registrando novos fenômenos e processos - e esta análise vem sendo feita -, não infirma nenhuma das descobertas estruturais de Marx; mas revela que elas não dão plena conta das determinações novas desse capitalismo. Esta análise demonstra que as determinações teóricas de Marx, estruturalmente válidas, não são, apenas elas, suficientes para apreender o capitalismo dos nossos dias.

O desenvolvimento recente deste capitalismo introduziu profundas mutações na sociabilidade própria à sociedade burguesa. E se não afetou as bases da pertinência de classe (a propriedade) e se, menos ainda, reduziu a gravitação das lutas de classes no processo social, alterou substancialmente as modalidades pelas quais a estrutura e o movimento daquela sociabilidade são tomados pela consciência de homens e mulheres. As transformações na vida cotidiana (na constelação familiar, no espaço da reprodução imediata dos indivíduos etc.), na distribuição espacial dos indivíduos e grupos sociais, na organização e na repartição do tempo de trabalho, no controle do tempo fora do trabalho, os novos mecanismos de manipulação ideológica, seus impactos sobre os costumes – tudo isto, e muito mais, alterou qualitativamente as condições de constituição da consciência da massa dos homens e das mulheres.

É somente a partir da consideração desse mundo novo - e os traços dele aqui esboçados já se encontram minimamente estudados - que se pode intentar, de modo sério, encontrar soluções conducentes à criação de instrumentos de organização política eficazes para operar uma ofensiva socialista. Porque, e esta é uma determinação essencial, se as dificuldades que embaraçam a atividade revolucionária são notáveis, igualmente notáveis são as motivações reais que permitem a mobilização e a organização de largos contingentes de homens e mulheres contra a ordem do capital. Em todos os quadrantes, do Norte ao Sul, o capitalismo contemporâneo enfrenta uma insatisfação generalizada e uma resistência ora difusa, ora ganhando expressões corporativas e particularistas. Molecularmente, a ordem do capital tem exponenciado os seus coveiros - mas este movimento real permanece espartilhado nos limites da ordem porque carece de instâncias universalizadoras.

E estas não serão criadas somente a partir da análise crítica da experiência anterior do movimento revolucionário. O mundo novo requer, também, invenção.

A invenção de um novo padrão organizacional

Lênin não foi citado por acaso nas páginas anteriores. Também ele se situa, historicamente, num momento de inflexão do capitalismo (a emergência do imperialismo) e também para ele se punha um problema específico: encontrar um instrumento que tornasse interventiva a referência teórica de Marx. E Lênin inventou esse instrumento: o partido novo.

Cuidemos de evitar mal-entendidos. Lênin – de quem, em 1924, Lukács salientava o realismo e o antiutopismo – não inventou o partido arbitrariamente, mediante simples volição individual (também esta invenção respondia a possibilidades históricas concretas). Ele não só dispunha de uma análise concreta da formação social para a qual dirigia suas energias (recorde-se O desenvolvimento do capitalismo na Rússia) e de um substantivo conhecimento das experiências (anteriores e contemporâneas) dos movimentos revolucionários: incorporava criticamente os desdobramentos da teoria e da ciência que lhe eram contemporâneas6. E mais: assimilava sem preconceitos o que havia de válido na reflexão alheia, desenvolvia pistas referidas por outrem, inscrevia-se num debate coletivo e dava formulação rigorosa ao que nele emergia.

É deste tipo de invenção que o movimento socialista revolucionário de inspiração marxista necessita hoje. O conhecimento da herança já referida (de que Lênin é parte importante, mas não única) é, como sublinhei, indispensável para realizá-la – mas está longe de ser o bastante. Essencialmente, a invenção de um novo padrão político-organizacional e a formulação de seus parâmetros, que permitam direcionar para um processo revolucionário as generalizadas insatisfações e resistências em face da ordem do capital será resultado de uma elaboração coletiva, capaz de incorporar a massa crítica de que já dispomos sobre o capitalismo contemporâneo e de apreender as/responder às formas atuais da sociabilidade. Será uma tarefa muito mais complicada que a realizada por Lênin – devendo conjugar, num registro antes desconhecido, a teoria revolucionária atualmente acessível com demandas muito diferenciadas e pulverizadas. Mas é esta mesma conjugação que poderá unificar (sem identificar, com a diluição das suas especificidades) tais demandas, situando-as numa perspectiva universalizante que supere particularismos e corporativismos. E trata-se de tarefa factível desde que, aproveitando as lições do passado, deixemos de tomá-las como exemplos – e este é, como diria o velho Florestan, o buzílis da questão: a incontornável referência à herança não pode hipotecar a experimentação necessária.

Num ensaio de mais de vinte anos, Perry Anderson observava, com a sua conhecida argúcia, que o chamado marxismo ocidental tinha como traço pertinente o nunca haver conseguido vincular-se a movimentos de massa. Sem exagero, quer-me parecer que, nos dias correntes, o problema não reside em o marxismo tout court estar desvinculado de movimentos de massa - o problema está em que movimentos de massa são raros.

A invenção de um novo padrão de organização política, se, de um lado, é condicionada pela existência desses movimentos, de outro pode fomentá-los e torná-los mais densos.

Não é possível sequer prospectar se e quando uma tal invenção terá lugar – ainda que, para ela, estejam dados muitos elementos. Mas, salvo grave erro de avaliação, é possível concluir assegurando que da ultrapassagem deste nosso déficit organizacional depende, em escala decisiva, a possibilidade de travar e reverter a barbárie capitalista.

*José Paulo Netto é professor titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1 Tratei desta questão no meu ensaio Crise do socialismo e ofensiva neoliberal (S. Paulo: Cortez, 2007).

2 Por exemplo: ainda carecemos de análises suficientemente exaustivas sobre a crise do “socialismo real” ou do tipo de desenvolvimento social que se verifica na República Popular da China.

3 É sempre saudável recordar que o esforço teórico é dinamizado por dúvidas e perguntas, ao passo que a direção da atividade política demanda convicções (no caso da atividade revolucionária, preferencialmente fundadas em conhecimento teórico).

4 Uma imagem-limite desse declínio desolador se obtém quando se confronta o Comitê Central dirigido por Lênin e o Comitê Central secretariado por Brejnev – mas o fenômeno operou universalmente, quase sem o registro de exceções. E transcendeu o espaço da política revolucionária: ao passo que G. Washington lia Rousseau, L. Johnson deleitava-se com o pato Donald.

5 As importantíssimas reflexões de Gramsci pertencem a este rico período em que a tradição marxista tanto se desenvolveu – entretanto, só se tornaram conhecidas e influentes muito posteriormente.

6 Ainda que nem sempre tenha sido bem sucedido nesta interlocução, como o atesta Materialismo e empirocriticismo.

19/03/2010

Pronunciamento do membros da União de Escritores e Artistas de Cuba e da Associação “Hermanos Saíz”.

ENQUANTO a Feira do Livro percorria nosso país e centenas de médicos cubanos salvavam vidas no Haiti, vinha se gestando uma nova campanha contra Cuba. Um delinqüente comum, com um histórico provado de violência, tornou-se "prisioneiro político", declarou-se em greve de fome para que lhe fossem instalados telefone, cozinha e televisão na cela. Alentado por pessoas sem escrúpulos e apesar de tudo quanto se fez para prolongar-lhe a vida, Orlando Zapata Tamayo morreu e converteu-se num lamentável ícone da maquinaria anticubana. Em 11 de março, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que "condena energicamente a morte evitável e cruel do dissidente e preso político Orlando Zapata Tamayo" e numa intromissão ofensiva em nossos assuntos internos "insta as instituições europeias a darem apoio incondicional e alentarem, sem reservas, o início dum processo pacífico de transição política, rumo a uma democracia pluripartidarista em Cuba".
Com o título "Orlando Zapata Tamayo: Eu acuso o governo cubano", está circulando um chamamento para recolher assinaturas contra Cuba. A declaração assegura que este recluso foi "injustamente preso e brutalmente torturado" e que morreu "denunciando estes crimes e a falta de direitos e de democracia em seu país". Ao mesmo tempo, mente sem pudor algum quanto a uma suposta prática de nosso governo de "eliminar fisicamente seus críticos e opositores pacíficos". Em 15 de março, um jornal espanhol mostrava na primeira página o rosto de Zapata Tamayo, já defunto, no caixão, ao tempo que anunciava a adesão ao chamamento de alguns intelectuais que ligavam suas assinaturas às de velhos e novos profissionais da contrarrevolução interna e externa.
Nós, escritores e artistas cubanos, estamos cientes da maneira em que se articulam, sob qualquer pretexto, as corporações midiáticas e os interesses hegemônicos e da reação internacional para prejudicar nossa imagem.
Sabemos com quanta sanha e morbo se deturpa nossa realidade e a forma em que se mente diariamente sobre Cuba. Sabemos também o preço que pagam os que tentaram se expressar, a partir da cultura, com matizes próprios.
Na história da Revolução jamais foi torturado um prisioneiro. Não houve um único desaparecido. Não houve uma só execução extrajudiciária. Fundamos uma democracia própria, imperfeita, é sim, mas muito mais participativa e legítima que aquela que nos pretendem impor. Não têm moral os que orquestraram esta campanha para dar-nos lições de direitos humanos.
É imprescindível parar esta nova agressão contra um país bloqueado e acossado sem piedade. Portanto, apelamos à consciência de todos os intelectuais e artistas que não escondam interesses espúrios em torno ao futuro duma Revolução que foi, é e será um modelo de humanismo e solidariedade.

Secretariado da União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac)
Direção Nacional da Associação Hermanos Saíz
16-03-2010

18/03/2010

A emergência do Brasil é a hegemonia do precário como vanguarda

Escrito por Venâncio de Oliveira
17-Mar-2010

Os países hegemônicos estão avaliando Brasil, Rússia, China e Índia como países chaves para que a crise não afunde ainda mais suas economias. Os BRIC estão ganhando terreno até mesmo no processo decisório, na definição de políticas. O Brasil conseguiu dentro desta aliança um poder de veto sobre decisões dos Novos Acordos de Empréstimos do FMI, um montante de cerca de 550 bilhões de dólares. Países europeus, como a França, têm estreitado laços com Brasil. As visitas de Sarkozy para definir acordos militares, suas afirmações de que era necessário uma reforma mundial e que o nosso país estaria em sua vanguarda demonstram sua importância crescente para a redefinição dos padrões de acumulação mundial.

Por que o Brasil não afundou na crise? Os setores à direita do governo Lula comemoram com seus velhos inimigos, os da esquerda levantam a bandeira do crescimento como a vitória do Trabalho. O nosso maior inimigo, o Capital, passou a ser nosso fim último.

O pacote de políticas anticíclicas do governo Lula foi um dos fatores que seguraram o caos. Mantiveram-se os planos de infra-estrutura, com alto retorno e baixo risco para investidores. Os bancos estatais interviram, houve uma expansão de crédito de 20% no acumulado de 12 meses, entre setembro de 2008 e de 2009, o estoque total de crédito chegou a 45% do PIB. A liquidez fornecida pelo Estado diminuiu a pressão sobre a oferta privada de crédito, freando seu preço, que, combinada com o corte do IPI, segurou o consumo dos bens duráveis. O Bolsa Família segurou o consumo de bens não duráveis.

O segundo fator anticíclico veio de fora, conseqüência das políticas chinesas, que alimentaram seu consumo interno. O freio do seu decrescimento econômico manteve a importação de produtos brasileiros, basicamente de commodities, ferro e soja. Os chineses já representam o principal parceiro comercial do Brasil, desbancando os Estados Unidos. As vendas para a China já são 40% maior do que para os Estados Unidos. A exportação total de soja brasileira cresceu 11,7% em grão e 3,3% em farelo (entre setembro de 2008 e de 2009), enquanto a exportação total caiu 25,9%.

Mas baseado sobre que estrutura? O progresso do capitalismo está cada vez mais desconectado com bem estar social. A crise não anunciou ainda outra qualidade de política, apareceu um hibridismo liberal com toques desenvolvimentistas. FHC fez escola com ajuda aos bancos, os países hegemônicos apoiaram suas finanças e esqueceram seus desempregados. O modelo de política do capital mundializado é o reforço da lucratividade financeiro-industrial em detrimento do trabalho.

Temos uma especificidade tupiniquim, no modelo lulista de inserção da economia brasileira na divisão internacional do trabalho. Contrariando a tese do fim do Estado, o governo Lula conseguiu armar um pacto social e político, interno e externo, que lhe deu espaço de formular e intervir. A arte da política é conseguir mudar a realidade, dentro de determinantes incontroláveis. O governo petista teve capacidade de intervir e redefinir estruturas, bem como os tucanos, tanto uns quanto outros, fizeram acontecer, com finalidades semelhantes, mas perfis distintos.

O governo FHC, no afã de desenvolver o capitalismo brasileiro, na era das finanças, desnacionalizou, flexibilizou e privatizou. O governo Lula, no mesmo objetivo, apoiou o capital nacional, com toda sorte de incentivos fiscais e financeiros, e está brigando com os Estados Unidos por um espaço para o agronegócio brasileiro no mercado mundial, pondo na agenda do dia a tecnologia socialmente suja do etanol.

A Era Lula manteve as bases essenciais da economia tucana, não reestatizou as privatizações e se aproveitou do mercado informal para chantagear a classe trabalhadora com assistencialismo. Em síntese, mantemos uma estrutura desigual de direitos, não existe acesso universal à educação, à terra, à moradia e direito à humanidade, somos reféns da polícia, da violência, das chuvas, da corrupção e dos patrões e gerentes. A juventude sofre nos call centers, alta tecnologia e super-exploração, esforçando-se para estudar em universidades privadas sem qualidade. Conseguiram dividir a classe e desmoralizar os lutadores, desenvolvendo a cooptação e atacando a dignidade do nosso povo, usando seu estômago.

Entramos no jogo do capital com vontade, um player que compete no mercado mundial e abraça Bush, sendo o "cara" do Obama. Mas os donos do poder no capitalismo não dormem tranqüilos. Juntos, as finanças e a indústria aumentaram as contradições, uma taxa de lucro que foge à regra de criar excedente. Todo dinheiro novo deve criar mais ficção, assim a produção necessita pagar muito. Por outro lado, todo crescimento é raso. Os chineses aumentam produtividade e diminuem preços. Junta-se isso à diminuição das reservas energéticas, desarticulação de ofertas de alimentos e disputas por fronteiras agrícolas para fazer combustíveis. Uma ameaça constante de inflação de insumos e depressão de manufaturados.

As políticas de estímulos fiscais foram o principal eixo anticíclico. Mas são políticas estatais alicerçadas num capital privado viciado em especulação, e em políticas de consumo e de infra-estrutura. A criação de novos processos produtivos não aumentou. A formação bruta de capital fixo (investimento) ficou estável no segundo trimestre de 2009, não cresceu, após uma queda de 12,3% no trimestre anterior. A fórmula dos emergentes ainda não conseguiu retomar um padrão que renove a acumulação capitalista.

A técnica de criar capital por dívida ainda permanece, mas fica a dúvida de quem paga este dinheiro novo. O número de brasileiros com dívida acima de R$ 5.000,00 mais que dobrou nos últimos cinco anos – são 23 milhões de pessoas endividadas. Aumentou a oferta de dinheiro para comprar casa e carro. São 430 milhões em crédito (mais de 5.000), 70% do estoque total de empréstimo, como se fosse R$ 20.000,00 por devedor. A questão fica: se não se cria valor para que se pague esta dívida, se os salários não chegam para este capital parasitário, que fazemos?

Estamos num contexto de crise estrutural do capital. Os padrões de acumulação a partir da crise dos 70 foram mais parasitários e menos "progressistas". Podemos visualizar um padrão de acumulação ainda mais bárbaro, tendo o regresso como vanguarda, trabalho escravo na cana de açúcar/etanol, economia do narcotráfico e desemprego permanente, 16 horas de trabalho em maquilas chinesas, ou seja, a hegemonia do precário como referência mundial.

Será que não estamos perto de outro modo de produção, e poderíamos chamá-lo de barbárie? Enquanto o objetivo da esquerda for o crescimento econômico, vamos desenvolver os elementos internos do capitalismo, dentro de uma lógica cada vez mais destrutiva.
"Em meio às brasas
Criamos
Caos, ódio e demônios
Em meio às brasas
Criamos
Vida, ternura e paixões
Em meio às brasas
Criamos"

Venâncio de Oliveira é economista e trabalha com organizações populares na Guatemala.

16/03/2010

FARC: "Não somos belicistas nem lutamos por vinganças pessoais .."

Memorando para um intercâmbio sobre o conflito colombiano.
PRIMEIRA PARTE

Primeiro: Sempre acreditamos numa solução política para o conflito. Mesmo antes da agressão a Marquetalia, e durante esses 46 anos, temos reiterado, expressado e lutado por esse objetivo.

Segundo: Não somos belicistas, nem lutamos por vinganças pessoais. Não temos patrimônios materiais ou privilégios a defender, somos revolucionários comprometidos com nossa consciência, e desde sempre, com a busca de uma sociedade justa e soberana, profundamente humanistas, desprovidos de qualquer interesse pessoal mesquinho. Nós amamos nosso país acima de tudo e somos obrigados a desenvolver a guerra contra uma classe dominante posta de joelhos perante o império, que tem usado de maneira sistemática a violência e os atentados pessoais como uma arma política para manter-se no poder desde 25 de setembro 1828, quando buscou assassinar o Libertador Simón Bolívar, e até os dias de hoje, em que utiliza as práticas de terrorismo de Estado para manter o status quo.

Terceiro: A dificuldade que a Colômbia tem enfrentado para conseguir a reconciliação através do diálogo e de acordos se deve ao conceito de paz oligárquica do regime, que só aceita a submissão absoluta da insurgência à chamada "ordem estabelecida", ou, como alternativa, à "paz das cemitérios".

Quarto: Não temos lutado toda a nossa vida contra um regime excludente e violento, corrupto, injusto e anti-patriota, para agora, sem alterações em sua estrutura, aderirmos a ele.
Quinto: Na Colômbia, muitas pessoas boas e capazes que queriam um país melhor e que lutaram por esses objetivos por meios pacíficos, como Jaime Pardo Leal, Bernardo Jaramillo, Manuel Cepeda, entre outros, foram assassinados de forma premeditada, vil e covardemente pelos serviços de inteligência do Estado em aliança com os paramilitares e bandidos, inimigos do povo, em um genocídio sem precedentes que liquidou fisicamente todo um movimento político dinâmico e em pleno crescimento: A UNIÃO PATRIÓTICA.
Por conta dessa estratégia de Terrorismo de Estado, falhou-se na busca da solução política, durante as administrações de Belisario Betancur e Virgilio Barco e, em Caracas e no México, durante o governo de César Gaviria.
Sexto: Em El Caguán, como o Presidente Pastrana reconheceu em seu livro e em declarações públicas, o regime procurou apenas ganhar tempo para reconstruir a abatida força militar do estado com um cronograma, diretrizes, instruções e financiamento da Casa Branca, integrado ao Plano Colômbia e impostas pela administração de Bill Clinton para abortar uma solução política democrática para o conflito colombiano, e dar início a sua campanha para reverter as mudanças progressivas que desde então avançam no continente. O satanizado processo de Caguán estava condenado ao fracasso antes mesmo de começar, como tem corroborado o ex-presidente Pastrana, pois seu governo nunca buscou preparar o caminho para a paz, senão para reforçar e aperfeiçoar seu aparato de dominação para continuar a guerra.

Sétimo: Estes fatos não invalidam a possibilidade de uma solução política para o conflito colombiano. Evidenciam sim, a intenção quase nula da classe dirigente colombiana de ceder em sua hegemonia e sua intolerância frente a outras correntes ou opções políticas de oposição que questionam seu regime político e seu alinhamento internacional incondicional a favor dos interesses imperiais dos Estados Unidos, em detrimento de nossa soberania e contra os mais caros e significativos interesses da nação e da pátria. Sua concepção sobre o exercício do poder é marcada e sustentada pela violência, pela corrupção e pela ganância, o que torna ainda mais difícil uma saída sem derramamento de sangue; de todas as formas, uma solução política continuará sendo bandeira das FARC – EP, e certamente de amplos setores do povo que, afinal, são os que sofrem os efeitos da hegemonia oligárquica.

Oitavo: Os interesses dos diferentes setores sociais estão se confrontando permanentemente. Em momentos e por períodos definidos, a oligarquia exerce sua ditadura a fundo, sem respostas transcendentes por parte das maiorias em função da pressão, repressão, guerra suja e desqualificação que se desenvolve desde o Estado até elas de diferentes maneiras; em outros, as respostas são importantes, mas não são suficientes; porém, após um acúmulo de fatores sociais transbordantes, a resposta popular é contundente. Nós entendemos que os interesses dos diferentes setores de uma sociedade como a nossa estão em constante movimento e choque, nunca paralisados. Assim, falar na Colômbia de hoje do pós-conflito é propaganda enganosa.
Nono: Esta reflexão é pertinente, posto que as causas geradoras da revolta armada em nosso país existem mais vivas e pujantes do que há 46 anos, o que reclama, se queremos construir um futuro de convivência democrática, maiores esforços, desprendimento, compromisso, generosidade e imaginação realista para atacar a raiz dos problemas e não as consequências do mesmo.
Décimo: Após 12 anos da ofensiva total contra as FARC - EP por parte do governo dos Estados Unidos e do Estado colombiano, os assassinatos oficiais, verdadeiros crimes contra a humanidade, hoje chamados de falsos positivos, o terror crescente da nova máscara do narcoparamilitarismo denominada bandos criminosos, a asquerosa truculência do presidente para permanecer no poder através de trapaças, a desenfreada corrupção da administração e da iniciativa privada, que em troca dessa mesma corrupção e de milionárias somas apoia o governo, a descarada invasão do exército gringo na Colômbia e a crescente injustiça social com desemprego elevado, sem acesso aos serviços de saúde para a maioria, com um altíssimo êxodo interno, com um ridículo salário mínimo em oposição aos enormes lucros dos banqueiros, latifundiários e empresas multinacionais, e depois de haver rapinado com uma reforma trabalhista as conquistas salariais mais significativas dos trabalhadores do campo e da cidade, tudo que alcançaram foi adubar ainda mais o terreno para o crescimento da insurgência revolucionária.
SEGUNDA PARTE

1. O conflito armado colombiano possui profundas raízes históricas, sociais e políticas. Não foi a invenção de nenhum demiurgo, produto de ânimos sectários, nem consequência de alguma especulação teórica, mas o resultado e a resposta a formas determinadas de dominação específicas, impostas pelas classes governantes desde os germes do Estado - nação cujo eixo tem sido a sistemática violência terrorista anti-popular, propiciada desde o Estado, especialmente nos últimos 60 anos.
2. Superá-lo, por vias pacíficas, supõe que preliminarmente exista total disposição para abordar as questões do poder e do regime político, se a decisão é encontrar soluções sólidas e duradouras.
3. Temos levantado a necessidade de conversar, em princípio, para lograr acordos de troca, o que permitiria não só a liberdade dos prisioneiros de guerra de ambos os lados, mas também avançar na humanização do conflito e, certamente, ganhar terreno no caminho para acordos definitivos.
4. Conversar, buscar conjuntamente soluções para os principais problemas do país, não deve ser considerada como uma concessão de ninguém, mas como um cenário realista possível de se tentar, mais uma vez, pôr fim à guerra entre os colombianos a partir da civilidade dos diálogos.
5. Reunir-se para conversar sobre trocas e uma solução pacífica supõe plenas garantias para fazê-lo sem qualquer pressão, tendo por certo que aquele que pode outorgar-lhe, é, exclusivamente, o governo de turno, se realmente tiver vontade de encontrar caminhos de diálogo.
6. A nossa histórica e permanente disposição para encontrar cenários de confluência através do diálogo e a busca coletiva de acordos de convivência democrática que não dependam de conjuntura especial ou da correlação de forças políticas é, sensivelmente, parte da nossa dificuldade programática.
7. Durante os últimos 45 anos temos sido objeto de toda sorte de ofensivas políticas, propagandísticas, militares, com a presença aberta ou velada do Pentágono, com todo tipo de ultimatos e ameaças de autoridades civis e militares, sob uma permanente agressão terrorista contra a população civil nas áreas em que atuamos, etc, que não prejudicou a nossa determinação e vontade de lutar, por qualquer meio que nos deixem, por uma Colômbia soberana, democrática e com justiça social.
8. Entendemos os diálogos, na busca de caminhos para a paz, não como uma negociação, porque não o são, mas como um enorme esforço coletivo para chegar a acordos que possibilitem atacar as raízes que originam o conflito colombiano.

TERCEIRA PARTE

As FARC somos resposta à violência e à injustiça do Estado. A nossa insurgência é um ato legítimo, um exercício do direito universal que assiste a todos os povos do mundo a se rebelarem contra a opressão. De nossos libertadores aprendemos que, "quando o poder é opressor, a virtude tem o direito de aniquilá-lo", e que, "o homem social pode conspirar contra toda lei impositiva que tenha curvado seu pescoço”.
Tal como foi proclamado pelo Programa Agrário dos Guerrilheiros, as FARC "somos uma organização política militar que recolhe as bandeiras bolivarianas e as tradições libertárias do nosso povo para lutar pelo poder e levar a Colômbia ao execício pleno de sua soberania nacional e fazer vigente a soberania popular. Lutamos pelo estabelecimento de um regime democrático que garanta a paz com justiça social, o respeito aos direitos humanos e um desenvolvimento econômico com bem-estar para todos que vivem na Colômbia."
Uma organização com estas projeções, que busca a realização do projeto social e político do pai da República, o Libertador Simón Bolívar, irradia em sua tática e estratégia um caráter eminentemente político impossível de refutar. Somente o governo de Bogotá, que atua como uma colônia de Washington, nega o caráter político do conflito. O faz no marco da sua estratégia de guerra sem fim para negar a saída política que reivindica mais de 70% da população. Este pretende impor pela força uma antipatriótica concepção de segurança idealizada pelos estrategistas do Comando Sul do exército dos Estados Unidos, relegando para um lugar secundário a dignidade da nação.
Para o governo de Uribe, na Colômbia não há conflito político-social, mas uma guerra do Estado contra o “terrorismo”, e com este pressuposto, complementado pela mais intensa manipulação informativa, acredita-se com justificativa e carta branca para desencadear o seu terror de Estado contra a população, e negar a solução política e o direito à paz.
Agora que a Colômbia é um país formalmente invadido, ocupado militarmente por tropas estadunidenses, essa absurda percepção será reforçada, resultando no agravamento do conflito.
Uribe não foi instruído por seus mestres em Washington para a troca de prisioneiros políticos nem para a paz.

O presidente da Colômbia cria fantasmas para justificar a sua imobilidade frente à questão da troca de prisioneiros: que o acordo implica um reconhecimento do estatuto de beligerante do adversário e que a liberação de guerrilheiros provocaria uma grande desmoralização das tropas ... É a sua maneira de atravessar pedras no caminho do entendimento. Esta intransigência desnecessária do governo tem sido a causa da prolongação do cativeiro de prisioneiros de ambos os lados. Quando Bolívar assinou o armistício com Morillo em novembro de 1820, propôs ao general espanhol aproveitar a vontade de entendimento reinante para acordar um tratado de regulamentação da guerra "conforme as leis das nações civilizadas e os princípios liberais e filantrópicos”. Sua iniciativa foi aceita, proporcionando a troca de prisioneiros, a recuperação dos corpos dos mortos em combate, e o respeito à população civil não-combatente. Quão distante está Uribe desses imperativos éticos de humanidade.
Sem dúvida, associa Uribe a solução política do conflito com o fracasso e a inutilidade de sua Doutrina de Segurança Nacional e a melancólica finalidade de seu frenesi bélico em aplastar pela força das armas o crescente descontentamento social. Parece um soldado da II Guerra Mundial, perdido em uma ilha, atirando em inimigos imaginários em meio à sua loucura.
Aos participantes deste intercâmbio sobre o conflito colombiano, reiteramos as observações feitas recentemente aos presidentes da UNASUL e da ALBA:
"... Com Uribe imbuído com o frenesi da guerra e encorajado pelas bases norte-americanas, não haverá paz na Colômbia nem estabilidade na região. Se não frearem o belicismo - agora repotenciado – incrementar-se-á em proporção dantesca a tragédia humanitária na Colômbia. É hora da Nossa América e o mundo voltarem seus olhos para este país violento desde o poder. Não se pode condenar eternamente a Colômbia a ser o país dos "falsos positivos", do assassinato de milhares de civis não-combatentes pelas forças de segurança, das valas comuns, do despejo de suas terras, o deslocamento forçado de milhões de camponeses, as detenções em massa de cidadãos, da tirania e da impunidade dos agressores protegidos pelo Estado ".
Como um princípio de solução política do conflito, solicitamos o reconhecimento do status de força beligerante às Farc. Seria o início da marcha em direção à paz na Colômbia. Se estamos falando de paz, as tropas norte-americanas devem deixar o país, e o senhor Uribe deve abandonar a sua campanha goebbeliana de qualificar de terrorista as FARC. De nossa parte, estamos prontos para levar a discussão sobre a organização do Estado e da economia, da política social e da doutrina que irá guiar as novas Forças Armadas da nação.

Com os melhores cumprimentos.
Compatriotas,
Secretariado do Estado-Maior das FARC.
Montanhas da Colômbia, fevereiro de 2010