20/11/2010

Pai Contra Mãe

Nesse dia da Consciência Negra, 20 de novembro, o PCB publica um conto de Machado de Assis que reflete o horror e as profundas seqüelas que a escravidão deixou gravada em nosso país.
Por Machado de Assis
A Escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres.

A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", - ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves, - em família, Candinho,- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao

Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

-Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
--Não, defunto não; mas é que...

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

-Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.


-Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço.

Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

-Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

-Vocês verão a triste vida, suspirava ela.
-Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.
-Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco...
-Certa como?
-Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
-A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...
-Bem sei, mas somos três.
- Seremos quatro.
-Não é a mesma cousa.
- Que quer então que eu faça, além do que faço?
- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.
- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso.
Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

-É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

-Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. - Titia não fala por mal, Candinho. -Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

-Quem é? perguntou o marido.
-Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

-Não é preciso...
-Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

-Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.

Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

-Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
--Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era

já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.


--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
- Siga! repetiu Cândido Neves.
-Me solte!
-Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.

-Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

-Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
- É ela mesma.
-Meu senhor!
-Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

-Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

19/11/2010

MANIFESTO DOS ESTUDANTES OCUPADOS NA REITORIA DA PUC-SP

Ocupamos a Reitoria nesta noite como forma de protesto pela maneira com a qual o Redesenho Institucional, demissões e bolsas vem sendo tratadas nesta universidade. O verticalismo burocrático tem mantido toda a comunidade puquiana à margem de um dos mais importantes processos pelo qual essa universidade já passou. Nós, os estudantes, seguidamente pagamos o pato das políticas desastradas da gerontocracia universitária. Basta! Não aceitaremos a intervenção da tropa de choque neste ato político, como é costume dos poderosos da burocracia universitária. Basta! Não ficaremos calados, conforme é a vontade dos de cima. Basta! Democracia se faz de forma direta, sem conselhos de fantoches, sorrisos e bocas. Basta de laboratórios picaretas e mensalidades altas. Realmente, do alto do castelo, a vista é linda.Quem sabe o que é o Redesenho? Estamos aqui para debater com cada estudante, de portas abertas, para construir opiniões e consensos. Sim, a Reitoria da PUC-SP não é mais um claustro, à mando da Santíssima Trindade (Pai, Cúria, Bradesco Santo).
O movimento estudantil da PUC não consentirá com tais medidas arbitrárias. Propomos pelo momento:
- Só haverá negociação mediante o resultado das assembléias de curso e com a garantia de não haver nenhuma forma de repressão tanto pela Graber quanto pela polícia.
- Anulação do Processo de Redesenho Institucional. Por um processo realmente democrático, construído pela comunidade.
- Pela revogação da atual política de bolsas que impede os primeiranistas de terem acesso à universidade. Queremos bolsas que atendam as reais necessidades dos estudantes e que a abertura deste novo edital se dê mediante à participação dos estudantes.
- Nenhuma demissão de professores e funcionários. Chega de demissões!
- Nenhuma punição aos estudantes ocupados. Choque então, nem pensar.
- Solidariedade as demais ocupações em todo o Brasil. A nossa luta é uma só!
Amanhã acontecerão assembléias por toda a universidade para discutir as demandas especificas de cada curso frente ao processo de Redesenho.
NÃO PASSARÃO
Estudantes ocupados da Reitoria da PUC-SP

18/11/2010

SEGUIR AMPLIANDO A INTERSINDICAL – UM INSTRUMENTO A SERVIÇO DE DESVELAR A LUTA DE CLASSES RUMO AO SOCIALISMO

Resolução do III Encontro Nacional da Intersindical
13, 14 e 15 de novembro de 2010
Campinas/ São Paulo
As centenas de trabalhadores e trabalhadoras reunidos no III Encontro Nacional da Intersindical realizado entre os dias 13 e 15 de novembro de 2010 na cidade de Campinas /SP, após intensos debates acerca da realidade que vivemos no Brasil e no mundo e dos desafios que temos a enfrentar como um dos instrumentos que contribuem para reorganização do movimento da classe trabalhadora define como prioridade para o próximo período:
Seguir com unidade e coerência entre nossa elaboração e ação:
Isso significa dizer que é preciso ver a realidade de nossa classe para além das fronteiras das nações. O Capital para recuperar-se de mais uma de suas crises intensificou os ataques à classe trabalhadora: demissões, redução de direitos e salários, é a formula fundamental para que o Capital busque a recuperação de seus lucros.
O Estado age como uma das principais contratêndencias para o que o Capital se recupere. Fartos recursos públicos injetados nas indústrias e bancos que logo se transformarão numa conta que o Estado cobrará dos trabalhadores.
O exemplo disso está por toda Europa, os governos preparam pacotes que vão desde a redução drástica dos programas sociais até eliminação de direitos dos trabalhadores. As greves gerais na Grécia no inicio desse ano contra as medidas impostas pelo governo em reduzir direitos e salários, as intensas greves gerais na França contra o pacote do governo que começa por aumentar a idade para aposentadoria dos trabalhadores. É o Estado cumprindo seu compromisso com a classe economicamente dominante: garantir fartos recursos ao Capital e cobrar essa fatura exatamente daqueles que produzem o lucro para esse mesmo Capital: os trabalhadores.
Nossa classe reage em intensas e extensas lutas em mais uma demonstração que a luta de classes pulsa de maneira densa, ora escancarada como se vive na Europa, ora oculta como em outros espaços desse mundo.
No Brasil a aparência do “nada nos atingirá”:
Em 2008 o governo dizia que a crise não chegaria aqui, para logo depois proclamar que ao chegar seria apenas uma marolinha. Para além da retórica do presidente a realidade: demissões em massa, redução de salários e direitos em categorias e regiões do país onde vários sindicatos e suas respectivas centrais pelegas ao invés de organizar a luta, escolheram a parceria com os patrões.
Já no segundo semestre de 2009 e por todo ano de 2010 a impressão que se manifesta no Brasil é que as saídas do Capital para crise tiveram um efeito “ameno” contra os trabalhadores. Pura expressão, nada mais do que uma forma que tenta ocultar o conteúdo.
O Estado se endividou até as tampas para garantir investimentos públicos para salvar empresas e bancos, isentou e diminuiu impostos das grandes indústrias e assistiu “indignado” o mesmo Capital demitir, arrochar salários e reduzir direitos.
A dívida que o Estado na Europa tentar colocar na conta dos trabalhadores logo chegará ao Brasil. Reformas, arrocho, maior intensificação dos ritmos de trabalho são as propostas dos patrões com o apoio dos governos que nos esperam em 2011.
CONTRA ESSES ATAQUES SÓ A ORGANIZAÇÃO E A LUTA QUE ROMPE COM AS CERCAS E NOS COLOCA EM MOVIMENTO COMO CLASSE.
A Intersindical não sucumbiu ao pacto com os patrões e seus respectivos governos, nas saídas impostas pelo Capital. Mais do que dizer não a redução de direitos e salários, organizamos a luta a partir dos locais de trabalho. Em seguida em vários ramos a partir de greves e paralisações da produção conseguimos reajustes salariais superiores a períodos anteriores, como garantimos a manutenção e ampliação de direitos.
Mas é preciso avançar ainda mais. O processo de precarização das condições de trabalho se intensifica através das terceirizações, contratos temporários, intensificação e aumento dos ritmos e da jornada que têm aumentado o número de acidentes, doenças e mortes nos locais de trabalho.
O necessário salto de qualidade é ampliar nossa organização e ação que rompa com as cercas impostas que nos dividem entre categorias, formais e informais, efetivos e terceirizados, desempregados, trabalhadores da cidade e do campo, imigrantes, isso tudo tem como objetivo explorar ainda mais nossa força de trabalho e fragmentar nossa luta.
A Intersindical seguirá organizando a luta a partir dos locais onde o Capital e seu Estado atacam a classe trabalhadora: nos locais de trabalho, moradia e estudo e seguirá tendo a iniciativa de unidade de ação com todas as organizações que não sucumbiram ao pacto com os patrões e seus governos e estão dispostas a ampliar a luta por nenhum direito a menos a para avançar nas conquistas.
A cada passo de nossa organização e luta a tarefa de desvelar o que o Capital e seus instrumentos tentam ocultar: a luta de classes e a necessidade de superar a sociedade capitalista e construir uma sociedade socialista.
Como prioridade já para o primeiro trimestre de 2011 organizarmos mobilizações nos locais de trabalho que reúnam as diversas categorias como passo que rompa com o corporativismo imposto pelos patrões e governos. Além disso, tomaremos a iniciativa de propor juntos a outras organizações do movimento sindical e popular que estejam dispostas a lutar a organização de um DIA NACIONAL DE LUTAS, que dever ser o inicio do processo das intensas mobilizações que devemos organizar contra os ataques que irão se intensificar no próximo período.
COM A CLASSE E NÃO EM SEU NOME
No processo de reorganização do movimento sindical, a Intersindical não sucumbiu ao mais do mesmo, ou seja, conseguimos consolidar e ampliar esse instrumento nascido em 2006 agindo nas contradições reais de nossa classe.
Não nos pautamos pela analise mecânica e superficial que basta decretar uma nova central para que os problemas de fragmentação da classe trabalhadora estejam resolvidos. E ao não abrir mão de seguir construindo a Intersindical- Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora, a ampliamos em diversos ramos e estados do país, pois o fizemos com a nossa classe e não apenas em seu nome.
Acreditamos que a criação de novos instrumentos que possam garantir unidade de organização e ação numa central sindical, serão frutos das ações que formos capazes de organizar a partir da base onde os trabalhadores vivem no dia a dia os ataques do capital e não a partir de decretos com data e hora pré-determinada em nome da classe, sem a classe.
A partir de nossa analise, do balanço, das ações organizativas e de luta que nos trouxeram até aqui o III Encontro Nacional decide seguir ampliando a Intersindical como um Instrumento de Organização e Luta que contribui de maneira determinante para o processo de reorganização que vivemos.
Intensificaremos a ampliação de nosso Instrumento de Organização, como ampliaremos nossas lutas nos locais de trabalho, estudo e moradia e seguiremos tendo as iniciativas necessárias de unidade de ação com as todas as demais organizações que estejam dispostas a de fato lutar.
POR NENHUM DIREITO A MENOS E PARA AVANÇAR NAS CONQUISTAS
PARA CONTRUIR A GREVE GERAL
PARA DERROTAR O CAPITAL
AQUI ESTÁ A INTERSINDICAL

17/11/2010

‘Lula consolidou o capitalismo e instrumentalizou o Estado no Brasil’

Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
12-Nov-2010

Com a confirmação no segundo turno da eleição de Dilma Rousseff, o país se prepara para viver a etapa pós-Lula, o pai dos pobres que deixou a presidência com consagradora aprovação, inclusive daqueles que um dia ameaçaram abandonar o país caso o operário chegasse ao Planalto.

Para analisar a vitória petista e o que se pode esperar do futuro brasileiro, o Correio da Cidadania entrevistou Ildo Sauer, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e ex-diretor de Petróleo e Gás da Petrobrás na gestão de Lula até 2007. Para explicar como Lula "consolidou a hegemonia do capitalismo sobre as relações sociais e de existência", vai às vísceras da política nacional, desnudando o seu funcionamento no "pós-mensalão" e a partilha das riquezas nacionais entre os mesmos setores privilegiados de sempre.

Para sustentar tamanha metamorfose em relação ao projeto original petista, Ildo aponta como Lula soube instrumentalizar o aparelho estatal, avalizando o apoderamento da máquina pública, a partir de inusitados formatos, por representantes de grandes grupos econômicos. "Entregar de 2,6 a 5,5 bilhões de barris de petróleo e uma hegemonia tecnológica do núcleo da Petrobrás ao Eike, sem nenhuma resistência, foi algo brutal contra o interesse público. Portanto, são vários formatos de privatização".

Ildo faz um importante alerta: a ‘nova cartada’ na ‘partilha’ do patrimônio público vincula-se ao Pré-Sal, a partir do ‘poder autocrático e unilateral do presidente’, ao lado da desmobilização e cooptação de grande parte do movimento social. Situação que remeteria a uma mistura entre os processos vistos no México - onde o PRI (Partido Revolucionário Institucional), que ficou no poder entre 1917 e 1994, instrumentalizou a riqueza do petróleo - e na Argentina - com um sindicalismo na gaveta do Estado, cujo papel se restringe a dar legitimidade social ao governo, que, em troca, atira os restos do banquete em forma de assistencialismo.

Apesar de lamentar seu pessimismo ao final da conversa, e como alguém que participou diretamente da gestão Lula, o engenheiro não fez concessões para descrever as engrenagens da política brasileira, inclusive desvelando a futura esterilidade da Lei da Ficha Limpa. Terminou com uma autocrítica de quem partilhou dos sonhos dos anos 80.

Correio da Cidadania: Como encarou o período eleitoral, os debates que foram levados a cabo, culminado com a vitória de Dilma Roussef nessas eleições?

Ildo Sauer: De certa forma, a campanha eleitoral acabou sendo resolvida em parte pela longa metamorfose pela qual o governo Lula passou. Logo em seu início, quando liderava um governo hegemonicamente do PT, veio a Carta aos Brasileiros, a fim de garantir algo que era razoável – estabilidade econômica, tranqüilidade social, pois se esperava um processo de profundas mudanças por parte dos mercados. Uma carta que, portanto, tornava o governo aparentemente aceitável para alguns segmentos como estratégia de transição.

Evidentemente, todo mundo concordava com a necessidade de estabilidade da moeda, redução do processo inflacionário, já que o sistema capitalista de produção ainda seria hegemônico de qualquer maneira e por longo tempo, e isso tinha de ser mantido. Mas progressivamente, após 2003, 2004 e 2005 passarem tranqüilos, apareceu a ironia de o sucesso do Lula ser o anti-Lula, o avessso de si mesmo, o que foi percebido pelo mercado, pelo sistema financeiro internacional e pela burguesia nacional. Então, o anti-Lula, que de fato residia dentro do Lula, garantiu a estabilidade, sendo seu próprio fiador, à medida que revelou como líder aquilo que alguns já tinham percebido em seu entorno, mas que não estava claro: o partido passou a ser secundário, e a figura carismática de Lula ficou como fiadora das expectativas da burguesia, ao mesmo tempo em que era profundamente donatário e depositário das esperanças do processo construído ao longo de décadas em torno do PT, da mudança.

O processo que ele conduziu foi o de garantir as expectativas de grande retorno ao capital financeiro, via juros, aparelhamento das empresas públicas, BNDES, para manter a taxa de investimento, numa transformação da estrutura produtiva brasileira que se manifestou em vários campos hegemônicos. Criou-se uma petroleira brasileira que faz sombra à Petrobrás – a OGX de Eike Baptista; a petroquímica ficou em torno do grupo Odebrecht; nas telecomunicações, após uma disputa quase de faroeste, com espionagem, dois ministros envolvidos, fundos de pensão, terminou por hegemonizar o grupo Telemar, encastelado no grupo Jereissati e Andrade Gutierrez, com a coincidência, ou não, de seu principal executivo ser amigo de infância da nova presidente; nas obras de infra-estrutura, o BNDES consolidou outros grupos econômicos com hegemonia no Brasil e exterior, nas áreas de agronegócio, carnes, frigoríficos. Há a Vale, que vinha do governo FHC, mas no fundo o Lula criou um monte de Vales; instrumentalizou os fundos de pensão, as estatais, o BNDES e outros bancos para financiar tais ações. E mais ainda: hegemonizou um protagonismo na África, América Latina, de grupos econômicos como vendedores de equipamentos, obras de infra-estrutura, hidrelétricas, rodovias e outros projetos financiados pelo BNDES. Uma espécie de sub-imperialismo.

Com isso, a agenda do PSDB - a chamada social-democracia que na prática implementou todos os cânones do neoliberalismo hegemônico dos anos 90 - foi seqüestrada pelo Lula. Lula seqüestrou a agenda da burguesia, mantendo e ampliando os espaços abertos pelo governo tucano, e ao mesmo tempo se manteve depositário da esperança de um processo longamente construído.

Assim, nestas eleições, havia pouco espaço para uma candidatura legitimamente de esquerda ser ouvida pelas bases, pois ainda há toda essa herança construída de esperança e transformação, ainda formalmente depositada pela população no PT. Isso é demonstrado pelo voto. De onde veio a grande vitória do governo? De regiões que antigamente eram chamadas pelo depreciativo nome de grotões. Mas hoje não existe esse tipo de coisa na democracia, os votos têm o mesmo valor.

É bom observar tais ondas da percepção política. Na ditadura, o MDB, que liderou a resistência eleitoral a ela, se tornou hegemônico nos grandes centros urbanos, progressivamente encurralando a ARENA a regiões periféricas. Veio o PT e o solavanco da social-democracia, varrendo o PMDB pra periferia e tomando seu espaço nos centros urbanos. Agora, é interessante ver o misto: a hegemonia do PT voltou a essas regiões periféricas, com menor grau de desenvolvimento e acesso ao processo de consumo e renda.

Enquanto isso, criou-se nos grandes centros a onda verde, do discurso ambiental, de sustentabilidade, mas sem conteúdo fortemente social, problema básico do país. E ao mesmo tempo, veio o ressurgimento do discurso conservador - numa social-democracia, do ponto de vista teórico, expresso pelo PSDB. No limite do pouco que PT e PSDB expressam programaticamente, o PT em tese é social-democrata, mas muito mais operador da máquina – levou-nos a um discurso um pouco mais populista contra outro um pouco mais elitista, com pequenas nuances na forma de abordar o Estado. Não vejo muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor dos interesses privados. Portanto, nesse sentido, os projetos são parecidos, tanto que não geraram entusiasmo.

Correio da Cidadania: Os votos nulos, brancos e abstenções nesta eleição são significativos deste quadro que o senhor ressalta, de mais semelhanças do que diferenças entre os blocos de poder representados por PT e PSDB?

Ildo Sauer: Sim, é importante notar, para simplificar essa análise inicial: os votos brancos, nulos e abstenções atingiram 28%, dentro de um eleitorado de 135 milhões. O candidato que ficou em segundo, teve 32%; 32 mais 28, já se vão 60%, enquanto os restantes 40% ficaram com a candidata vencedora. De modo que esse é o quadro resultante da longa metamorfose do projeto que nasceu socialista e progressivamente virou gestor dos interesses da burguesia nacional, do setor financeiro, industrial, do setor contratista de obras públicas, expressos no Brasil e no exterior. A grande diferença para o PSDB é que o PT ainda conta com a enorme confiança e esperança dos setores mais distantes, das cidades mais periféricas e mais pobres. O futuro mostrará, no entanto, as semelhanças entre ambos os partido, à medida que o debate evoluir e isso for decantado, com a transparência e capacidade de mobilização aparecendo. Os movimentos sociais têm uma clara identificação histórica, assim como as regiões que citei, com o PT. O movimento ambiental se ancorou na Marina, mas se dividiu. Esse é o quadro brasileiro.

Para definir, o governo Lula foi aquele que consolidou as relações sociais de existência e de trabalho capitalistas com a hegemonia capitalista no país. Até Lula chegar ao poder, havia a dúvida se aqui poderia nascer um experimento de caráter social-democrata, mas profundamente transformador, que apropriasse socialmente os excedentes econômicos provenientes das rendas, com controle público sobre o petróleo, telecomunicações, potenciais hidráulicos, sobre tudo que é patrimônio da nação, inclusive a terra, cujo resultado econômico seria apropriado para fins públicos. Mais do nunca, vemos uma privatização e internacionalização da terra; ao invés de fazermos a reforma agrária, nós estamos internacionalizando cada vez mais o agronegócio e o acesso à terra.

Portanto, o governo Lula foi o que consolidou o capitalismo no Brasil, gerando a tal falta de diferença na campanha.

Era nítido que todos procuravam mostrar quem tinha feito mais disso ou daquilo no passado. Mas não se discutiu a reforma da educação, necessária, com conceito e amplitude, horizontalização; não se discutiu a reforma agrária, que ficou escondida; não se discutiu a reforma urbana, a questão da moradia, do planejamento, abarcando onde as pessoas vivem, trabalham, circulam, enfim, a mobilidade de um transporte público de qualidade; não se discutiu a questão da reforma da saúde, e não há um brasileiro que queira estar submetido ao nosso sistema de saúde público, muito bem concebido e mal implementado. Ninguém deseja circular nos transportes públicos nas grandes metrópoles; ninguém acredita que a proteção ambiental hoje, da qualidade do solo, ar e água nas cidades e em termos globais, seja aceitável; ninguém está satisfeito com o volume de investimento em ciência, tecnologia e pesquisa.

E, no entanto, o país parece feliz, o que é um paradoxo. De onde vem isso? Creio que da pequena sensação de bem estar, promovida por uma conjuntura econômica, externa e interna, favorável.

Com a situação pós 2ª. Guerra, a visão cepalina da economia, de Celso Furtado e tal, denunciava o subdesenvolvimento em parte como produto da deterioração dos termos de troca, em que a produção primária – essencialmente minérios, agricultura –, por ser de baixo grau de manufatura, exportada pelos países latinos, se defrontava com o enorme valor atribuído às importações de produtos de maior conteúdo tecnológico e industrializados.

Houve uma reversão desse processo comandada a partir do dinamismo da economia chinesa, que passou a ter a necessidade do afluxo de alimentos, matérias-primas etc., para poder incorporar 40, 50 milhões de chineses todos os anos ao processo modernizado de produção, saindo da atividade camponesa, braçal, de baixo nível de apropriação energética, para o nível de produção industrial urbanizada. Portanto, acho que essa situação da China e da Ásia comandou tal transição, fazendo sua revolução industrial e urbana, iniciada nos anos 70, com uma grande quantidade de empresas estatais planejando estrategicamente e implementando. Na China, a renda da terra não existe. Os solos urbano e rural pertencem ao Estado. Assim, o preço da terra e da moradia, como custo de reprodução da força de trabalho, são bem menores, propiciando o acúmulo de enormes excedentes.

O dinamismo chinês, e em parte indiano também, permitiu, mesmo com a crise de 2008 que afetou Europa e EUA, que não se afetasse a valorização progressiva dos produtos primários brasileiros. Porém, ao mesmo tempo, assistimos à deterioração da nossa balança de pagamentos, porque a taxa de câmbio é muito valorizada em função da alta taxa de juros, devido à necessidade de atrair dólares para nossas reservas – as quais, por si só, já custam muito, pois implicam em ampliação da dívida pública interna para a compra e manutenção dessas reservas, com um custo de 12% ao ano sobre os 270 bilhões de dólares de reservas. A dívida pública não pára de crescer desde o governo FHC, já tendo alcançado R$ 2,2 trilhões, parcela significativa do PIB, de maneira que tal quadro deixa a preocupação com a desindustrialização futura.

De qualquer maneira, tal período de prosperidade comandado por essa conjuntura internacional foi determinante para a pequena sensação de bem estar, que permitiu dar um pouquinho mais para os que nada tinham, e muito mais para aqueles que já tinham muito, configurando a partilha do governo Lula, consolidando definitivamente as relações sociais capitalistas e abafando a expectativa de um movimento social que propunha outro quadro. É isso que foi revelado. O discurso tradicional da esquerda foi seqüestrado, e de certa forma também foi seqüestrada a prática da direita. E o Lula, com uma mão de cada lado, emplacou sua candidata, ainda que de forma muito mais apertada do que podia supor a dita popularidade de seu governo.

Assim, o que vejo no próximo governo é o aprofundamento do capitalismo nessa trajetória e, a partir daí, talvez, um espaço para o novo debate. É a minha percepção.

Correio da Cidadania: Portanto, Dilma levará adiante o legado de Lula, reforçando as tendências neoliberais, como a continuidade da política econômica, ao lado das tendências sociais/assistenciais do governo Lula, com eventual ampliação do Programa Bolsa Família.

Ildo Sauer: É muito claro. Mais assistencialismo, mais Bolsa Família, quando o caminho necessário para mudar a sociedade é criar autonomia, promover independência, que só se faz com as reformas da educação, urbana, da mobilidade, agrária, da infra-estrutura... Falo reforma, não revolução; reestruturar o que existe, dando novos sentidos, direção e conteúdo.

Como o produto social é único no PIB, é preciso escolher em que direção vão os recursos, que caminho teremos. E o que está aí é mais do mesmo. Grande parte da poupança é canalizada pelos bancos públicos, e muito pouco se reverte em investimento público, como se viu, por exemplo, no programa Minha Casa Minha Vida. Todos reconhecemos a enorme carência da habitação, mas não só isso. Além de casa, as pessoas precisam de transporte, escola, morar menos distantes do trabalho... A reforma urbana tem de ser mais ampla.

E o que esse programa engendrou? Um enorme movimento de especulação imobiliária, em que a renda do solo urbano acabou enriquecendo pequenos grupos especuladores. E mais ainda: hoje temos uma longa ironia sobre a promessa de ‘minha vida’ e ‘minha casa’. O que se criou? Dinheiro dos fundos públicos, dos fundos de garantia, do FAT, que são poupanças mandatórias da força de trabalho e que recebem uma remuneração abaixo do valor capitalista, de 3% ao ano de juros sobre o fundo de garantia, sendo apropriado pela Caixa, que empresta esse dinheiro muitas vezes a empresas estrangeiras, muitas das quais fracassaram no mercado imobiliário dos EUA e agora estão aqui. Elas tomam esse dinheiro, compram a força de trabalho dos trabalhadores, construindo a casa com a força de trabalho e a poupança deles, com mediação dos bancos e lucro enorme, terminando por criar uma dependência de 20, 30 anos do trabalhador com as prestações sobre aquilo que foi uma valorização extraordinária do capital originalmente do próprio trabalhador, que o poupou compulsoriamente via fundo de garantia.

Nesse caminho, o que houve? A especulação do solo urbano, que explodiu de preço, um sobrepreço enorme no custo do trabalho incorporado aos insumos e mão-de-obra. Aí se expressa o verdadeiro caráter capitalista desses projetos ditos sociais. Há outros modelos, desde os mutirões, cooperativas e uma estrutura planejada, com o planejamento urbano retomado da localização urbana em relação à escola, trabalho, planejando também a mobilidade.

De repente, isso permitiria não soltar da garrafa com tanta força o espírito da especulação e da acumulação quase primitiva sobre o solo urbano e a construção. Digo isto pra mostrar como projetos que ancoraram grande parte da aprovação ao governo são na verdade mais do mesmo, significando cada vez mais acumulação capitalista para quem controla os meios. E, claro, enquanto a economia continuar crescendo, haverá uma sensação de bem estar.

Podemos dizer que temos um enorme peleguismo político, para não chamar de populismo, paternalismo, agora maternalismo. A única solução é a busca de um grande debate de projeto nacional, sobre quais as propostas concretas para as reformas citadas anteriormente, os planos de proteção ambiental e, acima de tudo, para o setor do mais extraordinário excedente econômico: as rendas do petróleo e o setor de energia, temas varridos pra baixo do tapete, que só voltaram à campanha após provocações de gente externa, que mostrou claramente que o rei estava nu, pois ambos se acusavam de privatistas e ambos estavam corretos.

O governo FHC iniciou a entrega do petróleo como um todo, dando razão a ambos em suas acusações – e não se pode diferenciar o petróleo do Pré-Sal daquele das demais camadas, pois são qualitativamente pouco distintos, com diferença raramente acima de 10% em seu valor; portanto, tanto faz 60 ou 70 dólares no preço do barril, pois de toda forma são valores astronômicos. O governo Lula exerceu por muito mais tempo, e talvez com mais gosto, o modelo de concessões criado por FHC, e no final propôs uma mudança já obsoleta, a da partilha, ao invés de um novo modelo.

O que está no horizonte (aliás, a grande ameaça política que vejo ao país)? Se olharmos as experiências de México e Argentina, vemos dois paradigmas que inspiram cautela com o futuro. Se houver um crescimento econômico, a tendência é que a "pax lulensis", da mão direita grande e esquerda pequena (mas que afaga o coração e a consciência dos mais humildes com redistribuição), se mantenha e o capitalismo floresça no Brasil. Se houver crise, o governo talvez lance mão de um recurso que remete à história mexicana... O México fez uma revolução muito sangrenta no início do século passado, que se institucionalizou no chamado processo da Constituição de 1917; em 1938, a nacionalização do petróleo e a criação da Pemex passaram a gerar um fluxo de excedente econômico comandado pelo Estado e pelo PRI, que o permitiu ficar no poder de 1917 a 1994, quando, por corrupção, exaustão e crise econômica, acabou varrido por um governo mais conservador ainda. A partilha do excedente econômico do petróleo mexicano é algo que está no horizonte e merece atenção, porque o Projeto de Lei que tramita no Congresso delega ao presidente ouvir do conselho nomeado também por ele a definição sobre quase tudo que será feito; o ritmo em que o Pré-Sal será colocado em partilha, quem vai participar do processo e quem vai dirigir tudo.

Nesse sentido, a experiência mexicana é o exemplo de como a apropriação do lucro do petróleo, comandada pelas instâncias do governo, permitiu uma partilha entre as elites, fortalecendo-as e mantendo-as no poder. Ao mesmo tempo, temos um movimento sindical no Brasil que perdeu seu rumo classista histórico; teve um período de discurso socialista de enfrentamento ao capitalismo, mas busca hoje a conciliação, à semelhança da Argentina, onde a principal tarefa das grandes centrais e sindicatos - que se enfrentam mutuamente, mas se abrigam no governo, que lhes dá recursos, espaço político, mantendo a corrente sindical ativa - é conferir uma aura de legitimidade social aos governos.

Portanto, se olharmos as duas experiências, podemos vislumbrar a enorme dificuldade, mesmo em situações de crise daqui pra frente, que a esquerda brasileira terá em se reorganizar, pois está claro que o atual governo não é mais de esquerda; seqüestrou boa parte do discurso de esquerda, mas sua prática é nitidamente conservadora.

Dessa forma, é o desafio que sobra: compreender o que está em jogo, buscar, talvez, uma frente de esquerda e amplificar os debates públicos. Uma frente que, a exemplo de outras ondas, consiga se multiplicar, para, na medida em que as contradições ficarem mais claras, se agrupar em uma iniciativa política.

Acho que a esquerda, com seus méritos específicos, está muito fragmentada, em muitos partidos. Creio ser hora de pensar, como saída para o debate, e o atual quadro de enfrentamento, numa frente de esquerda que abrigue tais partidos, abrindo discussões sobre todas as questões em jogo, elaborando propostas concretas em torno dessas reformas e de como apropriar socialmente os recursos, disputando-os com o governo de turno. Certamente, se não houver tal pressão, a partilha será pior ainda, e creio que esse é o nosso papel.

Correio da Cidadania: Acredita, de todo modo, que a futura presidente possa, de alguma forma, caminhar do foco mais assistencialista das políticas sociais sob o governo Lula – a exemplo do Bolsa Família - para um programa mais abrangente de distribuição de renda - incrementando, por exemplo, as políticas de valorização do salário mínimo e se contrapondo aos aspectos do projeto de reforma tributária, já em fase de discussão no Congresso, e que são prejudiciais à seguridade social?

Ildo Sauer: A campanha eleitoral deixou como ironia paradoxal um xeque-mate no governo que entra. A partir do momento em que a oposição conservadora propõe aumento do Bolsa-Família e do salário mínimo, o governo entrante não terá outra saída a não ser acompanhar a idéia. Paradoxal que tenha vindo do movimento conservador essa proposta de redistribuição. O alcance vai depender das contas públicas, da dívida pública e da taxa de juros extremamente elevada, promovendo uma dilapidação do valor do trabalho, na medida em que os impostos são arrecadados e encaminhados para bancar a usura do sistema financeiro, já que temos uma das taxas mais altas de remuneração financeira do mundo.

Nos EUA, tem até um movimento em curso de aumento da liquidez com injeção de dólares a custo muito baixo. É uma tendência natural que parte significativa desses dólares saia, chegue ao Brasil, aprofunde a queda da taxa de câmbio daqui, aumente as reservas, ou venha fazer investimentos como comprar terras, desnacionalizar mais empresas na área econômica, eventualmente até para forçar o governo a abrir mais espaço a empresas estrangeiras na exploração do petróleo, quando o projeto devia ser o contrário.

Devia se proceder a um maior conhecimento e delimitação das reservas e só produzir petróleo no ano para custear os investimentos das reformas da saúde, urbana, educacional, da infra-estrutura, mobilidade (inclusive de longa distância), agrária, viária, dos portos, da proteção ambiental, de ciência e tecnologia. E ficar com uma reserva de petróleo de valor debaixo da terra, não sendo administrada por uma oligarquia política que vai disputá-la a ferro e fogo dentro dos conceitos que descrevi antes. Não acredito que não haja nenhum investimento.

Há uma pressão no modelo que o governo discute agora de promover uma rápida licitação dos contratos de partilha, para abrir espaço econômico de investimentos em plataformas e infra-estrutura, capturar finanças e converter tudo em dinheiro. Tirar o petróleo debaixo da terra e convertê-lo em dinheiro.

Nesse processo, todo mundo vai ganhar. O governo vai acumular algum capital financeiro lá fora no fundo social, não se sabe em que moeda, porque todas estão em xeque hoje. Vão investir em títulos da dívida americana? Em euro, que não tem muita estabilidade, em função de sua credibilidade não estar ancorada em nenhum tesouro nacional (é uma confraria que tem uma moeda)? E os EUA estão em franca decadência. Em que moeda vamos verter o petróleo, em que país, na América Latina, África, EUA, Europa? É muito mais simples deixar o petróleo debaixo da terra e só produzir o volume necessário!

Correio da Cidadania: E controlar de verdade a exploração.

Ildo Sauer: E, antes disso, saber quanto tem de reserva, pra saber em que ritmo produzir ao longo do tempo. Por duas razões: em primeiro lugar, para tirar de lá apenas o excedente econômico necessário ao financiamento do projeto nacional de desenvolvimento econômico e social nos paradigmas que acabei de citar; e, em segundo lugar, para poder participar. O governo brasileiro não pode criar motos-contínuos, que, uma vez assinados os contratos, vão cumprir as etapas automaticamente.

Encontrou petróleo? Vão fazer o plano de avaliação, saber se é comercial, e, se for, vão começar a produzir e, o mais rapidamente possível, converter em dinheiro, no interesse daquele contrato. Isso se choca com a necessidade de ver qual o volume de reservas disponíveis para financiar as prioridades nacionais e, em segundo lugar, com o controle da participação brasileira no mercado internacional. Porque, sem o Pré-Sal do novo modelo, a produção anunciada hoje, só pela Petrobrás, prevê quase 6 milhões de barris por dia em 2020. Só por parte de outro empresário, que recebeu desse governo em 2007 o volume que agora já está entre 2,5 a 5,5 bilhões de barris, valendo de 27 a 55 bilhões de dólares como patrimônio, já se anuncia que em 2019 estará sendo produzido 1,4 milhão de barris por dia, sendo que a Petrobrás não produz 2 milhões atualmente.

E vão exportar tudo que se refere ao que está fora do novo modelo do Pré-Sal, mas como parte do que FHC e Lula entregaram. O Brasil vai ser o 3º. maior exportador do mundo. Em primeiro lugar, vem a Arábia, com 10 milhões de barris/dia; depois a Rússia, com 8 milhões; o Brasil estará em mais de 5 milhões de barris possivelmente em 2020, enquanto os demais não passam de 4 milhões. Isso apenas com o que se tem hoje entregue somente a dois grupos, Petrobrás e OGX, leia-se Eike Baptista - fora os outros que estão entrando. E note bem que este grande empresário já resolveu ser parcimonioso. Deu 1 milhão de reais pra cada campanha, de Serra e de Dilma, dizendo ser necessário não ser mal tratado por nenhum dos dois.

Desse modo, veja como é grave o risco da mexicanização. Uma enorme economia petrolífera, comandada por um governo na forma como vem se configurando: um condomínio de partidos e líderes com parca, digamos assim, capilaridade entre as forças sociais, e, ao mesmo tempo, sob pressão, do outro lado, dos grandes grupos econômicos, com enorme capacidade de influência.

Para quem produz tantos bilhões de barris, e sabendo como é comprável o financiamento das campanhas eleitorais e a lealdade dos eleitos a esses interesses - dentro do conceito second life, do discurso público diferente da prática nas entranhas do poder -, este é o caminho.

Correio da Cidadania: Isso é o mais impressionante. Hoje em dia o sujeito afirma abertamente o que pode ser entendido, sem distorção alguma, como a ‘aquisição particular’ do mandato – ironicamente, privatização do próprio parlamentar. Paga-se a propina na campanha e alguns interesses privados são escancaradamente atendidos por sobre outros.

Ildo Sauer: Essa é uma parte das questões políticas e econômicas que se colocam, porque no fundo eu vejo as limitações, no atual estágio da sociedade brasileira, de um partido que no discurso mantenha a realidade, mas com propostas práticas. Veja que até agora só falei de reforma, não de revolução, pois não vejo espaço para tanto. Talvez não fosse um sonho, mas não vejo como possível. Nem essas reformas estão na agenda! Essa é a tragédia resultante da consolidação da hegemonia política.

Por isso que PT e PSDB, que teoricamente teriam essa convergência social-democrata, mutuamente se excluem. Eles não querem um projeto, querem um espaço de poder, para manejar os recursos econômicos e serem gestores e líderes dessa partilha. Não há espaço para ambos fazerem a mesma coisa, que não é a reforma social-democrata. É gerir o capitalismo tal como ele está, com sua crueza, virulência, mascaramentos, contradições.

Nesse sentido, o processo político brasileiro lamentavelmente está subordinado à hegemonia dos grandes grupos econômicos, que estão se convertendo em meros síndicos do grande condomínio econômico. Como disse, o governo Lula avançou ao consolidar grandes grupos brasileiros dos vários campos da economia.

Consolidou alguns bancos, com fusões, principalmente após a falência de vários deles em 2008. Na área de eletricidade, o grupo Rede e a Camargo Correa ficaram hegemônicos na distribuição, grupos europeus e nacionais na transmissão e as estatais do sistema Eletrobrás foram convertidas em muletas voltadas a dar confiança às empreiteiras e ao capital privado. Tanto que a tarifa elétrica hoje é uma das mais caras do mundo ao consumidor cativo, e uma das mais baratas do mundo para os 600 consumidores privados do mercado dito livre, mas que na verdade é apenas usurpador. Na área da petroquímica, a Braskem se tornou hegemônica, com a Petrobrás servindo de âncora, por imposição do governo. Na área do petróleo, o caso mais notório é o da OGX, mas há outros grupos nacionais e internacionais crescendo muito aqui, na única das três grandes fronteiras mundiais do petróleo que lhes permite.

Além disso, o grande patrimônio brasileiro hoje na área de petróleo é duplo. De um lado, os recursos naturais estão debaixo do sal e da terra, valendo quase o mesmo. A organização social capaz de convertê-los em riqueza quando necessário e a Petrobrás estão, ambas, sendo alvo dessa mediação da entrega. Como exemplo, a OGX, como já ressaltado, criada em meados de 2007 - informação já confirmada pelo governo -, com ajuda de ex-integrantes dos governos Lula e FHC, arrancou lucros estratégicos sem nenhuma resistência e ação do governo. E logo depois de comprar os blocos em novembro de 2007, vendeu 38% das ações por 6,7 bilhões de reais, 11 meses depois de criada.

Portanto, ela já valia 17 bilhões e, ao fazer os primeiros furos, conforme previsto e denunciado previamente em 2009, já anuncia reservas de 2,6 a 5,5 bilhões de barris. E cinco bilhões de barris equivalem a tudo que o governo incorporou da Petrobrás pra aumentar seu capital, no valor de 42 bilhões de dólares hoje. O valor de mercado hoje seria dessa ordem, o que colocou um senhor como o mais rico do Brasil e um dos mais ricos do mundo, tornando-o generoso em filantropia. Vai às favelas, duplica a generosidade do presidente da República, ao arrematar o seu terno de posse em um leilão por 500 mil. E ainda o devolve ao presidente, dobrando a aposta. Vai ao Teatro Municipal e vira mecenas da arte e cultura, com migalhas do que herdou num lance articulado nos bastidores do governo, que não reagiu.

Esse é o indicador claro do risco que falo da articulação em torno do petróleo como mecanismo aglutinador de forças e recursos para manter a hegemonia político-eleitoral. É um exemplo concreto e aconteceu agora. Os mesmos atores estão vivos, reavivados e abençoados nas urnas.

Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio, o sociólogo Chico de Oliveira afirmou que, na medida em que o governo Lula tem consolidado no Brasil o ‘capitalismo monopolista de Estado’, chega a ser mais privatizante do que o de FHC. Ao mesmo tempo, o senhor ressaltou há pouco que não há muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor de interesses privados, e que está se consolidando no Brasil uma partilha do espaço produtivo entre grandes grupos econômicos, entre eles Camargo Corrêa, Odebrecht, Eike Baptista, sob patrocínio do governo e com a ajuda do BNDES e dos fundos de pensão. Essas duas assertivas não estão bem associadas entre si?

Ildo Sauer: Sim, e caso não haja uma resistência popular organizada, com capacidade de entendimento da dimensão política, compreendendo que uma onda de mudança hegemonizada pelo PT não mais está em curso - em função da metamorfose do partido –, corre-se um sério risco de se consolidar esse curso econômico.

Mas os movimentos sociais ainda estão presos a isso, e é difícil recriar e mudar tal compreensão. É o desafio político: ter uma proposta e a capacidade de fazê-la compreendida em seus conceitos pelas bases, os verdadeiros interessados, ou seja, os trabalhadores, os grupos sociais, estudantes, todos aqueles excluídos da grande festa; aqueles que habitam a senzala da esperança, enquanto a Casa Grande faz a festa. E o padrinho, e também a madrinha, tem uma mão muito gentil na Casa Grande, enquanto a outra, pequenina, apenas acaricia o povo que mora na senzala.

Correio da Cidadania: O grande patrimônio brasileiro na área do petróleo está, como dito pelo senhor, submetido a uma mediação perversa para entrega a grandes grupos econômicos. Haveria alguma chance, mínima que fosse, de a presidente eleita negociar a volta do monopólio do petróleo, revertendo a Lei 9478/97 de FHC – já que se trata de uma reivindicação de vários movimentos sociais, bem como de estudiosos, que consideram que a substituição do modelo de concessão pelo de partilha da produção não é satisfatório, já que o setor privado continuará com presença maciça e determinante?

Ildo Sauer: Essa discussão tem dois papéis. Um de tentar de fato retomá-la, porque tecnicamente é possível se apropriar do excedente econômico do petróleo por vários meios: tributários, sobre a partilha, imposto de renda, há vários mecanismos. Mas o problema é que, embora possíveis tecnicamente essas várias apropriações, quem controla a reserva outorgada, quem controla a produção na partilha ou concessão, tem um poder econômico enorme na mão pra convencer o governo e o Congresso, como ficou claro nessa eleição e com o que já foi entregue. Isso está patente e claro!

Por isso a defesa do monopólio, da necessidade de delimitar, certificar e conhecer as reservas, definir publicamente o debate do ritmo de produção, do que fazer e onde aplicar o excedente econômico, em que reformas sociais. E tal idéia pode se tornar hegemônica, pois também tenho percebido nos vários campos estudantis, de operários, profissionais liberais e até de empresários, que, quando compreendem o que está em jogo, refloresce a idéia da necessidade do controle político da sociedade sobre esse recurso. Não é questão que se delegue a qualquer governo eleito, pois o transcende. Portanto, esse é um discurso que acho que chama a atenção e permite mobilizar parte da sociedade.

O outro ponto é a destinação, sem dúvidas. Todo mundo reconhece a necessidade da reforma da educação, da saúde, urbana, da mobilidade, da recuperação ambiental, do aprofundamento da ciência e tecnologia, de toda a infra-estrutura de circulação da produção nacional. É uma agenda que, conciliando os dois debates, pode mobilizar as forças. Mas não seria tarefa fácil. Até porque temos de reconhecer que qualquer governo tem um ano de graça, a não ser que aconteça um escândalo muito grande ou uma desgraça, o que é improvável.

Correio da Cidadania: Um governo Serra não seria, nesse sentido, ainda mais privatizante do que o governo Dilma poderá ser no que diz respeito ao nosso petróleo - afinal, ex-ministros do governo FHC criticam explicitamente a substituição do modelo de concessão pelo de partilha, sob o argumento de que o Estado não tem condições de levar adiante os investimentos astronômicos necessários ao Pré-Sal?

Ildo Sauer: Eu não afirmaria isso porque acho que ambos foram privatizantes. O que mudou foi o instrumento, a modalidade e a configuração da privatização. Entregar de 2,6 a 5,5 bilhões de barris de petróleo e uma hegemonia tecnológica do núcleo da Petrobrás a um grupo privado, sem nenhuma resistência, foi algo brutal contra o interesse público. Portanto, são vários formatos de privatização.

O que deve ser discutido é como o excedente econômico e a riqueza nacional são colocados a serviço das elites, e como poderiam ser colocados a serviço das reformas fundamentais na sociedade, pra criar a autonomia de todos os brasileiros.

Não vou ser repetitivo, mas é que se desgastou muito o debate da educação, saúde, nas eleições. "Sou o gerentinho que vai fazer tantas APAS, AMAS, Escolas Técnicas, não sei o que...". Cadê o conteúdo do debate? O SUS como conceito é excelente, mas está às traças. Basta dizer que poucos brasileiros que têm condições de evitá-lo se submetem aos seus serviços. Lamentável, mas é a tragédia do Brasil. A primeira delas, a educação.

Nesse sentido, são dois formatos semelhantes da mesma prática. Com nuances diferentes, mas conteúdo semelhante, e conseqüências também semelhantes. Interessante que tanto os grupos financeiros como empresariais são os mesmos, o que denota claramente que esse é um governo a serviço dos interesses dos grandes, como seria o outro, um com um estilo mais populista, outro mais elitista, o que é a grande diferença entre eles.

Evidentemente, para o grande empresariado e a burguesia, o governo sucessor do Lula é melhor, pois tem mais aceitação popular, além da confiança de tais setores, o que se cristalizou nas eleições. Eles devem estar muito felizes, pois fizeram a aposta certa. Tudo que vier de fora de tal expectativa será da mobilização popular, o que é uma tarefa gigante que se coloca diante daqueles que ainda têm uma concepção de sociedade diferente da que hoje é hegemônica - não no discurso, mas na prática real.

Correio da Cidadania: Pensando no setor elétrico, citado pelo senhor, o governo Lula tinha entre seus objetivos iniciais uma reorientação do modelo do setor relativamente ao modelo privatista de FHC. Vários estudiosos entrevistados por este Correio confirmam sua avaliação de que esse objetivo foi alcançado de modo muitíssimo limitado, na medida em que continuam a prevalecer grandes consumidores e sua lógica de lucro, a descapitalização das estatais e a influência de interesses de poderosos setores eletro-intensivos sobre o governo. Como ficará, a seu ver, o setor elétrico sob um governo Dilma? Diante de suas conjecturas políticas, tudo indica que não será nada menos privatizante do que o seria um eventual governo Serra.

Ildo Sauer: Ela é a madrinha do que foi feito, eu dizia que ela criou o Bolsa-energia para o ‘mercado livre’, que valeu cerca de 20 bilhões de reais de 2003 pra cá... Por que haveria de alterá-lo? Eles têm tido alguns dissabores porque periodicamente aparece, como neste ano, a ameaça de garantia do suprimento. Exatamente porque o mercado livre não contrata transparentemente sua demanda a futuro, vivendo de especular, do que o governo entendia como sobras e que não eram, e sim energia firme, que custava capital e recursos às estatais, vendida como se fosse energia de sobra, secundária, sem garantia e segurança.

Por isso, de vez em quando aparece, como agora, a idéia que chegaram a cogitar de operar todas as usinas de gás, e fora da ordem de mérito. Portanto, o consumidor cativo que paga, em beneficio dos livres, especuladores. Assim, nesse último ano até se chegou a cogitar operar as usinas a diesel, pois os reservatórios chegaram próximo ao limite mínimo de confiança. Em caso de crescimento econômico no ano que vem similar ao deste ano, podemos chegar ao fim de 2011 com muito risco, se a hidrologia dos dois anos acabar sendo desfavorável. O que mostra a instabilidade, pois a única reforma feita foi a da necessidade de contratação de longo prazo, uma proposta nossa, mas como veio junto da idéia de que parte do mercado não precisa registrar contratos de longo prazo, já veio fraudada no seu objetivo por conta dessa não contratação.

O restante do modelo ficou igual, com algumas pioras, como a não recuperação das estatais como empresas autônomas, sendo colocadas de muletas de parceria com empreiteiras e investidores privados na transmissão e geração; continuamos privatizando os potenciais hidráulicos; aliás, não fomos capazes de escolher os melhores nos últimos anos, tampouco de fazer os estudos sociais, ambientais, obter as licenças, negociar de maneira civilizada com as populações atingidas. Nada disso foi feito, repetimos o que era feito desde os governos militares. Como ela (Dilma) comandou tudo, talvez um pouco mais distante a coisa ande melhor, mas não há uma expectativa muito positiva de que isso aconteça...

E, de novo, como grande parte dos movimentos sociais atingidos por essas ações todas nos últimos momentos se posicionaram a favor dela, na falta de outra alternativa, chegamos a uma desmobilização diante do que vem por aí.

Correio da Cidadania: Dessa forma, a gestão do setor, um dos mais rentáveis de toda a economia nacional, é uma síntese do aparelhamento do Estado por interesses privados, além de uma pista de que tal modus operandi será mantido.

Ildo Sauer: O setor elétrico foi, sim, colocado a serviço dos interesses do grande capital. O BNDES financia tudo, os empresários privados comparecem de um lado com a muleta da estatal e do outro lado no mercado cativo para garantir a compra, além da pequena porção que vai para a especulação do ‘mercado livre’.

De forma que criamos um quadro onde a idéia anterior do PT de que o excedente econômico possível no setor elétrico (a diferença entre custo de produção e o valor na esfera do mercado da circulação na eletricidade), e mesmo em outros, como nas telecomunicações, poderia ser usado como alavanca para resolver as assimetrias na área das carências sociais, inclusive na infra-estrutura energética para todos, foi para as calendas. Fizemos o Luz Para Todos, com muita propaganda, mas nem todos têm luz, e muitos a têm precariamente. Além de muitos escândalos.

As estatais foram canibalizadas pelo mercado livre e colocadas a serviço dos novos investimentos desejados pelas empreiteiras; deixou-se de fazer a manutenção, o que levou a dois apagões notórios: o da linha de Itaipu e outro no Nordeste, mostrando a precariedade em que se encontra a manutenção. Depois de 20 anos operando com plena confiança, Itaipu caiu em descrédito, operando abaixo do nível de projeto, usando usinas a gás para segurar, por falta de manutenção e, claro, gestão do setor. Eis o quadro advindo da submissão da gestão das empresas aos contratos que as empreiteiras demandam. As estatais têm poucos recursos porque venderam grande parte de sua energia muito abaixo do custo.

Ademais, grande parte de suas gestões foi loteada entre interesses de base partidária, de despachantes de interesses empresariais e políticos, cuja demanda e atenção não eram voltadas à plena manutenção, confiabilidade e operação no nível máximo. Os gestores estavam lá, mas voltados a novos projetos, investimentos e a tais demandas políticas. Tanto que o sistema Eletrobrás tem uma rentabilidade abaixo do custo de capital médio, enquanto os grupos privados têm uma rentabilidade enorme no mesmo sistema produtivo. Os consumidores cativos pagam as tarifas mais caras do mundo, ao passo que alguns grupos privados e comercializadores têm à sua disposição a energia mais barata do mundo.

Eis a contradição criada nesses oito anos de governo. Se não acontecer nenhuma tragédia - que é muito improvável, mas não inteiramente descartável -, a festa vai continuar.

Correio da Cidadania: E Belo Monte, uma das jóias da coroa do PAC, mas tão criticada e combatida por ambientalistas e movimentos sociais pelos impactos ambientas e sociais, vai entrar nessa festa também?

Ildo Sauer: Já está fazendo parte. Belo Monte é uma empresa concebida no governo militar e a essência do que se previu fazer naquele tempo foi executada agora. Assim como no rio Madeira, com as usinas Santo Antonio e Jirau, gestadas no governo FHC com a Furnas e a Odebrecht. Apenas partilharam uma das duas com outro grupo, pra não ficar tudo com a Odebrecht.

De forma que, concretamente, há o processo de submissão desse espaço econômico, dos recursos naturais e da estrutura empresarial estatal, ao interesse da acumulação capitalista dos grupos privados. É a essência do que vem sendo feito.

Tal lógica vale para o petróleo e por isso a afirmação de que o governo Lula é o que mais instrumentalizou, de maneira mais eficaz, com mais aceitação social, a submissão do espaço econômico dos recursos do Estado em favor da acumulação capitalista privada.

É o que está em jogo. É nesse sentido que vai minha afirmação, e de muitos outros, de que o Lula consolidou o capitalismo e instrumentalizou o Estado no Brasil.

Correio da Cidadania: Correm especulações de que serão tomadas medidas fiscais duras já nesse fim de mandato de Lula, para evitar desgaste de Dilma em início de gestão. O que pensa a respeito?

Ildo Sauer: Primeiro, é preciso ver que reformas são essas. Note que há reformas e reformas, e quem clama por elas quer reduzir direitos trabalhistas, sociais, previdenciários. É isso que está em jogo. São contra-reformas na verdade, o aprofundamento do modelo concentrador de privilégios e riquezas. É difícil avaliar, pois acho que o Congresso estará mais dócil, a não ser que a disputa pela partilha de cargos seja muito violenta.

Mas o governo o tem ao seu lado hoje, embora nenhum partido tenha significado. Ou seja, está tudo pulverizado e todos buscam uma fatia. De maneira que, se a partilha for promovida no estilo anterior, vai ter uma maioria pra fazer qualquer coisa no começo do governo. Vai ser mais fácil a aprovação de projetos no novo governo, tanto que já se cogita concluir o modelo do Pré-Sal depois. Isso porque do Congresso atual sobra pouco; os derrotados têm expectativa relativamente baixa e os reeleitos estão olhando o futuro. Assim, no início do governo, vão tentar colocar as principais questões na mesa e resolvê-las na medida em que se consolidam as promessas de entrega da barganha.

Não sei se me faço entender, mas é algo como "vamos fazer essa e essa reforma no começo e votá-las. À medida que vocês forem confirmando os votos, vamos confirmando o espaço no governo pra vocês". É um pouco jogo de gato e rato, porque ninguém mais confia em ninguém, uma desconfiança mútua generalizada.

Correio da Cidadania: Vão fazer troca de reféns.

Ildo Sauer: É uma boa figura de imagem, é o que está em jogo neste processo político.

Correio da Cidadania: Quanto a estas facilidades referidas do novo governo no Congresso, Chico de Oliveira, na entrevista ao Correio acima citada, afirmou também que as bancadas majoritárias, e agora aumentadas, da base governista nas duas casas farão o próximo governo mais conservador do que o de Lula. O que pensa a respeito de tal idéia?

Ildo Sauer: Creio que sim, porque será mais fácil trabalhar. E é preciso compreender o papel secundário que lamentavelmente o Congresso tem tido ultimamente, de mero carimbador. Grande parte da representação eleita se converte muito mais em despachante do interesse de grupos, muitas vezes com forte conteúdo econômico e até empresarial. Foram eleitos de forma genérica, com apoio de recursos e a profissionalização da campanha...

Nesse sentido, entendo que o Executivo detém o poder real. O Congresso é um espaço de legitimação formal da democracia, mas os grandes debates nacionais estão em outros campos há muito tempo (no campo econômico), os quais o Congresso apenas legitima. Seus líderes buscam um tentáculo, algum espaço em órgão de governo, acima de tudo alguma estatal, onde poderão nomear o despachante de interesses e mediar e proteger o jogo econômico dos grupos que os apóiam.

De maneira que novamente se manifestam as duas mãos. Acho que há uma figura de imagem muita apropriada do processo político do Brasil: o Second Life, ao qual já me referi, criado há algum tempo, em que o sujeito, além de cuidar de sua vida real, programa e vai comandando uma vida no computador. Eu temo que o típico agente político brasileiro tenha sua second life; uma pública, e a outra que fica nesse compromisso permanente, que não aparece, mas é com quem vive mais intensamente, o verdadeiro âmago do que ele faz: as articulações com o poder econômico. Ao mesmo tempo, tem a necessidade de aparecer diante de setores amplos da população como representante de algum interesse popular. Mas, na verdade, se expressa de um jeito ao público, enquanto, na articulação interna, inclusive em alianças interpartidárias na base do governo, busca avidamente nomear dirigentes de órgãos públicos, que por sua vez são colocados lá como mais que despachantes de interesse. Servem a essa correia de transmissão montada pra promover, de fato, a partilha daquele excedente econômico que cabe ao Estado e às empresas públicas gerirem. E as empresas de grande porte são muito visadas, porque direcionar contratos, organizar e legitimar esse processo é uma das tarefas. Tanto que grande parte da competência atribuída a dirigentes é a de ser o preposto político capaz de escapar dos órgãos de fiscalização e das áreas corporativas da empresa.

Inclusive, e de certa forma, isso é uma tragédia que diminui um pouco o alcance da Lei Ficha Limpa. Porque se, de um lado, ela surgiu de um sentimento público contra a prática de ilícitos contra a economia popular e o patrimônio público, por outro lado, grande parte dos dirigentes políticos terceiriza e nomeia despachantes para praticar tais atos. Eles não os cometem mais diretamente, pois têm seus prepostos para tal.

E ironicamente, em muitas corporações, já se criaram elites, que são como jogadores de futebol, cujo passe é comprado e vendido. São bem treinadas tecnicamente a serviço da nomeação política. Um exemplo notório foi com o ex-presidente Collor, cassado, capaz de ter um preposto, que nem conhecia de antigamente, que alugou o crachá de um técnico da Petrobrás para ser seu diretor da BR Distribuidora. É típico exemplo de como o alcance da Lei Ficha Limpa, efusivamente saudada, tem seu papel limitado, na medida em que a deterioração do papel político do Congresso, dos eleitos, faz com que estes não desempenhem papel direto, mas ‘apenas’ de influenciar diretamente, nomeando prepostos que nunca vão ser candidatos. Se forem pegos e condenados, o preposto lava as mãos. Esse é o processo político pós-mensalão.

Correio da Cidadania: O que acontecerá e como reagirá um futuro governo Dilma, e os movimentos sociais, caso uma nova crise econômica bata às nossas portas?

Ildo Sauer:
Só vai ter recurso pra minorá-la, a não ser que bata profundamente e as contradições aflorem; aí pode ser difícil. Mas já passamos pela experiência do Jânio, de estilo voluntarioso, personalista, que renunciou; passamos pelo governo Collor, que tentou promover a partilha entre diferentes grupos econômicos, mas foi ejetado do processo, retornando agora nas asas do socialismo moreno e do caudilho do ABC... É difícil prever o grau de coesão e coerência. Enquanto houver o que partilhar no plano institucional e com os movimentos sociais...

A nova cartada que está na mão com o modelo do Pré-Sal é o poder autocrático e unilateral do presidente, que pode ouvir um conselho nomeado por ele e tomar a decisão de quanto vai produzir e como gerar as expectativas em torno disso. É um elefante na cartola da presidente eleita. Volto a olhar para o México, sendo importante lembrar que, no período de hegemonia da Pemex, o petróleo valia pouco - o excedente era pequeno, na diferença entre custo e preço, pois sua apropriação se dava em outras etapas, não na de produção, como agora. Portanto, acho que o grande coelho da cartola será sempre a partilha do Pré-Sal. No caso é trocadilho, já que o modelo de partilha permitirá... a partilha - não só entre governo e produtores, como também entre os vários produtores. É um recurso de que o governo dispõe pra manter a correia de transmissão andando.

Havendo uma degradação muito forte da chamada moralidade e probidade, já notoriamente degradadas, tal percepção talvez possa chegar às bases se a crise for muito violenta, sem que se consiga manter a pequena mão esquerda fazendo a redistribuição e um pouco de carícia. Talvez, a mão do Lula seja percebida por sua história; o pouco que ele dava aos pequenos provocava enorme sentimento de reconhecimento e esperança, o que talvez não venha pela outra mão.

É difícil fazer previsão do que vai acontecer numa crise. As conseqüências reais aqui dentro vão depender da capacidade da esquerda em se reorganizar em cima de uma nova compreensão do que está em jogo, numa clara plataforma de reformas possíveis no atual estágio de compreensão e mobilização política. Organizar, criar um movimento mais amplo, buscar espaço nos sindicatos e movimentos e recuperar seu espaço de atuação.

Aí, qualquer crise econômica lá fora vai se refletir numa possível mudança da trajetória política do Brasil. Do contrário, é mais do mesmo: mexicanização e justicialismo.

Correio da Cidadania: Pensando um pouco na nova equipe de governo, o que imagina da hipótese de a atual ocupante do cargo de diretora de Energia e Gás da Petrobrás (cargo no qual substituiu Ildo Sauer no segundo mandato de Lula), Graça Foster, ir para a Casa Civil?

Ildo Sauer: Entendo que a Casa Civil sob um José Dirceu era uma Casa Civil com conteúdo político, isto é, tinha um ator com densidade, que operava nas articulações, negociações, em detrimento da hegemonia do próprio presidente. Quem cumpriu à risca os ditames de ser operador em campo, de segurar a máquina estatal, dominá-la, quem negociava com grau de gentileza maior conforme a nobreza do interlocutor nos estamentos da Casa Grande, e tratava com rudeza o povo da senzala, isto é, funcionários públicos, de estatais, era a Dilma. Criou um estilo que é a antítese do que dizem os manuais de gestão, mas foi operativamente, do ponto de vista político, muito instrumental ao Lula, que ficou preservado, tendo alguém que lhe era fiel e operava todos esses campos da maneira descrita, tanto que ele acabou premiando-a com a candidatura e apoio, carregando-a na eleição com seu prestígio.

Para tal paradigma se repetir, talvez não seja impensável uma clone da ex-chefe da Casa Civil e atual presidente, no método e estilo, ocupando o espaço praticando os mesmos métodos. E seria alguém (Graça) ‘liberado’, de muito baixo conteúdo político, baixa densidade pessoal, sem história de liderança no partido, pois é um enxerto já da era da metamorfose petista plena, que chegou muito mais como operadora. Ter no seu entorno, para negociar as concessões aos demais partidos e grupos, alguém de mais densidade política talvez não seja a opção de quem quer manter a hegemonia, o comando a ferro e fogo. Melhor ter alguém que compartilhe sua personalidade, que execute a ferro e fogo o serviço necessário, para que a grande mediação seja feita pelo primeiro mandatário, que só intervém lá na frente, após mandar fazer as coisas.

Foi assim que operou o Lula no pós-Zé Dirceu. Ele estava confinado ao núcleo duro do partido, pois até 2005 quem mandava no governo era o núcleo duro do PT. Três ministros e um presidente que pensavam quase igual: o da Casa civil, o das Comunicações, o da Fazenda e o da Secretaria Geral de governo. Os quatro ministros originários da articulação histórica do partido chefiavam o governo, formando quase uma junta. Mas ela foi degolada e o príncipe emergiu sozinho. Passou a usar subalternos para domar a classe política em seu entorno e promover a partilha, o que tornou Dilma conhecida como gerente eficaz, na medida em que executava à risca os acordos, independentemente dos princípios em discussão. Impunha-os e salvaguardava a figura do presidente.

Esse é o modelo que está posto. Agora, vamos ver o superpríncipe – afinal, não há "rei morto, rei posto", há um muito ‘vivo’ que vai sobreviver - e depois também os comportamentos. Criador e criatura sempre têm conflitos.

Correio da Cidadania: Acredita que, conforme dita o padrão histórico, Dilma poderá se voltar contra Lula? Ou ela veio com a serventia de possibilitar a volta de Lula em 2014?

Ildo Sauer: Depende da conjuntura. A natureza intrínseca do processo levaria a uma possibilidade de afirmação definitiva de que Lula tem a última instância, o poder máximo. Só que exercê-lo às vezes exige uma conjuntura política, articulação, e de vez em quando há erros de avaliação.

A tendência natural seria essa. Mas ninguém aceita de bom grado ser um preposto ocupando o posto máximo. É estratégia de jogo de poder. É melhor ler Maquiavel pra explicar o que vem por aí, ele é capaz de explicar melhor que eu.

Correio da Cidadania: Lula, como os jornais noticiam, "sugeriu" a Dilma que mantenha Meirelles, Guido Mantega e o restante da sua equipe econômica em seus lugares. Dilma vai acatar as sugestões de Lula? No geral, o que o senhor espera da montagem do novo staff? Haverá um arco de líderes e ministros dos mais variados matizes, como fez Lula?

Ildo Sauer: Acho natural que sim. Aquilo que deu certo tem tudo pra ser mantido - a grande mediação. Assim como as questões do comando do governo, e de toque pessoal, de hegemonia interna, ou do comando da Casa Civil com alguém que seja um fiel executor de tarefas, mais do que um articulador de grande porte.

No restante, o governo tem de afirmar que ele vem para ser a continuidade do que já está aí. E, portanto, todos os compromissos com taxa de câmbio, juros altos, toda a lógica que prosperou e fez o que fez prosseguirá, de modo que não há muito a esperar com relação à mudança. Pode até trocar o nome do ator, mas o papel a ser exercido é o mesmo.

A partilha está aí na configuração de toda a equipe, tendo de ser um pouco ampliada, uma vez que o equilíbrio eleitoral é um pouco maior; são quase equivalentes PT, PMDB, PSB e os outros que estão lá, o que aumenta o poder de mediação do príncipe, ou da princesa, que em última instância é quem poderá arbitrar o dote que caberá a cada um.

Trata-se disso, partilha dos dotes. Este é o socialismo! Não o que criamos desde os anos 80, na fundação do PT. Trinta anos depois, vemos o socialismo: a socialização dos espaços do governo entre os grupos políticos, que por sua vez estão lá subservientes a interesses em geral empresariais, do capital, não ao que diz o discurso, voltado aos movimentos sociais. A eles, as migalhas.

Correio da Cidadania: Diante do quadro geral aqui traçado, qual a sua opinião quanto ao apoio que a candidata petista acabou por angariar junto à esquerda e aos movimentos sociais - estes mesmos que partilham as migalhas! -, especialmente no segundo turno? Acredita que fará algum jus a este apoio?

Ildo Sauer:
Vendo que ambos, PT e PSDB, são muito parecidos, e com a imagem histórica do PSDB claramente vinculada ao neoliberalismo, apesar da trajetória de Serra - digamos que ele era a esquerda da direita, enquanto a Dilma a direita da esquerda -, havia pouca clareza para a esquerda e os movimentos sociais.

À medida que o Serra assumiu uma agenda conservadora de direita, não deixou espaço aos movimentos sociais que se vêem como esquerda, a não ser se vincular à mão esquerda do Lula, deixando de olhar a mão direita, que também estava lá. Agarraram-se à mão a esquerda do Lula, sem se perguntarem o que a mão direita, a hegemônica, fará depois.

Portanto, creio que no tabuleiro político faltou um pouco de percepção do xadrez, dado que propostas e práticas são muito parecidas. Aqueles que foram para a candidatura do PSOL ou ambiental no primeiro turno, ou anularam ou se dividiram no segundo; um pouco mais para o Serra, mas não o suficiente para consolidar a vitória eleitoral, mesmo com pouco mais de 40% dos votos do eleitorado. Grande parte dos movimentos optou por tapar as narinas e votar na candidata herdeira de uma história de esperança, especialmente porque o discurso exageradamente conservador do candidato tucano assustou. De certa forma, ele encurralou essas correntes entre a Dilma e o voto nulo.

De qualquer maneira, evidencia-se um imenso vazio político. Falo assim apesar da agenda verde e nova no 1º. Turno, mas com baixo conteúdo social para responder aos anseios nacionais, e do discurso socialista, que não conseguiu se sustentar, em parte porque as regiões que mais se beneficiariam de tal discurso ainda estão prisioneiras do discurso da esperança e da mudança que vem da construção do PT. Uma construção que só agora, após uma longa onda de 20 anos, chega lá, onde talvez só chegue o discurso, porque nas práticas só temos tênues mudanças.

O Bolsa Família, por mais necessário que fosse para extirpar a fome, que grassava, não é suficiente como processo político de criação de autonomia, participação efetiva, tornando os brasileiros mais iguais; ao contrário, aprofunda e cristaliza uma situação social e política inaceitável. Como instrumento de arrancada, é necessário. No entanto, cristalizá-lo cria uma situação política de dependência permanente do paternalismo, outra coisa invocada nessas eleições, de um lado pelo conservadorismo e de outro pelo populismo paternal e agora maternal.

E veja como é contraditório: afirma-se uma mulher presidente como inovação, ao passo em que ela é apresentada como uma mãe, herdeira de um pai maior, criando não afirmação da independência, autonomia e igualdade entre mulheres, homens, regiões etc., mas aprofundando uma relação de dependência, herdeira de uma sociedade injusta, contra a qual foi criado um partido e muitos movimentos sociais. Eis o quadro.

Correio da Cidadania: Finalmente, ainda acredita em um projeto democrático-popular para o Brasil, nos moldes antes pregados, e abandonados, pelo PT, ou imagina que este seja um caminho que se tenha esgotado, devendo ser substituído por um outro projeto de nação?

Ildo Sauer:
Eu acho que o PT tal como criado não existe mais. É um partido convencional que busca tirar o máximo possível da herança memorial de esperança, ainda retendo em suas prisões, seqüestrado, o imaginário de mudanças dos movimentos sociais, com um discurso longa e arduamente construído, ainda que grande parte dos precursores hoje esteja longe. Aqueles que se apoderaram deste patrimônio de mobilização social ainda vão querer tirar o máximo de proveito. Como seus escrúpulos já não eram muitos antes, certamente não terão os mínimos agora, depois da metamorfose, buscando arrancar o máximo dessa etapa, que os próprios vêem como os estertores de um projeto que começou cheio de sonhos, solidariedade, esperança, transformação, e virou uma disputa quase igual à da Noite dos Cristais, dentro e fora do partido.

Temos de fazer uma autocrítica. Muitos de nós partilhamos tal projeto, em detrimento de um outro mais ortodoxo, de exame das reais contradições que habitavam a sociedade brasileira, conseguindo estruturar movimentos sociais capazes de compreender estas contradições e articular um poder real. Um poder em que os líderes que ajudaram nas formulações e se afirmaram no debate dentro das bases fossem os líderes do projeto, criando estruturas orgânicas fortes e indissolúveis, capazes de chegar ao poder e exercê-lo.

Fizemos o contrário: delegamos a agentes simbólicos, com baixo grau de comprometimento, uma agenda real de esquerda. E que puderam, nessa estrutura tênue de correias de transmissão, de laços de cobrança, numa estrutura de partido com forte inserção social, fazer tudo que vimos. E a figura principal foi a cabeça do projeto, que tinha um grande legado histórico, simbólico. Como disse alguém um dia, "a qualquer chefe de esquerda lhe falta o dedo, perdido por um operário na fábrica". Isso é altamente simbólico. Para qualquer líder de esquerda ocupar um lugar hegemônico, vai lhe faltar o dedo perdido na labuta operária. Esse forte simbolismo não se traduziu em compromissos concretos, com a compreensão das contradições da sociedade.

É muito simbólica a afirmação do presidente da República de que ele "chegou lá". Parece que é um Pelé, um jogador ou modelo que chega longe na carreira. Como se fosse possível ter 190 milhões de Pelés, 190 milhões de Lulas, 190 milhões de Giseles Bündchen no Brasil, como se a estrutura social permitisse.

Esse grau verbalizado no discurso mostra claramente a ausência de compromisso com a realidade das contradições dentro do âmago da sociedade brasileira, que é a estrutura social de produção e distribuição do produto social entre os grupos da população. Isso é que precisa ser rearticulado: aumentar as forças produtivas, produzir mais e garantir que a distribuição seja melhor. Mas não se leva a cabo tal tarefa com populismo, assistencialismo, paternalismo, maternalismo, pra onde tudo descambou.

É a autocrítica que faço. Muitos intelectuais participaram do processo e, embora tendo uma compreensão maior, acabaram delegando poder. O símbolo maior foi o sindicalismo. Toda a base, que tinha um baixo entendimento do significado político do que estava em jogo, preferiu depois se servir do espaço de poder e dessa nova partilha com o sistema econômico dominante. E se subordinou a esse capitalismo, aqui no Brasil dependente, mas com um pouco mais de autonomia hoje em dia pela nova inserção internacional do país, criando até asas para um sub-imperialismo na África e América Latina.

Foi o que fizemos, creio que deva ser essa a autocrítica. A estrutura partidária tênue que o PT representava, com facções e diversos grupos, permitiu que quem mais lançasse asas às alianças com a burguesia se tornasse a articulação hegemônica, terminando por desempenhar todo esse papel. É um aprendizado duro, mas vamos ver o que emerge daqui em diante.

Meu último lampejo de esperança é que tudo que disse nesta entrevista não seja verdadeiro. Lá no fundo ainda sobra um pouquinho, um milionésimo, de esperança de que não seja.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.