por Virgínia Fontes [*]
Resumo: O conceito de capital-imperialismo: concentração da propriedade, expropriações, redes de dominação, encapsulamento do trabalho e garantia de circulação do capital. A barbárie humana: expropriações da vida no planeta.
Capital portador de juros, concentração e expropriações
Resumo: O conceito de capital-imperialismo: concentração da propriedade, expropriações, redes de dominação, encapsulamento do trabalho e garantia de circulação do capital. A barbárie humana: expropriações da vida no planeta.
Capital portador de juros, concentração e expropriações
Este artigo procura sumarizar, de maneira muito sintética, algumas das questões centrais trabalhadas em livro publicado recentemente no Rio de janeiro, "O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e História. Há duas faces sociais a considerar quando tratamos da tendência inerente e incontrolável do capital a expandir-se em todas as direções: a concentração de recursos sociais de produção e a recriação permanente das expropriações sociais, o que permite escapar do equívoco da dissociação entre o econômico e o social. A extração de mais-valor [1] , através do trabalho livre, é a forma social específica do capital; nela se sustenta todo o imenso edifício da reprodução social da existência e da concentração capitalista. Ela traduz a atividade necessária para o capital (o exercício do trabalho sob o capital, ou a extração de mais-valor) e supõe a existência abstrata, de um lado, de trabalhadores e, de outro, de recursos sociais concentrados. No entanto, muitas vezes se deixa de lado o fato de que a disponibilidade de trabalhadores livres, que constitui a base social primordial para que seja possível instaurar-se a relação social que imbrica capital e trabalho, deve permanentemente reproduzir-se. Com isso, corremos o risco de deslizarmos da evidenciação da condição social na qual se baseia o capital para a atividade predominante da qual depende a própria reprodução do conjunto da vida social, a acumulação ampliada, ou o mais-valor. Condição e atividade social somente podem existir conjuntamente, ainda que não sejam idênticas. O capital baseia-se na permanente ampliação e exasperação de uma certa forma de vida social específica – a disponibilização massiva, tendencialmente atingindo toda a população, dos seres singulares convertidos em necessidade objetiva e em disposição subjetiva unilateral para a venda de força de trabalho sob quaisquer condições, base social para que um mercado "econômico" supostamente livre possa se generalizar. A expropriação massiva é, portanto, condição social inicial, meio e resultado da exploração capitalista. Nas condições atuais de predomínio do capital portador de juros, as expropriações se multiplicam. O capital portador de juros é o ápice da concentração de trabalho morto em poucas mãos e da irracionalidade da lógica capitalista: punhados de grandes proprietários de recursos precisam valorizá-los e, para tanto, convertem o próprio capital em mercadoria. O valor de uso do capital convertido em mercadoria, ou do capital portador de juros, é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através da multiplicação de agentes voltados para a função de extrair mais-valor. Marx emprega o termo capitalista funcionante para designar a personificação do capital que produz o maisvalor, ao realizar o percurso d-m-d': fungierenden Kapitalisten . O proprietário dos recursos sociais de produção sob a forma do capital monetário (ou portador de juros) exige do capitalista funcionante crescente eficácia nessa extração, de maneira a remunerar tanto o próprio capital funcionante como o capital monetário, ou, ainda, o capital tornado mercadoria. Nessas condições, B [o capital funcionante, o mutuário] tem de entregar a A [o capital portador de juros, o prestamista] parte do lucro obtido com essa soma de capital sob o nome de juro, pois A só lhe deu o dinheiro como capital, isto é, como valor que não apenas se conserva no movimento, mas cria mais-valor para seu proprietário. Permanece nas mãos de B apenas enquanto é capital funcionante. (MARX, 1985, L.III:257) Esse movimento de separação entre a propriedade e o processo de extração de maisvalor é também processo de imposição, pela magnitude da concentração do capital monetário, da extrema intensificação e diversificação dessa mesma extração. O capital monetário converte seus mutuários em agentes funcionantes para a extração de maisvalor: mesmo quando se concede crédito a um homem sem fortuna – industrial ou comerciante – isso ocorre confiando que ele agirá como capitalista: com o capital emprestado, se apropriará de trabalho não pago. Ele recebe crédito na condição de capitalista em potencial. (ROSDOLSKY, 2001: 324) Ao longo da segunda metade do século XX, a propriedade do capital deslocou-se tendencialmente do controle direto dos meios de produção para a propriedade das condições sociais de produção, isto é, das massas de recursos que podem permitir o funcionamento efetivo dos meios de produção. Como já apontava Marx, nessa escala de concentração a propriedade torna-se crescentemente social e abstrata. Em frenética e intensiva busca de valorização, massas faraônicas de capital monetário tendem a agir disseminando capital-enquanto-mercadoria, mas impondo ritmos de retorno ao capital funcionante sempre mais curtos, o que se traduz por taxas de exploração sempre mais elevadas. A lógica do capital-monetário se dissemina como a forma natural da existência social; é-lhe indiferente a concentração ou a dispersão das atividades funcionantes, posto que a concentração fundamental segue aprofundando-se: a da propriedade do puro capital enquanto trabalho morto, sob a forma capital-enquanto-mercadoria, a ser alocado como extrator de mais-valor sob as mais variadas condições. A forma mais imediata do capital portador de juros, desde o tempo de Marx, expressa-se no setor bancário. Porém de forma alguma se limita aos bancos, e Marx já o assinalava. Ademais, seu movimento de permanente concentração gerou historicamente formas variadas de reunião de capitais e de sua gestão, bancárias e não bancárias, como gestores de grandes fortunas, fundos gestores de proprietários acionistas, fundos de tipos diversos, utilização de entidades fundacionais (legalmente sem fins lucrativos, mas proprietárias de massas de recursos cuja valorização é admitida para 'sobrevivência' institucional) e, inclusive, através da captura expropriativa de fundos públicos ou de recursos de trabalhadores. Para Marx, a existência de grandes proprietários de capital monetário, ou portador de juros, com ou sem a orquestração de seus administradores (quer sejam bancos ou outras formas jurídicas) converte o capital numa força social anônima, ao mesmo tempo concentrada e extremamente difusa. O capital monetário não se limita a puncionar: precisa expandir relações sociais capitalistas. Nesse patamar, o capital assume uma configuração diretamente social, por várias razões: não é mais um proprietário controlando a "sua" produção, mas proprietários unificados apenas pela própria propriedade, e que precisam converter seu capital-enquanto-mercadoria, através de quaisquer mãos, em mais-valor. Essa reunião difusa de proprietários, que não precisam sequer estar próximos, realizada sob auspícios de capitalistas-profissionais de intermediação, condensa volumes monstruosos de recursos com o fito de valorizá-los e, portanto, dissemina trabalho morto sob a forma dinheiro a quem o valorize, o converta em capital, em função de diferenciais de taxas de retorno e de sua velocidade de valorização. O capital, a massa de trabalho morto acumulado sob a forma dinheiro que precisa voltar a ser capital, controla seus controladores. A propriedade hiperconcentrada do capital produz tanto a concentração da produção (em grandes conglomerados) quanto sua difusão e dispersão em miríades de empreendimentos. Aprofundam-se as formas sociais aberrantes, como o capital fictício. Esse processo torna a exploração da força de trabalho totalmente social ou, para ser mais precisa, torna a integralidade da sociedade totalmente dependente da "irrigação" de capitais para que ela toda – e cada um – possa subsistir. Vale insistir que o capital monetário não pode ser apresentado como realizando uma mera punção, tal como ocorre com a função usurária, que ele também, aliás, exerce paralelamente. O capital monetário expressa e resulta da expansão do capital industrial ou funcionante (extrator de mais-valor) e a impulsiona numa escala muito superior. Se pode afastar-se da propriedade direta dos meios de produção e das atividades que envolvem a extração da mais-valor, é exatamente porque concentra a pura propriedade das condições e recursos sociais da produção. A determinação social antagônica da riqueza material – seu antagonismo ao trabalho enquanto trabalho assalariado – já está, independentemente do processo de produção, expressa na propriedade de capital enquanto tal. (MARX, 1985, L.III: 267. Grifos meus.) No momento em que o capital monetário se autonomiza perante o trabalho e se distancia dos trabalhadores concretos — aos quais segue impondo a exploração e se beneficiando da valorização que acrescentam ao trabalho morto — no momento, portanto, em que a pura propriedade do capital se evidencia, a determinação social antagônica, do comando sobre trabalho alheio, está colocada de forma generalizada. A propriedade doravante incide não apenas sobre os "meios específicos de produção", de maneira imediata, mas converte-se em potência social acumulada (capital), em possibilidade de transferir de uma a outra massa de meios de produção a capacidade social de fazê-los existir enquanto tais, isto é, de fazê-los atuar para a extração de mais-valor. Desloca-se, portanto, enquanto capital, como relação social capaz de extrair mais-valor em qualquer local, e não apenas como coisas a serem movidas. Para tanto, a existência de trabalhadores expropriados em qualquer local imaginável é uma condição essencial. Longe de se reduzir, a contradição central entre trabalho e capital torna-se mais aguda, generalizando massas indistintas de trabalhadores crescentemente muiltifuncionais, meros produtores de valor e de mais-valor em qualquer atividade, contrapostos ao capital em sua forma genérica, embora este se converta sempre em uma forma específica de exploração. O aparente descolamento entre os dois momentos do capital – funcionante e monetário - expressa entretanto sua mais estreita e íntima imbricação. A aparente dissociação existente entre eles é, de fato, uma interpenetração crescente resultante da concentração da propriedade de recursos sociais de produção e exige expandir formas brutais de extração de mais-valor. O capital portador de juros e sua derivação, o capital fictício, impõem uma aceleração alucinada das exigências tirânicas da extração de sobretrabalho, a toda velocidade e sob quaisquer meios, sem pejo de comprometer para tanto não apenas a vida (e a morte) de milhares de trabalhadores, mas o conjunto das gerações futuras. Se a forma da remuneração do capital portador de juros e do capital fictício é diferenciada – e não entraremos nesse debate, por mais relevante que seja – seu efeito social é similar: impor a ferro e fogo a subordinação geral do conjunto da população, reduzindo e aplastrando todas as resistências à subordinação à lógica do capital de todas as relações sociais. Entretanto, quanto mais tais capitais expandem, de maneira descontrolada, a possibilidade de explorar a força de trabalho, mais abrem espaços para crises econômicas, crises do próprio capital, pois ao acelerarem as condições da concentração e da acumulação, colocam-se na posição de acirradores de todas as contradições do capital, de maneira simultânea, tornando-se potencializadores de crises crescentemente incontroláveis. Fomentam simultaneamente mais produção e mais massa monetária procurando aplicação rentável: abrem-se crises exatamente pelo excesso de concentração, seja pela superprodução de bens que não mais são realizáveis no mercado, seja pela própria superacumulação de capitais, que não encontram mais como rentabilizar-se na mesma proporção anterior. Pela destruição de parcela dos capitais, podem reconstituir-se novos equilíbrios intercapitalistas, embora à custa de enormes e crescentes sofrimentos sociais e ambientais. A existência de enormes massas de capital fictício, de maneira similar à do capital monetário ao qual está acoplado, impõe um resultado social dramático: não apenas aprofunda as expropriações e intensifica as maneiras de subalternização dos trabalhadores, como também impele a comprometer o futuro da integralidade da vida social, transformando-a em mera condição para a reprodução do capital. Se é importante ressaltar as especificidades do capital fictício, supor tanto uma imbricação quanto uma separação absoluta entre ele e os demais capitais segue problemática, uma vez que, resultante da extrema concentração e derivado do capital portador de juros, juntamente com ele acelera a totalidade do processo, e impulsiona a produção da base social necessária para a exploração do mais-valor, de maneira a abrir espaços para a valorização de volumes de capitais muito além das condições das quais partiram. Vale dizer que o conjunto do processo segue tendo como solo a expansão da extração de valor, ou, melhor dizendo, de sobretrabalho sob a forma do mais-valor, mesmo se uma parte da remuneração do capital fictício está descolada de maneira imediata dessa produção. [2] Por que da insistência sobre as expropriações e em que consiste a expansão da base social do capital? O fato de a lógica capitalista lançar a humanidade em crises sucessivas e cada vez mais profundas, como o desemprego crescente nos países europeus e nos EUA, não significa que o capitalismo esteja em processo de recuo ou de estreitamento de suas bases sociais; tampouco a recorrência de crises propriamente capitalistas indica algum recuo do capital. Se o predomínio mundial do capital conduz a crises sociais cada vez mais incontroláveis e arrastam a humanidade para a catástrofe (MÉSZÁROS, 2001), tal predomínio se mantém expandindo exatamente sua contradição central, com a própria humanidade crescentemente convertida em mera força de trabalho. O crescimento da concentração do capital corresponde a um incremento desigual e difuso, porém avassalador, das massas de trabalhadores que constituem sua base social contraditória e tensa. Esse solo social – a expropriação – pode parecer a muitos como excessivamente simples, até mesmo simplório e, de fato, ele é insuficiente para explicar a totalidade das relações capitalistas sendo, entretanto, sua condição necessária. O capitalismo não pode ser reduzido ao movimento de expropriação: estas podem decorrer de situações naturais, como cataclismos, ou de conflitos que não dizem respeito diretamente às relações capitalistas. Em alguns casos, as expropriações não se convertem em capital (isto é, na exploração do trabalho vivo dos expropriados pelos recursos sociais concentrados dos acaparadores), limitando-se a rapinas variadas. Não obstante, o predomínio do capital no plano mundial tende a exigir e impulsionar constantes expropriações, além de nutrir-se, como as aves de rapina, da concentração de recursos que a desgraça alheia favorece. Não se pode olvidar que populações expropriadas em meio a uma situação social mercantil precisam objetivamente subsistir sob o mercado e, portanto, objetiva e subjetivamente, demandam mercado e "empregabilidade" (isto é, acesso à venda da força de trabalho). Essas populações, qualquer que seja a extensão de seu consumo, de luxo ou de necessidades elementares, constituem a base de um mercado de força de trabalho ou de qualquer mercado interno, ou do mercado tout court. Desiguais segundo os países e regiões nos quais nasceram, forjadas segundo direitos e costumes tradicionais diversos, constituem extensa massa de força de trabalho desigualmente liberada para o capital internacional, diferenciadamente formada, mas igualmente disponível (e necessitada) para as variadas formas de exploração de mais-valor e para as mais diversas modalidades de concorrência entre os próprios trabalhadores. Frequentemente o tema das expropriações é relegado à condição de "acumulação primitiva" [3] , como episódico, tendo ocorrido previamente na Inglaterra e reproduzindo-se como complemento da "modernização" nos demais países, espécie de seu corolário, na maioria das vezes indesejáve [4] . A suposição de que a "acumulação primitiva" tenha sido algo de "prévio", "anterior" ao pleno capitalismo leva ainda à suposição de que, no seu amadurecimento, desapareceriam as expropriações "bárbaras" de sua origem, sob uma azeitadíssima expansão da exploração salarial, configurando uma sociedade massivamente juridicizada sob a forma do contrato salarial e "civilizada". Se Marx criticava a origem idílica do capital, aqui se trata de uma figuração idílica da historicidade regida pelo capital. A expropriação primária, ou camponesa ainda está em curso, configurando fenômeno de enorme intensidade e grande duração. Sua extensão e aceleração são impressionantes. Para uma idéia, na Inglaterra e País de Gales, em 1850, a população urbana perfazia em torno de 40,8% do total; na França atingia apenas 14,4% e na Alemanha, 10,8% (WOOD, 2001: 105). As modalidades e ritmos de expropriação primária foram heterogêneos segundo os países, tendo ocorrido também massivas emigrações originárias dos países centrais, conferindo um aspecto especialmente desigual e contraditório ao processo. Não há índices internacionais de expropriação, mas o percentual crescente de população residindo em áreas urbanas no mundo oferece uma idéia de suas atuais dimensões. Ora, se a proposição de Marx estava correta, precisamos observar de que maneira a relação capital "não apenas conserva aquela separação [entre o trabalhador e os recursos sociais de produção], mas a reproduz em escala sempre crescente". (MARX, 1985, L. I: 262) O contexto de expropriações primárias – da terra – massivas e de concentração internacionalizada do capital em gigantescas proporções, sofre uma duplicação, ou uma alteração de qualidade, correlata à nova escala de concentração de capitais, característica do capital-imperialismo: passaram a incidir também sobre trabalhadores já de longa data urbanizados, revelando-se incontroláveis e perigosamente ameaçadoras da humanidade tal como a conhecemos. Estas expropriações, que estou denominando disponibilizações ou expropriações secundárias, não são, no sentido próprio, uma perda de propriedade de meios de produção (ou recursos sociais de produção), pois a grande maioria dos trabalhadores urbanos dela já não mais dispunha. Porém, a plena compreensão do processo contemporâneo mostra terem se convertido em nova – e fundamental – forma de exasperação da disponibilidade dos trabalhadores para o mercado, impondo novas condições e abrindo novos setores para a extração de mais-valor. Este último é o ponto dramático do processo. Os novos processos em parte se assemelham ao que ocorreu na Inglaterra entre os séculos XVI e XVII, com a "extinção de direitos comunais e consuetudinários" que, na época, envolveu uma completa redefinição do próprio significado da propriedade, que passaria doravante a ser exclusiva, consolidando o predomínio da propriedade caracteristicamente capitalista. Num primeiro momento (séc. XVI) o processo ocorreu através do cercamento violento, já no século XVIII, interviriam os "cercamentos parlamentares", com a extinção da propriedade camponesa sendo realizada através de decretos (WOOD, 2001: 91-2). Nas últimas décadas do século XX, o extenso desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas contou com declarado apoio parlamentar. De maneira surpreendente, uma verdadeira expropriação de direitos (que historicamente se configuravam como obstáculos politicamente implantados contra a total subserviência dos trabalhadores ao capital), se realizou mantidas as instituições 'democráticas', conservados os processos eleitorais e com a sustentação de uma intensa atuação midiática e parlamentar. Um extenso e duplo movimento de coerção e persuasão se pôs em marcha. A coerção foi realizada seja através de ameaças (de demissões, de deslocamentos de empresas, de eliminação de postos de trabalho em geral) seja de sua concretização (pela efetivação parcelar de tais ameaças ou pelo enfrentamento de resistências sindicais); a persuasão mobilizou intensa atuação da mídia proprietária, dos governos e de bem remuneradas camadas de intelectuais recém-convertidos à nova função de uma 'esquerda para o capital', produtores de maquiagens variadas para a monotonia do "não há alternativas" ou do "fim do trabalho". Direitos foram (e continuam sendo) extintos, resultando numa redisponibilização de massas enormes da população – inclusive dos países centrais – com vistas à sua conversão dócil em força de trabalho para qualquer tipo de atuação. Tratou-se de introduzir uma nova "normalidade": segmentar cada situação ou direito tornado alvo imediato (como aposentadoria, serviços públicos como saúde e educação, direitos ligados ao trabalho, ambiente, mulheres, racismo) e deter-se nela exaustivamente, por todos os meios midiáticos, sempre de forma singularizada. Com isso, abriam-se formalmente enormes debates "públicos" ao mesmo tempo em que se encapsulava cada questão, isolando-a das demais e do contexto geral, sobretudo da dinâmica processual no plano internacional. O plano internacional, aliás, era somente apresentado como "modelar", tanto para o melhor (o "bom" exemplo, a "boa" e única política) quanto para o pior (a tragédia, a catástrofe anunciada aos desobedientes ou ignorantes). Sobretudo, silenciavam-se as razões causadoras do conjunto de fenômenos, consideradas como ideológicas, e centravam-se na urgência, ou no "o que podemos fazer imediatamente"? Cada questão isolada era sempre apontada como a mais urgente e rapidamente reconvertida em cálculos e planilhas de custos, reproduzindo no âmbito público o cálculo capitalista, desconsiderado o contexto abrangente no qual se tornava compreensível. Já assinalei algumas características dessas novas expropriações em outros trabalhos, enfatizando como a própria generalização do comando do capital sobre o conjunto da vida social (a subsunção real do trabalho sob o capital) o impelia a destruir toda e qualquer barreira interposta à sua urgência de reprodução ampliada. Assinalei, então, a importância da expropriação contratual, ou a tendência à exploração da força de trabalho desprovida de vínculos geradores de direitos, como o trabalho por venda de projetos, a constituição de empregadores de si mesmo, como as "pessoas jurídicas" singulares; a quebra da resistência tradicional dos trabalhadores ligada historicamente à sua unificação em grandes espaços pelas operações de desterritorialização; as flexibilizações de contrato, precarizações e assemelhados, todas elas agindo no sentido da expropriação da nova capacidade cooperativa dos trabalhadores através de segmentações implementadas por novas tecnologias de controle hierárquico distanciado, etc. (FONTES, 2005, p. 96- 106). Tais expropriações incidem também sobre matérias-primas estratégicas. Anteriormente, o controle direto dos Estados capital-imperialistas ocorria sob a forma da colonização, ou do controle político e militar direto; na atualidade, ocorrem sob variadas formas, como a do endividamento público. Mantém-se não obstante a recorrência do controle militar, desvinculado, entretanto, dos elos políticos que configuravam a colonização. No Iraque, expropriou-se uma nação inteira de suas fontes de petróleo; na Palestina, está em curso gigantesca operação de expropriação das águas, da terra e das próprias camadas férteis do solo. As expropriações contemporâneas tornaram-se extremamente agressivas e, revelam-se potencialmente ilimitadas, ainda que colocando em risco a existência humana. Evidenciam que a dinâmica capital-imperialista impõe converter características humanas, sociais ou elementos diversos da natureza em formas externalizadas à existência humana, erigindo-as em barreira ao capital de maneira a elaborar um discurso da urgência, moldar argumentos de persuasão e, finalmente, consolidar apetrechos coercitivos para destruir/expropriar tais características, apropriando-se de tais elementos, seja para monopolizá-los, seja para produzir novas atividades capazes de produzir valor, resultando numa mercantilização inimaginável de todas as formas da vida social e humana. Os créditos-carbono são um dos dramáticos exemplos. O fenômeno é mais amplo e vem ocorrendo com as águas, doces ou salgadas, e com a biodiversidade. O fato, porém, de cindir, de externalizar tais características, não significa de forma alguma que tais elementos expropriados não sejam plenamente integrantes das condições sóciohumanas da existência (internos, pois). Agudizam apenas a evidência de que sua expropriação resulta de uma necessidade interna da dinâmica expansiva e destrutiva capital-imperialista. As expropriações secundárias se abatem sobre conhecimentos socializados (como já ocorreu no século XIX, na introdução das grandes indústrias e no século XX, com o fordismo), sobre a biodiversidade, sobre técnicas diversas, desde formas de cultivo até formas de tratamento de saúde utilizadas por povos tradicionais. Somente de maneira muito cautelosa poderíamos supor que tais populações mantêm-se externas ao capitalismo, quando boa parte delas já depende – parcialmente, ao menos – de relações mercantis plenamente dominadas pelo grande capital-imperialismo. Não obstante, populações organizadas em escala internacional, por exemplo, na Via Campesina, lutam para conservar as condições sociais rurais de sobrevida (ainda que parciais), e opõem barreiras à plena relação social do capital, à produção massiva de seres sociais disponibilizados. Boa parte dos procedimentos de privatização de empresas públicas experimentados nas últimas décadas assemelha-se às expropriações primárias, pois incidiram sobre bens coletivos, similares às terras comunais; porém, ocorriam também em âmbitos internos, em sociedades nas quais já vigoravam plenamente relações capitalistas, diferindo das primeiras que até então avançavam sobre populações e sociedades não integralmente capitalistas. As expropriações sobre bens coletivos ocorreram como violência e como extinção de direitos, até então consolidados através de privatizações de instituições públicas, industriais ou destinadas a prover educação, saúde, previdência social, transporte, etc. Além de disponibilizarem ('libertarem' trabalhadores), permitem a conversão de tais atividades – até então improdutivas para o capital – em trabalho sob o comando do capital, portanto em produção de valor e de mais-valor. As expropriações contemporâneas não pararam por aí e devoraram também bens naturais sobre os quais até então não incidia propriedade exclusiva de tipo capitalista, como as águas doces e salgadas, o patrimônio histórico e cultural (convertido em mercadoria através do turismo), o patenteamento de códigos genéticos, a qualidade do ar. Uma modalidade impactante das expropriações internas é o amplo terreno científico tomado genericamente como o setor da saúde, que constitui na atualidade um dos mais importantes setores de investimentos mundiais. A área da saúde envolve, em muitas de suas práticas, a invenção de novos procedimentos de expropriação capazes de, eventualmente, permitir a expansão da extração de mais-valor ainda que pela destruição de relações humanas e de modificações na relação entre humanidade e a natureza biológica que podem levar à devastação da própria humanidade, como sustenta Mészáros. No terreno da saúde, é certamente difícil e doloroso imaginar tais expropriações, uma vez que procuramos pensar a vida humana na sua totalidade complexa, envolvendo suas mediações com a natureza e com os demais seres humanos na produção social de sua existência e de vidas dignas. No entanto, essas expropriações vêm ocorrendo de forma massiva, apresentando-se como pura "natureza", através, por exemplo, da expropriação do próprio corpo como fenômeno de novo tipo. Estou assinalando algo diferente das formas de sua mercantilização que já conhecemos, como a prostituição, a venda de pessoas ou a venda de órgãos, as quais lastreiam-se na suposição de cunho liberal, de uma "propriedade do corpo", argumento forjado na aurora do capitalismo. Edgardo Lander designou o fenômeno como "ciência neoliberal" (2006), outros o denominam "biocapitalismo"; ambos os termos são porém insuficientes, pois os próprios elementos constituintes da vida biológica, inclusive a humana, são expropriados, passando a constituir propriedade privada monopolizada [5] . Apresentá-lo apenas como mercantilização (que também envolve) oculta o processo social de expropriação que o constitui. Menos do que enfrentar os grandes problemas de saúde coletiva e pública, derivados inclusive da lógica social imposta pelo capital, tais expropriações seguem a linha já predominante da produção de "remédios-mercadorias" para doenças e/ou sofrimentos forjados pela dinâmica da vida social imposta pelo capital, enveredando ainda mais decididamente na hierarquização do acesso a produtos e técnicas destinados aos segmentos sociais potencialmente capazes de consumi-los, como cosméticos, medicamentos para deter o envelhecimento ou para doenças que acometem mais frequentemente setores abastados da população. Porém, o precedente envolve elementos muitos mais dramáticos do que simplesmente o lucro e a desigualdade: o controle privado das condições da existência biológica, expropriadas da população, pode reverter na própria produção de novas e trágicas enfermidades ou necessidades de "saúde", derivadas do imperativo do lucro ao qual estão submetidos tais controladores de patentes. Talvez a mais dramática de todas essas expropriações, já em pleno curso internacional, seja aquela representada pelo organismos geneticamente modificados (OGM) ou os transgênicos. Aqui se torna mais amplamente visível que as expropriações secundárias não podem ser reduzidas a mera mercantilização e, nem mesmo confundidas com a apropriação privada que também envolvem. Estamos assistindo à conversão de necessidade social e humana em monopólio do capital-imperialismo, em escala planetária. A reprodução das espécies faz parte do imenso estoque de bens naturais com os quais se relacionou historicamente a humanidade, desde seus primórdios, para prover sua subsistência, em especial daquelas sementes que constituem a base da alimentação de toda a humanidade, como o trigo, milho e arroz. A produção de tais gêneros sob condições de propriedade privada das terras – e das colheitas - não se inicia com o capital-imperialismo, tampouco a mercantilização de sementes melhoradas ou modificadas através de procedimentos e técnicas diversas. Sob o capital-imperialismo está em jogo a expropriação da humanidade da capacidade de reprodução natural de tais sementes, uma vez que enormes plantações transgênicas, cujas sementes colonizam as demais, vêm sendo impulsionadas em todos os quadrantes do planeta. Sementes transgênicas não se reproduzem depois de certo tempo, precisando ser recompradas e, caso continuem se expandindo, tendem a eliminar as sementes naturais expropriando, de um golpe, toda a humanidade da capacidade de produzir naturalmente alimentos essenciais. Como foi possível que um fenômeno expropriativo de tal amplitude fosse ao mesmo tempo incorporado e velado para a compreensão das massas sociais? Um dos elementos de resposta reside na produção permanente do desfocamento dos grandes temas. Como exemplo, uma extrema redução (ou simplificação) das contradições entre e capital e trabalho em escala planetária, ocorreu a partir dos anos 1960, ao se difundirem procedimentos de quantificação da pobreza, ao mesmo tempo em que se naturalizavam suas precondições. A explicitação do número de pobres no planeta agiu para ocultar que não se tratava mais de uma pobreza de tipo tradicional, mas tipicamente resultante da expansão capitalista (PEREIRA, 2009: 136). Durante a gestão de McNamara no Banco Mundial (1968-1981), foi constituída uma política de extração estadunidense, rapidamente convertida em política internacional voltada para a pobreza, em especial a partir dos anos 1970. Tal política, aliás, direcionou-se em primeiro lugar à pobreza rural e impulsionou projetos de aumento do crescimento da produtividade rural, através de financiamentos destinados à camada superior dos pequenos agricultores. Como se pode imaginar, derivou da afinidade íntima do Banco Mundial com a Revolução Verde, cujo nome demonstra o intuito de barrar qualquer revolução vermelha, e que impulsionou a extensão em diversos pontos do planeta de uma agricultura capitalizada, fortemente mecanizada e dependente de pesticidas, promovendo um salto na escala de concentração de terras e, por extensão, nas expropriações primárias. A atuação internacional "contra a pobreza" destinava-se a, em curto prazo, incentivar as expropriações agrárias de posseiros, parceiros, meeiros e arrendatários. (Id.: 137 e segs.) e, em seguida, seria a base da implantação e generalização de transgênicos. Desconsiderar a magnitude das expropriações e sua correlação direta com a concentração de capitais tende a velar enorme ampliação de relações sociais capitalistas através do mundo, um dos elementos mais fundamentais da atualidade, e tornar-se impotente diante das gigantescas e complexas contradições que envolvem. O fato de tais disponibilizações de trabalhadores (expropriações) significarem imediatamente um aprofundamento das desigualdades entre os próprios trabalhadores expressa não apenas a insensibilidade diante da existência humana do processo de concentração da propriedade tout court, como ainda desvenda a intencionalidade de muitas dessas expropriações. A massa profundamente desigual de trabalhadores disponíveis urbanos assim constituída abriu formidável manancial de exploração da força de trabalho para capitais e capitalistas de porte variado, ao mesmo tempo em que grande parte dessa população anseia – compreensivelmente – pela integração ao mundo do trabalho regular. Entretanto, sua magnitude agudiza as tensões intercapital imperialistas e certamente impulsionará lutas sociais com escopos variadíssimos. Categorias como capitalismo tardio, especulação, parasitismo, horror econômico, incontrolabilidade ou senilidade expressam muitas de suas determinações, mas talvez não sejam suficientemente fortes para nos fazer compreender a extensão contemporânea da tragédia social dominada pelo capital-imperialismo que, tendencialmente devastando o conjunto da natureza, segue reinventando-a para novas devastações, ainda mais danosas, ao mesmo tempo que se volta resolutamente para a própria vida humana e social como espaços para sua expansão lucrativa. Sua destrutividade não apenas não impede o crescimento potencializado de suas exigências de acumulação, como ainda reforça a sua expansão. São transformações escalares da mesma dinâmica social – expansão do capital, extração de valor, socialização do processo de produção contraposta à mais extrema concentração da propriedade dos recursos sociais de produção – que, no próprio curso de seu evolver, introduzem modificações qualitativas. Imperialismo e capital-imperialismo Ao longo do século XX, o termo imperialismo foi utilizado de maneiras diversas, das quais destacaremos duas, e que alteraram em direções diferentes o conceito proposto por Lênin. Na primeira, o conceito foi expandido e levou à suposição de que o capitalismo sempre fora imperialista (DUMÉNIL e LÉVY, 2005, p. 4, dentre outros). Para esses autores, os primórdios da colonização mercantil já são considerados como imperialismo e este apenas mudaria de alcance e de formato, não mais se relacionando a um período no qual a ação das forças desatadas pela dinâmica capitalista alterou as condições de existência do próprio capitalismo. O alargamento temporal do conceito admite, ainda, que impérios e imperialismo se confundam, como descritores de um processo expansivo genérico, quer seja comercial, capitalista ou não, quer seja resultante de formas variadas de controle territorial ou militar. A dilatação esvazia de sentido próprio o conceito de imperialismo. Na segunda direção, o conceito de imperialismo foi muitas vezes empregado de maneira contraída, como quase sinônimo da expansão imperialista de um único país, os Estados Unidos. Esse uso, bastante corrente na América Latina, chegou a ponto de o termo imperialismo identificar unicamente as práticas e as políticas dos Estados Unidos. Excessivamente dilatado ou restritivamente reduzido, o conceito perde a agudeza de sua definição, como patamar de expansão do capitalismo, do qual foi um desdobramento. O imperialismo, na acepção leniniana, incorporou a anterior dominação econômica capitalista numa nova dinâmica mais concentrada, e abrangendo o mundo, superou e subordinou a forma concorrencial do capital. Não eliminava a concorrência, mas a deslocava sob o peso dos monopólios. Seu novo alcance nos âmbitos nacionais e na esfera internacional tenderia a estabelecer formas sociais similares nos demais países imperialistas, porém jamais idênticas, de dominação política, ideológica e até mesmo cultural. A transmutação do conceito de imperialismo – inclusive pela sua enorme popularização, mas também, em muitos casos, por sua deformação – foi paulatinamente deixando na sombra o fato de que a expansão do capitalismo, desde finais do século XIX, passou a ocorrer pela via do imperialismo, no sentido específico de uma extensão de extração de mais-valor interna e externa, estreitando os elos hierárquicos entre diferentes formações sociais, modificando-as e, simultaneamente, alterando-se o próprio teor dos países centrais. Os países chamados "retardatários", da primeira metade do século XX, como a Alemanha, Itália e o Japão, tornaram-se capitalistas através do predomínio da industrialização sobre as formas produtivas tradicionais, da forte imbricação entre indústrias, bancos e governos para sua realização, de um violento processo de expropriações, e do ingresso – sangrento – na disputa por territórios na expansão colonizadora. No período da vida de Lênin (1870-1924), mas também da vida de Trotsky (1879-1940), os países centrais submeteram o resto do mundo, de base predominantemente agrária, convertido numa extensa periferia, a intenso processo de colonização e de redução à condição semicolonial daqueles formalmente independentes. Os processos históricos subsequentes, que apresentaremos mais adiante, tornaram esse quadro mais complexo. O período que medeia do final da Segunda Guerra Mundial até a década de 1980 foi marcado por uma situação histórica única, na qual a divisão do mundo entre países pós-revolucionários e países capitalistas impôs modificações substantivas no ritmo, na extensão e na forma da expansão do imperialismo, e trouxe uma sobrecarga retórica e ideológica que dificulta a percepção real das transformações então em curso. Falar, pois, de capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, já impregnada de imperialismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a Guerra Fria. Ela exacerbou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente consorciandos. Derivada do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação interna do capital necessita e se complementa por sua expansão externa, não apenas de forma mercantil, ou através de exportações de bens ou de capitais, mas da produção local, impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção (terra), de direitos e de suas próprias condições de existência, ambiental e biológica. Por impor aceleradamente relações sociais fundamentais para a expansão do capital, favorece contraditoriamente o surgimento de burguesias e de novos Estados, ao mesmo tempo que reduz a diversidade de sua organização interna e os enclausura em múltiplas teias hierárquicas e desiguais. À extensão do espaço de movimentação do capital corresponde uma tentativa de bloquear essa historicidade expandida, pelo encapsulamento nacional das massas trabalhadoras, lança praticamente toda a humanidade na socialização do processo produtivo e/ou de circulação de mercadorias, somando às desigualdades precedentes novas modalidades. Mantém o formato representativo-eleitoral, mas reduz a democracia a um modelo censitário-autocrático, similar a assembleias de acionistas, compondo um padrão bifurcado de atuação política, altamente internacionalizado para o capital e fortemente fragmentado para o trabalho. Por diferentes vias, o período pós-segunda Guerra Mundial resultou numa gigantesca expansão do imperialismo, que, embora não exatamente idêntico à letra de Lênin, cabia plenamente no conceito por ele formulado. É sua própria expansão desordenada e desigual para países até então coloniais ou semicoloniais, assim como as formas específicas que precisou adotar a grande potência dominadora, os Estados Unidos, que nos impele a caracterizá-lo na atualidade como capital-imperialismo. Desde o início do século XX, o ingresso de países retardatários na ordem capitalista implicou e impôs uma dupla dominação, interna e externa. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o imperialismo iniciava sua conversão contraditória para capital-imperialismo, formato doravante obrigatório inclusive para os "novos" retardatários. É sempre bom que se lembre, aliás, que nenhum país jamais repetiu um percurso "original" para o capitalismo, seja o da expansão do capitalismo inglês, ou o processo da revolução francesa ou, ainda, o das revoluções passivas da primeira metade do século XX. A produção de relações sociais capitalistas em novos países, em seu âmbito interno e nas suas relações externas, mesmo quando pretendeu copiar os países anteriores, por três razões óbvias estaria impossibilitada de reproduzir as formas precedentes. Em primeiro lugar, porque a extensão de relações sociais capitalistas ocorre transmutando configurações de dominação e subordinação históricas em formações sociais específicas e que se reconfiguram ao longo do mesmo período, exatamente em função das transformações que o capitalismo impõe, mas que também experimenta. Como, ademais, não há o desenvolvimento de capitalismos em países isolados, uma vez que desde seus primórdios, capitalismo envolve transações internacionais e assimetrias econômicas, militares, sociais e políticas, a expansão capitalista implica, ao mesmo tempo, uma forma específica de inserção desigual e instável no plano internacional. Como já alertamos, a mera expansão subordinadora atingindo e afetando outras regiões e países não é idêntica a forjar nem imperialismo, nem capital-imperialismo. Em segundo lugar, as experiências pioneiras de fato figuraram ou foram impostas como "modelos" a serem aplicados, muitas vezes mecanicamente, em outros países. Tais iniciativas se defrontavam com situações sociais (formações econômico-sociais) de composições diversas e com resistências variadas tanto entre setores dominantes quanto entre os setores populares. Como a expansão do capital interconecta as diferentes regiões e países, as tensões nos elos mais frágeis passavam a repercutir também nos pólos centrais, agudizando suas próprias contradições e impondo ajustes, violentos ou tortuosos que, por seu turno, impactavam o conjunto da cadeia imperialista. Por esta razão, a adesão incondicional a modelos de conduta, adotados ou impostos, tinha de lidar com as lutas sociais que pontuaram os processos originais nos quais se espelhavam, colocando para as classes dominantes, locais e centrais, o desafio de aprofundar a acumulação de capital e evitar a todo custo a emergência de lutas similares. A contrarrevolução preventiva, como sugeriu Florestan Fernandes (1975: 289-366), se tornaria condição da acumulação burguesa dependente, num primeiro momento, e da ordem burguesa como um todo, no predomínio do capitalimperialismo. Insisto sobre a importância do capital-imperialismo, sublinhando que não se trata apenas de uma "política", mas de uma totalidade que somente pode existir em processo permanente de expansão, e que, tendo ultrapassado um determinado patamar de concentração, se converte em forma de extração de mais-valor dentro e fora de fronteiras nacionais. Inaugura-se um novo espaço para a historicidade, correspondente à socialização efetiva das forças produtivas e à circulação de capitais no plano internacional, ao mesmo tempo que se aperfeiçoam mecanismos para sua contração, com o enrijecimento da forma Estado e sua contenção das lutas populares. Essa contração estatal foi obrigada a incorporar uma contrapartida, a generalização de regimes políticos formalmente democráticos, o que representa uma conquista. Limitada porém ao interior das fronteiras estatais, exasperam-se suas contradições. O capital-imperialismo é devastador mas envolve na atualidade o conjunto da existência humana. Decerto, políticas diversas – militares, econômicas, sociais, voltadas para as relações internacionais, culturais, etc. são conscientemente formuladas para assegurá-lo, seja nas grandes empresas, seja no país preponderante, os Estados Unidos, seja ainda em outros países copartícipes do capital-imperialismo, em seu âmbito interno ou em seu impulso externo, seja finalmente em burguesias de demais países. No entanto, não se trata apenas da expressão de uma "vontade", mas de uma vontade que se ajusta a uma "necessidade" imperiosa do capital-imperialismo que, aliás, formula suas justificativas exatamente pela falta ou ausência de alternativas. Cresceu a complexidade das interações econômicas e sociais, ao mesmo tempo que as características políticas predominantes procuram reduzir e constranger a capacidade consciente de intervenção humana. Outras categorias procuraram dar conta das transformações ocorridas no último quartel do século XX: globalização, mundialização e neoliberalismo. Em graus diferentes tendiam a afastar-se dos conceitos clássicos que, menos do que problematizados, foram deixados à sombra. O termo globalização (e, logo depois, "nova ordem mundial", nele acoplado) foi amplamente utilizado para descrever de maneira supostamente neutra a crescente mobilidade e fluidez dos capitais, ainda potencializada após o término da Guerra Fria. Tornou-se um bordão repetido à exaustão, ora como miragem de um mundo de consumo sem conflitos, ora como terrível ameaça da competição internacional, impondo sucessivos "ajustes" e expropriações. Demonstrava-se, assim, claramente seu teor ideológico e laudatório com relação ao capitalismo, considerado como ápice insuperável, o "fim da História", procurando dissolver o conceito de imperialismo. A categoria de neoliberalismo também continha um teor fortemente descritivo, aplicandose a uma política, a uma ideologia e a práticas econômicas que reivindicavam abertamente o ultraliberalismo, porém com forte viés de denúncia. Tem como núcleo o contraste fundamental com o período anterior, considerado por muitos como "áureo" (keynesiano ou Estado de Bem-estar Social), o que reduz a percepção do conteúdo similarmente capitalista e imperialista que liga os dois períodos, assim como apaga a discrepância que predominara entre as condições de existência da população trabalhadora nativa dos países imperialistas e a dos demais. Já a categoria de mundialização do capital é mais elaborada. Procura dar conta do duplo fenômeno (globalização e neoliberalismo), com viés fortemente crítico, associando-a à expansão de um certo tipo de capitalismo (financeirizado), a um certo tipo de política e de ideologia (neoliberal) sem eliminar as características do imperialismo. François Chesnais (1996 e 2005), principal autor crítico a introduzir essa noção, justifica-o pela contraposição ao termo globalização, de origem anglo-saxônica, mantendo, porém, a amplitude mundial do fenômeno [6] . O termo, entretanto, retira a centralidade dos conceitos de capitalismo e de imperialismo, que cumprem ainda um papel central e, de certa maneira, deixa à sombra os procedimentos de intensificação da extração de valor, a partir da multiplicação de expropriações. O uso do termo capital-imperialismo pretende deixar claro que, tendo se modificado na virada do século XIX para o XX, o capitalismo passou a expandir-se sob a forma do imperialismo e, ao fazê-lo, agregou novas determinações. Seu prolongamento no tempo não significou seu congelamento. Bem ao contrário, sua expansão envolveu modificações substantivas na sua forma de atuação.
Capital-imperialismo
Em primeiro lugar, a consolidação do isolamento soviético após a II Guerra Mundial exigia firmar política e economicamente alianças entre competidores no plano internacional, situação razoavelmente original na história do capitalismo e que enfrentava resistências políticas tanto nos Estados Unidos (posto implicar novos e crescentes gastos, embora posteriormente tenham se convertido em enormes ganhos) quanto na Europa, por razões evidentemente diversas, pois alguns países pretendiam recuperar um protagonismo mais forte no cenário internacional. A aliança forjou-se entre forças heterogêneas, pois o peso do predomínio estadunidense se fez sentir imediatamente, desde as polêmicas entre Keynes e os representantes dos Estados Unidos nas primeiras formulações para a instauração das novas instituições no pós-guerra que começaram por volta de 1941, em plena guerra. O desequilíbrio em favor dos Estados Unidos seria ainda mais explícito ao final da guerra, com a deflagração do arsenal atômico em Hiroshima e Nagasaki. A liderança estadunidense, francamente consolidada sobre o plano militar, corroboraria uma organização internacional imperialista explicitamente direcionada para conter tanto iniciativas revolucionárias nos planos domésticos, quanto as fortes probabilidades de guerras interimperialistas, deslocando-as para terceiros países. Em segundo lugar, a bipolaridade exacerbada pela imposição da Guerra Fria expressava o efetivo temor da expansão comunista no Ocidente. Qualquer que fosse o teor real da existência social no bloco soviético, havia um contexto internacional completamente novo, no qual a possibilidade de processos revolucionários endógenos na própria Europa, especialmente França e Itália, não era a descartar. A preservação da expansão capitalista passava a exigir alguma acomodação entre capitais no plano internacional e uma certa pacificação com relação às populações dos países centrais, asseguradas, num primeiro momento, através da crescente aproximação entre as economias europeias e estadunidenses. A manutenção da institucionalidade eleitoral era a pedra de toque na distinção entre "democracia ocidental" e o mundo soviético. Decorridos apenas vinte anos, já se verificava uma retração significativa da participação popular no processo eleitoral e o esvaziamento do potencial igualitário das democracias, como cínica e precocemente descrito por Schumpeter, em livro de 1942 (1961: 327-344). Essa retração popular foi defendida posteriormente por Lipset como benéfica, pois reservava as decisões relevantes às elites informadas (LIPSET, 1966), porém fortemente criticada por Macpherson (1978, passim ). A social democracia, na Europa, permaneceu como importante força mediadora entre as pressões populares (e a dos partidos radicais e comunistas) e sua contenção institucional pelo liberalismo, posição assegurada por sua dupla inserção, sindical e política. Esse papel mediador seria disputado por outras forças, como a democracia cristã, ou por composições híbridas, que agregavam forte componente de pragmatismo. Em rápido sobrevoo, pode-se dizer que a resultante em médio prazo das intensas lutas sociais nos países europeus foi um disciplinamento fortemente institucionalizado das grandes massas nativas, amparado por significativa ampliação de direitos, sobretudo sociais. Em terceiro lugar, a permanência e extensão da exploração imperialista em direção a outros países não constantes do bloco central também mudava gradualmente de características. Generalizaram-se as lutas pela descolonização, mas a exportação de capitais através da crescente atividade produtiva interna e externa das multinacionais seguia como condição de um peculiar equilíbrio, interno e externo. Internamente aos países centrais, aprofundava-se a intensificação da exploração dos trabalhadores em seus espaços nacionais através de fortes saltos de produtividade, mas sua situação social assemelhava-se a uma bolha de bem-estar diante da condição da esmagadora maioria dos trabalhadores dos demais países. Externamente, gerava simultaneamente a rejeição anti-imperialista e a expectativa de desenvolvimento econômico e social similar ao dos países centrais e, em especial, dos EUA. A aceitação das diferenças nacionais entre trabalhadores, incorporada como 'natural' à expansão do capital no plano internacional foi um dos efeitos dramáticos do acerto intercapitalista então arquitetado. A reconfiguração internacional resultante dessa expansão assimétrica e instável tornou ainda mais tenso e delicado o equilíbrio de forças para os blocos dominantes sob a Guerra Fria. Como resultante, ocorreria peculiar truncamento da internacionalização em curso, através do encapsulamento das lutas de classes no interior de cada país . As lutas sociais foram mais ou menos mantidas nos espaços nacionais – mesmo quando ocorriam com bastante vigor – contrastando com o âmbito de reprodução do capital, que tendia a expandir-se em cenário crescentemente internacional, ainda que limitado ao âmbito de cada "esfera de influência" produzida pela Guerra Fria. Evidentemente, não se trata de uma fórmula estreita e rígida e vale lembrar as tentativas de extrapolar tais limites, em especial no caso da América Latina, a partir de Cuba, da ação de Che Guevara e do apoio a diversos movimentos revolucionários.
O capital-imperialismo e a generalização de novas formas políticas
Após 1945, e continuando até hoje, uma infinidade de entidades internacionais foi criada, sendo as pré-existentes redesenhadas sob crescente influência estadunidense, adensando internacionalmente modalidades originais de organização intercapitalista voltadas para a garantia da expansão da extração de mais-valor em escala crescentemente internacional, mas também para assegurar as condições socioeconômicas, políticas e culturais nacionais sob as quais tal extração teria lugar. Tratava-se de conter ativamente conflitos internos e contradições muitas vezes agudas através de procedimentos pragmáticos para a acumulação do capital e hiperideologizados, remetendo ao contexto internacional da Guerra Fria. Tais instituições, embora sob a égide estadunidense, agregavam um espectro mais amplo de países capital-imperialistas. O novo modus operandi reproduzia no próprio interior das agências internacionais uma dinâmica similar às "democracias de acionistas" ou censitária, com uma organização de tipo bancária ou creditícia, sendo os casos mais emblemáticos o Fundo Monetário Internacional –(FMI) e o complexo de entidades do Grupo Banco Mundial (GBM). Em recente e bem fundamentada pesquisa, na qual nos apoiaremos bastante a seguir, Pereira (2009) demonstra o forte predomínio estadunidense no GBM, inclusive apresentando as disputas internas nos Estados Unidos sobre estratégias a adotar. Não obstante, vale observar que a construção de instituições internacionais francamente dominadas pela potência estadunidense não significaram uma dominação unilateral imediata, gerando o que para muitos constituiu uma "tríade" composta pelos Estados Unidos , Europa e Japão. Essa consolidação de novas formas econômicas e de políticas organizativas gestadas no bojo do imperialismo precedente, mas entrelaçando desigualmente países e capitais, integra o que estamos denominando capitalimperialismo. Mudava a escala: a abrangência das atividades de tais capitais se ramificava, espalhando-se mundialmente; as dimensões da concentração e da centralização (sempre com base no pequeno grupo de países imperialistas que detinham as ações decisivas nas empresas e nas instâncias políticas internacionais) atingiram patamares inusitados. A propriedade de tais conglomerados extrapolava a união íntima entre capitalistas e banqueiros, tornava-se cada vez mais fusional e abstrata, incorporando doravante não apenas bancos e indústrias, mas qualquer forma de capital, como os grandes circuitos de distribuição. Trata-se da formação internacional de massas crescentes de capital portador de juros, ou de capital que, resultando da exploração de mais-valor, a ela precisa retornar, porém sob modalidades que em muito excedem suas bases de exploração prévia, dada a massa impressionante de valor a valorizar. Impulsionava-se uma necessidade sem precedentes de abertura de fronteiras para o capital, de modo a expandir suas condições de reprodução ampliada. Entenda-se aqui, por fronteiras, não apenas as pressões políticas para a abertura de mercados, mas a pressão exercida em diversas direções para apropriar-se de espaços geográficos e formas de existência sociais até então escassamente submetidas à dinâmica da reprodução capitalista. O movimento dessa megaconcentração é triplo: tende a capturar todos os recursos disponíveis para convertê-los em capital; precisa promover a disponibilização de massas crescentes da população mundial, reduzidas a pura força de trabalho, e, enfim, transformar todas as atividades humanas em trabalho, isto é, em formas de produção/extração de valor. Do ponto de vista do trabalho, as multinacionais forjaram uma cooperação intensificada, mas alienada, entre trabalhadores submetidos a profundas desigualdades, com regimes contratuais e direitos trabalhistas díspares, com bases culturais e estruturas sociais variadas em seus contextos nacionais, em muitos casos desprovidos de direitos políticos. Essa experiência geraria múltiplos efeitos, como segregações no interior da mesma estrutura empresarial, com o privilegiamento dos trabalhadores dos países-sede em detrimento dos demais países, nacionalidades que, por seu turno, também não eram tratadas de maneira equivalente, reproduzindo-se formas desiguais e combinadas de subalternização no interior das estruturas organizativas. Para tais grupos multinacionais, tornava-se uma normalidade a exploração de trabalhadores para as mesmas tarefas, porém desprovidos dos direitos predominantes nos países-sede. A competição entre trabalhadores típica da exploração do capital ganhava novas tonalidades, racistas, sexistas e nacionalistas. No sentido contrário, descortinavam-se, para extensos setores de trabalhadores, as profundas desigualdades que separavam as diferentes origens nacionais, conduzindo a reivindicações de direitos até então exclusivamente reservados aos países imperialistas. Mas, sob a intensa propaganda internacional, tais exigências – em função também da teia organizativa das burguesias locais – eram apresentadas sob uma outra configuração, a de que seria necessário romper o "atraso", aprofundar a "modernização", de maneira a poder contar com "benefícios" idênticos. Dessa maneira, deslocava-se o problema real, o da produção crescente de desigualdades no plano internacional, das quais dependiam em parte os próprios direitos conquistados nos países imperialistas, para os trabalhadores dos demais países, definidos como despreparados, deseducados e ineficazes, econômica e politicamente. Ao lado da nova amplitude coligada do imperialismo, gestavam-se também formas organizativas, educativas e pedagógicas para os representantes do grande capital, para os quadros econômicos, políticos e ideológicos dos diferentes países, dominantes ou não. O Grupo Banco Mundial foi uma das mais importantes instituições modelares, mas não a única. Por ser uma instituição internacional de caráter pretensamente público, assumiu a liderança e, sobretudo, contou com máxima visibilidade. Inúmeras outras entidades e associações entre empresários e governos se organizaram, à sombra, permitindo escasso (ou nulo) acesso aos pesquisadores. A criação, em 1955, do Instituto de Desenvolvimento Econômico, rebatizado, em 2000, de Instituto do Banco Mundial – (IBM), integrando o GBM, com o apoio das fundações Rockefeller e Ford, tinha como intuito explícito a formação de quadros políticos e técnicos nos países predominantes e nos países alvo das intervenções do Banco, para a elaboração e a execução de políticas. Inúmeros cursos foram oferecidos para participantes de governos que recebiam financiamentos do BM e "muitos ex-alunos ocuparam [posteriormente] os cargos de primeiro-ministro, ministro da fazenda e do planejamento" de seus países (PEREIRA, 2009: 32). Este formato associativo desigual, mas formalmente democrático no plano internacional contribuiu para intenso desenvolvimento das forças produtivas com relativa pacificação entre as potências imperialistas ocidentais. Intensificava-se a produtividade, em parte devedora do crescimento do complexo industrial-militar e da permanência de alta belicidade contra terceiros países e assegurava-se alta lucratividade, aprofundando a concentração de capitais e agudizando a urgência de novos âmbitos – espaciais e sociais – de reprodução ampliada. A extensão plena de direitos sociais permaneceu restrita aos grupos nativos (isto é, àqueles com direitos de cidadania) dos países centrais da chamada tríade – a pequena Europa [7] , Estados Unidos e Japão – não atingindo os imigrantes. Buscava-se contrapor a democracia pelos e para os países centrais ao socialismo, contanto que as opções nela contidas não colocassem em risco o equilíbrio geopolítico. Para este estudo, queremos ressaltar o quanto instituições deste tipo resultaram em formatos originais de organização econômica, política e ideológica. Não eliminavam conflitos internos, mas sua maior abrangência abriu modalidades de interconexão interimperialista até então desconhecidas. Para além dessas instituições oficiais e mais visíveis, como o GBM ou o FMI, o procedimento se estendeu à generalização internacionalizada de outras entidades, com múltiplas funções. Algumas delas, mesmo com aparência e formato jurídico privado, respondiam diretamente às agências estratégicas de seus países de origem (militares, policiais, de espionagem, ou econômicas), tendo como papel disseminar modos de agir e assegurar recursos (monetários, políticos e mesmo militares) para seus aliados tanto nos países capital-imperialistas, quanto em outros países. Porém, nem todas as entidades respondiam de maneira imediata às agências estatais de seus países de origem, abrindo uma segunda vertente, que lhes permitia maior flexibilidade na defesa de certos interesses específicos e uma atuação mais direta para a coordenação de atividades de caráter muito diversificado, cujo padrão internacional copiaria a atuação das fundações estadunidenses (DREIFUS, 1986). Gramsci já analisara o crescimento de aparelhos privados de hegemonia (sociedade civil) na Itália e insistira sobre sua estreita imbricação com o Estado. Já mencionara, inclusive, entidades como o Rotary Club ou o Lyons Club, de origem estadunidense, e elaborara brilhante texto sobre o americanismo, que envolvia para ele não apenas a generalização do fordismo no chão de fábrica, mas de um conjunto amplíssimo de práticas de persuasão, de autocontrole e de coerção, atingindo todas as dimensões da sociabilidade. A educação, ou a pedagogia, tanto em sentido escolar quanto, sobretudo, em seu sentido mais amplo – que abrange o Estado educador – assumia papel crucial, voltada a forjar homens adequados às formas de produção, de trabalho e de existência social reconfiguradas pela expansão do capital (GRAMSCI, 2000-2002, passim). Na concepção de Gramsci, sociedade civil é parte do Estado ampliado em que se desenvolvem formas peculiares da luta de classes. Ora, as entidades internacionais que passaram a se disseminar no pós-guerra conservavam suas raízes nos países de origem, porém desenvolveram, inclusive por necessidade da crescente abrangência econômica e da dinâmica que tal amplitude impunha, uma maior mobilidade espacial, implementando técnicas de autonomização local sem perder a unidade de ação no plano internacional para diferentes áreas nas quais tinham interesses. Introduziram uma nova complexidade organizativa e novas tensões intra e entre as classes sociais, mas não podem ser identificadas de maneira imediata a uma pretensa sociedade civil internacional. Se não constituíram uma "internacional capitalista", como provocativamente René Dreifuss designou a atuação das "elites orgânicas" do capitalismo transnacional, ocuparam certamente importantes espaços na luta de classes em âmbito internacional. Adaptando conceituação proposta por Dreifuss (1986), considero que tais entidades assumiram o caráter de frentes móveis de ação internacional do capital-imperialismo, adquirindo relativa autonomia de atuação, embora ancoradas em seus Estados de origem. Eram abertamente sustentadas por generosas doações empresariais (e, em alguns casos, também governamentais), mas sem vínculos diretos e, portanto, podiam expressar interesses comuns de setores diversificados. Agir enquanto entidades privadas não diretamente lucrativas, sem carregar o fardo das decisões governamentais de seus próprios países, permitia a difusão cosmopolita de certos interesses, de certas formas de agir e certas maneiras de pensar muito mais ampla e extensa do que se estivessem atadas aos acordos políticos internacionais ou às legislações nacionais que incidiam sobre atividades diretamente econômicas, vigentes para a instalação de empresas. Assim, fundações e entidades diversas, precariamente nomeadas de "não governamentais" (ONGs), envolviam think tanks, agências internacionais sob patrocínio mas não sob direção direta dos governos dos países capitalimperialistas, como as Fundações estadunidenses, por exemplo, ou associações internacionais recobrindo o interesse específico de setores do grande patronato internacional, tal como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). O americanismo assinalado por Gramsci ganhava uma dimensão muito mais vasta e complexa, de caráter cosmopolita e, embora predominassem entidades de origem estadunidense, não se limitava unicamente a ela. Fomentavam entidades similares em terceiros países, atuavam como formadoras para entidades patronais locais, ainda que algumas vezes também experimentando tensões e contradições com as organizações burguesas locais e com governos de países dependentes. Essas entidades correspondiam à expansão da socialização da produção, quer se destinassem a outros países capital-imperialistas, quer se dirigissem a terceiros países, não porque fossem imediatamente defensoras de empresas específicas, mas porque forneciam os elementos pragmáticos, técnicos, gerenciais, culturais e programáticos de mediação para a atuação e expansão do capital-imperialismo, assim como eram mais ágeis e capazes de difundir padrões de atuação burguesa, padrões de consumo, padrões de sociabilidade, além de forjar novas associações interburguesas (incorporando elementos das classes dominantes dos países nos quais passavam a agir) correspondentes aos interesses que as empresas mantenedoras demandavam. E o faziam, seja do ponto de vista diretamente interessado, seja de um ponto de vista culturalmente e ideologicamente mais amplo, configurando estratégias associativas compostas formalmente por entidades similares, portadoras, porém, de recursos e de condições profundamente desiguais. Paralelamente às empresas multinacionais e às instituições internacionais oficiais, disseminava-se um padrão organizativo de cunho altamente pragmático e pautado por uma lógica ficticiamente democrática, copiada do padrão acionário, estruturada em torno da participação regulamentada pelos maiores doadores (financiadores da entidade), mas assegurando certa possibilidade de participação e ascensão em seu interior dos "acionistas minoritários". Muito variadas, tais entidades promoviam novas carreiras cosmopolitas, promovendo os que demonstravam uma plena adaptação à sua finalidade: formar e disseminar militantes-ideólogos. Ademais, atuavam como centros internacionais de formação intelectual para uma crescente variedade de quadros necessários para a atuação econômica que, doravante, abrangia áreas muito mais extensas do que os padrões nacionais, envolvia culturas diferentes, ritmos diferenciados, que deveriam ser modificados ou integrados, configurando um aprendizado in situ de novo tipo, moldando comportamentos, ajustando-os aos padrões dominantes ou incorporando elementos originais, locais, de maneira seletiva. O uso equivocado do conceito de sociedade civil para tais entidades repousa inteiramente em lastro liberal, por enfatizar um suposto isolamento entre tais associações e o Estado [8] . Dreifuss analisou algumas entidades estadunidense desde inícios do século XX, dando especial atenção às pioneiras, como os Round Table Groups e o Council on Foreign Relations. Demonstra como em entidades deste tipo, que ele apresenta como elos de uma "internacional capitalista", se organiza uma estreita articulação entre os núcleos formuladores (que denominou "elites orgânicas" ou "córtex político"), as "unidades de ação", com indivíduos contratados, formados e equipados para a intervenção em diferentes países e as "centrais de ideias e de pesquisas", que agregam fundações formadoras, financiadoras para a formação em diversos países e think tanks. Apesar de formalmente estruturarem-se fora do aparelho de Estado, "sua atuação 'supera' a dos partidos, tanto na capacidade estratégico-política quanto na profundidade de suas ações. Poderíamos dizer: os partidos burgueses visam o governo; as elites orgânicas visam o Estado ." (DREIFUSS, 1986, p. 266, grifos do original). A formulação de Dreifuss é preciosa, e me permito expandi-la: a partir de certa escala de atuação, mais do que um Estado, tais entidades visam à conformação de Estados. Atuam no sentido de definir e disseminar mecanismos e regras comuns a seus interesses, ainda que aprofundando a dependência e a desigualdade entre Estados; mediam e procuram converter a cifras calculáveis os conflitos burgueses interpares; treinam, educam e incorporam de maneira desigual setores burgueses de diferentes países e, finalmente, para neutralizar os setores populares e as lutas (muitas vezes similares) que emergem nos diferentes países, estabelecem protocolos de atuação, tanto para o convencimento quanto para a repressão, assim como estabeleceram procedimentos refinados para redirecionar tais reivindicações. O ano de 1968 expressou, de forma difusa, a emergência do descompasso entre a intensificação da internacionalização do capital, com seus efeitos sociais múltiplos, e o empenho em manter encapsuladas as lutas sociais em âmbito nacional ou mesmo subnacional. Irrompiam então reivindicações cujo escopo somente faria plenamente sentido num contexto internacional de lutas de classes de teor anticapitalista, pois não eram mais solúveis ou solucionáveis nos âmbitos nacionais. Mais além, o pós 1968 demonstraria que mesmo as lutas mais árduas e mobilizadoras, se isoladas e reduzidas ao nível infranacional ou nacional, poderiam ser convertidas em processos adaptativos, reforçando o cosmopolitismo [9] já em curso, chegando mesmo a denunciar o internacionalismo como nefasto. O aspecto revolucionário de 1968 reside menos no que efetivou concretamente em cada país e mais na exigência de internacionalização que vislumbrou, mesmo sem conseguir elaborar um novo formato popular, apto a associar diferentes dinâmicas nacionais, em face da internacionalização acelerada do capital. A resultante contrarrevolucionária residiu no reencapsulamento de enorme volume de reivindicações sociais claramente insolúveis – mas inelimináveis – em âmbitos cada vez mais estreitos, ao lado de sua expressão cosmopolita através de agências internacionais garantidoras da ordem O que permitiu bloquear esse aspecto revolucionário? Não há muita originalidade nesta resposta: a efetiva internacionalização dessas lutas foi contida pelo contexto da Guerra Fria. Apesar do consenso sobre a dimensão internacional dos movimentos sociais em 1968, poucos são os que tratam o tema a partir do ângulo da internacionalização do capital. É corriqueira a ênfase na internacionalização de novos modos de comportamento, algumas vezes expressando uma certa surpresa [10] . A meu juízo, 1968 expressaria ao mesmo tempo o ápice da disjunção promovida pela Guerra Fria e apontaria para sua caducidade, do ponto de vista do próprio capital. As entidades internacionais de trabalhadores – sindicais ou partidárias – estavam encapsuladas na dinâmica da Guerra Fria, o que simplificava a tomada de decisões (pois os lados estavam previamente demarcados), mas levava a desconsiderar as evidências que a extrapolavam. A Guerra Fria, apesar de referir-se ad nauseam a uma geopolítica planetária, obscurecia o pano de fundo internacionalizante que originava tais lutas. As questões emergentes apareciam como inoportunas, lidas pela ótica de interpretações rotinizadas. Apesar disso, organizações populares, associações e partidos políticos, mesmo embebidos nessa rotinização, levaram adiante lutas anti-imperialistas de forte caráter anticapitalista e tiveram papel relevante. No entanto, perdiam acuidade em função do atrelamento na defesa do bloco soviético e da desagregação que as divergências internas promoviam. Diferentes revoluções tensionaram os diques da Guerra Fria, como a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, a Revolução Cultural chinesa, a luta vietnamita, as independências africanas da década de 1970 e mobilizaram grande espectro de lutas no plano internacional. Não obstante seu enorme papel, reafirmavam o alinhamento internacional e tenderam a retroceder para cada âmbito nacional, sem a instauração correlata de formas de luta comuns bem mais amplas, capazes de fazer frente ao novo espectro de dominação/exploração tecido pelo capital-imperialismo. O salto na internacionalização do capital, característico do capital-imperialismo geraria descontentamentos populares sem canais organizados de expressão internacional. Esse é o caso de uma série de lutas dos anos 1960 e 1970, como as lutas por moradia (ou lutas urbanas), as revoltas contra hierarquias burocráticas (nas universidades e empresas), o antirracismo, o antissexismo, e o ambientalismo. Uma parcela das lutas populares urbanas foi segmentada à esquerda e à direita do conjunto das reivindicações que incidiam sobre a própria sociabilidade do capital e reduzida a dimensões infranacionais. Tornaram-se um ícone dos intelectuais reconvertidos nos anos 1970, que enfatizaram suas singularidades e cor local, porém contribuíram para congelá-las em sua suposta novidade, passando a compor um vasto mosaico de reivindicações tratadas de maneira pontual e localizada. As revoltas anti-hierárquicas tiveram, num primeiro momento, um destino similar, mas de forma peculiar: foram tratadas como "comportamento jovem" e, como tal, aceitas setorialmente como sinais dos tempos, admitindo-se novos vestuários, cores, cortes de cabelos, gostos musicais, formas de tratamento, etc. A entorse de valores morais predominantes (que continham forte teor de hipocrisia) tornou-se aceitável nos limites da valorização do capital, através da produção de inúmeras novas mercadorias para o mercado jovem internacional, inclusive culturais. O redirecionamento efetivo das lutas anti-hierárquicas foi bastante posterior e traumático, pelo viés do desmantelamento de direitos universais redefinidos como "resquícios burocráticos". Outras reivindicações extrapolavam de maneira imediata os âmbitos nacionais, como as lutas pacifistas, antinucleares e as ecologistas. Outras, ainda, tinham um perfil aparentemente difuso, como o antirracismo e o feminismo. Todas essas questões, mesmo considerando-se as especificidades de cada tipo de reivindicação, vinculavam-se diretamente à amplitude da internacionalização do capital em curso. Apenas um breve comentário sobre o encapsulamento das lutas antirracistas: a conquista, necessária e legítima, da igualdade jurídica para todas as origens étnicas em cada espaço nacional, além de escassos direitos compensatórios focalizados que serviriam de modelo para o estabelecimento de diques de contenção nacional para este tipo de luta, somente pode adquirir todo o seu sentido na luta contra a criação de inúmeros e multiformes racismos através da desqualificação regular de trabalhadores das mais diversas procedências. Deslocadas do terreno da exploração e, portanto, da igualdade no plano internacional, as lutas antirracistas enfrentam ainda hoje o risco de sua banalização, tantos são os grupos atingidos, tão diversas são suas formas, tão urgentes as intervenções pontuais, tão recorrentes suas manifestações. A concorrência internacional entre os trabalhadores se acirrou, perpetuando no século XXI os campos de refugiados, o acúmulo de imigrantes nas fronteiras, a morte banalizada (e supervisionada a distância) de trabalhadores em frágeis embarcações procurando escapar de múltiplas misérias, multiplicando-se os muros e o assassinato corriqueiro de imigrantes, como nos Estados Unidos. Dissemina-se um racismo multiforme e viscoso. Se a Guerra Fria foi o berço do nascedouro do capital-imperialismo, seu término a manifestação contundente das dimensões das suas novas condições e contradições. Oficialmente, o término é datado entre a derrubada do muro de Berlim, em finais de 1989 e a dissolução da União Soviética, em finais de 1991. No entanto, a pressão dos capitais concentrados para incorporar novos espaços para a sua valorização já vinha alterando seus contornos desde inícios da década de 1970. Vale lembrar o ingresso da China na ONU, em 1971, a visita de Nixon a Beijing em 1972 e o fim do embargo comercial, iniciando a longa e persistente abertura chinesa a capitais externos, intensificada, sobretudo a partir de 1978, além do ingresso espetacular da Pepsi-Cola na União Soviética em 1974. A pressão dos capitais acumulados tornara caduca a Guerra Fria, mantida, porém, na exasperação de um anticomunismo pragmático, de um lado da fronteira, e na escalada armamentista, em ambos os lados. Na década de 1970, as condições econômicas, políticas e culturais já exibiam os contornos críticos do capital-imperialismo. Economicamente, as corporações multinacionais ocupavam agora o mundo, impondo mais necessidades de valorização e capturando sempre mais recursos, refletindo-se numa megaconcentração que extrapolaria os limites das empresas e bancos (eurodólares, petrodólares, etc.). Essa nova escala fomentou a geração de proprietários descarnados, acionistas e outros. Politicamente, já estava dilatado internacionalmente o formato organizativo cosmopolita e encapsulador, que acoplava entidades econômicas, de ação direta e cultural, voltadas para a extensão da sociabilidade do capital. Culturalmente, estava em curso a enorme difusão mediatizada, propulsada pela generalização das televisões, que ecoava – sempre contraditoriamente – os redirecionamentos em curso. Ademais, estes contavam com um lastro intelectual fortemente fragmentário, resultante do desconcerto perante as formidáveis lutas da década de 1960 e de progressivo abandono de expectativas revolucionárias, em boa parte financiada pela malha mercantil-filantrópica em franca expansão. A gestão McNamara, no Banco Mundial, de 1968 a 1981, havia introduzido uma peça-chave, inaugurara a "pobretologia", com o fito de eliminar as análises totalizantes sobre as condições internacionais de produção da desigualdade e estimulando financeiramente estudos limitados a mensurá-la, capturando-a como alvo prioritário de atuação "coletiva" mercantil-filantrópica e de expansão do capitalimperialismo. As formidáveis contradições do capital-imperialismo vinham à tona, explicitando as disputas internas, através de sucessivos golpes, demonstrativos da exasperação do impulso expropriador avassalador do capital sob o predomínio monetário e do crescimento das tensões internas entre os países capital-imperialistas, impulso doravante voltado para fora e para dentro. Toda a formidável escalada da acumulação e da concentração de capitais decorrera da arquitetura elaborada em função da Guerra Fria, já ultrapassada na prática. Envolvera uma crescente interconexão dos processos de produção, reforçando os elos entre os países interimperialistas e entre eles e os demais, sempre assimétrica em favor dos Estados Unidos e jamais homogênea ou estável. As lideranças políticas e econômicas do país preponderante, os Estados Unidos, passaram a atuar em direções contraditórias, procurando assenhorear-se totalmente do processo e, ao mesmo tempo, aprofundar a integração desigual das forças produtivas, através da plena circulação internacional de capitais que, por seu turno, intensificavam as múltiplas expropriações. Um controle imperial absoluto, de tipo colonial, desfaria o papel decisivo dos diferentes Estados sobre suas respectivas forças de trabalho, trazendo para o interior dos Estados Unidos uma enormidade de conflitos mantidos a distância pelo agenciamento organizado ao longo dos anos precedentes e ameaçaria o próprio capitalimperialismo, pelos custos e tensões que imporiam aos estadunidenses; o aprofundamento da socialização do processo produtivo nos termos vigentes resultava na manutenção (e não eliminação) dos demais países capital-imperialistas, além de induzir brechas para irrupções de novos países industrializados, procurando agregar-se ao grupo capital-imperialista, trazendo novas fontes de instabilidade interburguesa. Fraturas e crises de diversas ordens se sucederam desde então no plano internacional, como a ruptura unilateral pelos Estados Unidos, em 1971, do acordo de conversibilidade firmado em Bretton Wood; o aumento generalizado das taxas de juros, estrangulando os países devedores na virada de 1973/1974, ocasião da chamada primeira crise do petróleo [11] ; o redirecionamento da economia realizado a partir da nomeação de Paul Volcker para a presidência do Federal Reserve, sob o governo Carter, em 1979, voltada para a contenção da inflação e liberação as taxas de juros (COSTA, 2008, p. 155), reforçando ainda mais o jugo sobre os devedores, o que estaria na base do Consenso de Washington, uma década depois. Também no interior dos Estados Unidos e dos demais países capital-imperialistas acirravam-se as lutas intercapitalistas e ocorriam verdadeiros golpes de força econômicos, empresariais e sociais que, acima de tudo, expressam a pressão por valorização do capital, cada vez mais indiferente a cada proprietário singular. Nicolas Guilhot, em pesquisa com forte cunho etnográfico, mostrou como Wall Street, o centro financeiro dos Estados Unidos, era dominado ainda na década de 1970 por estabelecimentos bancários que conservavam relações duradouras e estáveis com seus clientes, ligados por interesses e por uma forte "conivência social" (GUILHOT, 2004: 48). Nos estabelecimentos bancários mais tradicionais, clientes corporativos lá estavam há sete ou oito décadas; ser banqueiro era algo como herança de família. Segundo Guilhot, os proprietários e funcionários dos altos escalões dos bancos assemelhavam-se a integrantes de uma aristocracia, com uma expressiva homogeneidade social entre eles. Como um clube privado, seus membros eram recrutados no seio da grande burguesia, compartilhando modos de se expressar, vestir, apresentar-se e, até mesmo, vigorava uma normatização não escrita para as formas da competição entre eles, em parte reiteradas e aprendidas numa espécie de "distinção desportiva" que reservava aos banqueiros os esportes aristocráticos. Para Guilhot, esse velho mundo inicia seu declínio em 1970, bem antes portanto das desregulamentações, com o crescimento dos fundos de investimento. Em minha avaliação, o imperialismo dissolvia-se no capital-imperialismo que gerara e nutrira. A hipótese geral formulada por Guilhot concorda com o argumento que procuro esboçar quanto à lógica e à origem histórica do processo atual:
(...) a verdadeira força motriz da financeirização [está] na poupança dos anos de crescimento, que se acumula nos fundos de pensão, nos fundos comuns de investimento e em outros investidos institucionais [companhias de seguro], onde ela se transforma em capital e demanda liquidez e rendimento. Esse grau de concentração sem precedentes lhe permitirá rapidamente impor suas reivindicações pela via da força. (GUILHOT, 2004: 41).
O volume de capitais concentrado em poucas mãos via-se estorvado pelos próprios canais que permitiram seu crescimento. O capital-imperialismo a cada dia mais tentacular apoiava-se nas mesmas instituições criadas no pós-guerra e, ao integrar os setoreschave, decisivos, nas entidades internacionais, havia assegurado as duas teias: a diretamente proprietária, que entrelaçava crescentemente proprietários internacionais de grandes corporações multinacionais (através de participações de diversas ordens) e proprietários consorciados de capital monetário, através de múltiplas instituições, como bancos, fundos, seguradoras, etc, com fortes tendências à internacionalização e sustentados por instituições igualmente econômicas de âmbito internacional. A segunda teia foi tecida em torno das frentes móveis de ação internacional, estreitamente articulada à primeira e dela dependente, mas com razoável autonomia e capacidade de intervenção estatal muito além de seus Estados de origem. Isso significava que não apenas a configuração dos Estados fora modificada, mas também a própria forma da política. Os conglomerados em expansão – e sua lógica interna fortemente corporativa – tornavam-se lentos e pesados para as exigências da acumulação na nova escala. Tratava-se de assegurar o papel dos proprietários – ou seja, garantir a centralidade máxima da valorização do valor – sobre qualquer outra instância, inclusive a empresa. Assim como o imperialismo não eliminou a concorrência interimperialista, também o capital-imperialismo não eliminaria as grandes corporações, porém modificaria seu perfil, adequando-o ao de centros internamente competitivos de produção de valor, ou de valorização do capital. Os conglomerados, em seu formato anterior, poderiam configurar também um risco para o capital, dada a altíssima concentração de trabalhadores que promoviam. Em vários sentidos, as revoltas de 1968 e dos anos seguintes soaram o sinal de alerta. Em finais da década de 1970, com Thatcher na Inglaterra e Reagan (1981), nos Estados Unidos, o ataque aberto aos sindicatos mais combativos dos países centrais contava com a experiência da concorrência internacional imposta por essas empresas e frentes móveis aos trabalhadores. A experiência da exploração internacional e combinada do trabalho e a concentração faraônica de recursos mostravam que o capital-imperialismo poderia simplesmente abandonar meios de produção (fechar e abandonar fábricas), através das deslocalizações. Mais uma vez, o entrelaçamento entre capitais de origens distintas (industrial, serviços, comércio, bancos, fundos, etc.) se evidencia: as desregulamentações então implementadas favoreciam a circulação geral de capitais, para qualquer que fosse o seu destino, especulativo ou outros. Quase simultaneamente começa outro processo, que culminará nas décadas de 1980 e 1990, com a pulverização de várias empresas (abertura de capitais em bolsas de valores) e o seccionamento de alguns conglomerados em empresas concorrentes, sem perda do reforço da concentração da propriedade de capitais. Os mesmos proprietários poderiam desmembrar empresas, modificar seu perfil para agudizar e exacerbar a exploração do trabalho, sob qualquer formato e promovendo a máxima extração de valor, de sobretrabalho e, por fim, atuando também freneticamente na especulação. Evidenciava-se a propriedade fundamental, a propriedade do capital tout court, em seu ponto máximo de concentração, expressa pelo predomínio do capital monetário (portador de juros). Se a distância entre a propriedade e a atividade concreta revela-se doravante abissal, por outro lado proprietários "descarnados", aparentemente ausentes, e seus prepostos, tornam-se rigorosíssimos controladores da atividade central ao qual destinam "seus" capitais: valorizar-se sem levar em conta nenhuma outra consideração. Contrapõem-se crescentemente à totalidade da humanidade, a qual lançam em sucessivas crises. Todo o conjunto da vida social se torna subordinado agora não apenas à empresa – e os grandes conglomerados subsistem, em muitos casos ainda muito mais poderosos – mas à lucratividade. A imensa escala da concentração não resulta apenas na condensação da propriedade sob a forma da empresa, ou mesmo do conglomerado multinacional: transborda para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se sobre a própria genética humana. Ambos os exemplos envolvem gigantescas empresas, porém, ao lado delas, e à sua sombra (posto que com os recursos concentrados através de inúmeras formas creditícias) expande-se o médio, o pequeno e até mesmo o autoempresariamento; as jornadas de trabalho tornam-se ilimitadas, muitos trabalhadores recebem aparentemente por produção (na fórmula clássica de Marx, o trabalho por peças), mas desprovidas de direitos e apresentados como se não mais fossem trabalhadores; a oferta expandida de crédito impõe aos seus tomadores não apenas a tarefa de atuar como capitalistas funcionantes, mas também a de atuar como geradores de mais-valor em qualquer escala, da menor à mais extensa.
(...) a verdadeira força motriz da financeirização [está] na poupança dos anos de crescimento, que se acumula nos fundos de pensão, nos fundos comuns de investimento e em outros investidos institucionais [companhias de seguro], onde ela se transforma em capital e demanda liquidez e rendimento. Esse grau de concentração sem precedentes lhe permitirá rapidamente impor suas reivindicações pela via da força. (GUILHOT, 2004: 41).
O volume de capitais concentrado em poucas mãos via-se estorvado pelos próprios canais que permitiram seu crescimento. O capital-imperialismo a cada dia mais tentacular apoiava-se nas mesmas instituições criadas no pós-guerra e, ao integrar os setoreschave, decisivos, nas entidades internacionais, havia assegurado as duas teias: a diretamente proprietária, que entrelaçava crescentemente proprietários internacionais de grandes corporações multinacionais (através de participações de diversas ordens) e proprietários consorciados de capital monetário, através de múltiplas instituições, como bancos, fundos, seguradoras, etc, com fortes tendências à internacionalização e sustentados por instituições igualmente econômicas de âmbito internacional. A segunda teia foi tecida em torno das frentes móveis de ação internacional, estreitamente articulada à primeira e dela dependente, mas com razoável autonomia e capacidade de intervenção estatal muito além de seus Estados de origem. Isso significava que não apenas a configuração dos Estados fora modificada, mas também a própria forma da política. Os conglomerados em expansão – e sua lógica interna fortemente corporativa – tornavam-se lentos e pesados para as exigências da acumulação na nova escala. Tratava-se de assegurar o papel dos proprietários – ou seja, garantir a centralidade máxima da valorização do valor – sobre qualquer outra instância, inclusive a empresa. Assim como o imperialismo não eliminou a concorrência interimperialista, também o capital-imperialismo não eliminaria as grandes corporações, porém modificaria seu perfil, adequando-o ao de centros internamente competitivos de produção de valor, ou de valorização do capital. Os conglomerados, em seu formato anterior, poderiam configurar também um risco para o capital, dada a altíssima concentração de trabalhadores que promoviam. Em vários sentidos, as revoltas de 1968 e dos anos seguintes soaram o sinal de alerta. Em finais da década de 1970, com Thatcher na Inglaterra e Reagan (1981), nos Estados Unidos, o ataque aberto aos sindicatos mais combativos dos países centrais contava com a experiência da concorrência internacional imposta por essas empresas e frentes móveis aos trabalhadores. A experiência da exploração internacional e combinada do trabalho e a concentração faraônica de recursos mostravam que o capital-imperialismo poderia simplesmente abandonar meios de produção (fechar e abandonar fábricas), através das deslocalizações. Mais uma vez, o entrelaçamento entre capitais de origens distintas (industrial, serviços, comércio, bancos, fundos, etc.) se evidencia: as desregulamentações então implementadas favoreciam a circulação geral de capitais, para qualquer que fosse o seu destino, especulativo ou outros. Quase simultaneamente começa outro processo, que culminará nas décadas de 1980 e 1990, com a pulverização de várias empresas (abertura de capitais em bolsas de valores) e o seccionamento de alguns conglomerados em empresas concorrentes, sem perda do reforço da concentração da propriedade de capitais. Os mesmos proprietários poderiam desmembrar empresas, modificar seu perfil para agudizar e exacerbar a exploração do trabalho, sob qualquer formato e promovendo a máxima extração de valor, de sobretrabalho e, por fim, atuando também freneticamente na especulação. Evidenciava-se a propriedade fundamental, a propriedade do capital tout court, em seu ponto máximo de concentração, expressa pelo predomínio do capital monetário (portador de juros). Se a distância entre a propriedade e a atividade concreta revela-se doravante abissal, por outro lado proprietários "descarnados", aparentemente ausentes, e seus prepostos, tornam-se rigorosíssimos controladores da atividade central ao qual destinam "seus" capitais: valorizar-se sem levar em conta nenhuma outra consideração. Contrapõem-se crescentemente à totalidade da humanidade, a qual lançam em sucessivas crises. Todo o conjunto da vida social se torna subordinado agora não apenas à empresa – e os grandes conglomerados subsistem, em muitos casos ainda muito mais poderosos – mas à lucratividade. A imensa escala da concentração não resulta apenas na condensação da propriedade sob a forma da empresa, ou mesmo do conglomerado multinacional: transborda para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se sobre a própria genética humana. Ambos os exemplos envolvem gigantescas empresas, porém, ao lado delas, e à sua sombra (posto que com os recursos concentrados através de inúmeras formas creditícias) expande-se o médio, o pequeno e até mesmo o autoempresariamento; as jornadas de trabalho tornam-se ilimitadas, muitos trabalhadores recebem aparentemente por produção (na fórmula clássica de Marx, o trabalho por peças), mas desprovidas de direitos e apresentados como se não mais fossem trabalhadores; a oferta expandida de crédito impõe aos seus tomadores não apenas a tarefa de atuar como capitalistas funcionantes, mas também a de atuar como geradores de mais-valor em qualquer escala, da menor à mais extensa.
Referências:
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2) Chesnais, François (Org.) A finança mundializada. Raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. São Paulo, Boitempo, 2005.
3) Dreifuss, R. A internacional capitalista. Estratégias e táticas do empresariado transnacional, 1918-1986. Rio, Espaço e Tempo, 1986.
4) DUMÉNIL, Gérard e LÉVY, Dominique - El imperialismo en la era neoliberal – In: http://www.jourdan.ens.fr/levy/dle2005e.htm, acesso em 30/10/2008 e em 06/01/2010 – publicado em Andréa Galvão et al (orgs.) Marxismo e socialismo no século 21 . SP, Unicamp/IFHC, Xamã, 2005.
5) Fernandes, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de Interpretação Sociológica. Rio, Zahar, 1975.
6) Fontes, V. Reflexões Im-Pertinentes. Rio, Bom Texto, 2005.
7) Garcia, José Luiz. Biotecnologia e biocapitalismo global. Análise Social, Lisboa, vol. XLI(181), 2006, 981-1009. disponível em Scielo www.scielo.oces.mctes.pt/... , acesso em 30/6/09.
8) Gramsci. A. Cadernos do Cárcere, Rio, Civilização Brasileira. 6.vols., 2000-2002.
9) Guilhot, Nicolas. Financiers, philanthropes. Vocations éthiques et reproduction du capital à Wall Street depuis 1970. Paris, Raisons d'Agir, 2004.
10) Hobsbawn, E. J. Tempos Interessantes: uma Vida no Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
11) Klagsbrunn, V. H. Uma leitura crítica dos conceitos de mundialização do capital e de regime de acumulação com predominância financeira. Crítica Marxista. n. 27, 2008, SP, Unesp..
12) Lander, E. La ciencia neoliberal. In: Cecena, A. E. (Org.) Los desafíons de las emancipaciones en un contexto militarizado. B. Aires, Clacso. 2006.
13) LIPSET, Seymour Martin. A sociedade americana. Uma análise histórica e comparada. Rio, Zahar, 1966.
14) Marx, K. O Capital, 2a ed., São Paulo, Nova Cultural, 1985.
15) Mandel, E. La crise. Les faits, leur interprétation marxiste. Paris, Flammarion, 1985.
16) Mészáros, István. Para além do capital. Rumo a uma teoria da transição. Campinas/São Paulo, Unicamp/Boitempo, 2002.
17) ONU, Desa. World Urbanization Prospects: the 2009 revision . Disponível in: www.un.org/esa/population/
19) Rosdolsky, R. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio, EDUERJ/Contraponto, 2001
20) Schumpeter, J. A. - Capitalismo, socialismo e democracia. Rio, Fundo de Cultura, 1961.
21) Wood, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo. Rio, Jorge Zahar, 2001.
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4) DUMÉNIL, Gérard e LÉVY, Dominique - El imperialismo en la era neoliberal – In: http://www.jourdan.ens.fr/levy/dle2005e.htm, acesso em 30/10/2008 e em 06/01/2010 – publicado em Andréa Galvão et al (orgs.) Marxismo e socialismo no século 21 . SP, Unicamp/IFHC, Xamã, 2005.
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21) Wood, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo. Rio, Jorge Zahar, 2001.
1. Em criterioso trabalho de tradução de obra de Marx, Mario Duayer assinala que a tradução apropriada para mehrwert seria mais-valor, e não a difundida expressão mais-valia, provavelmente derivada da primeira tradução francesa d' O Capital, feita por J. Roy.
2. Ver, no citado L. III, os capítulos 25. Crédito e capital fictício e, especialmente, o capítulo 27, O papel do crédito na produção capitalista (MARX, 1985).
3. Marx critica explicitamente a noção idílica de que ocorrera uma acumulação "primitiva", que legitimaria a concentração da riqueza social em algumas mãos. Ele demonstra, ao contrário, que o processo expropriador é condição de existência do capital (MARX, 1985: L. I, cap. 24). O tema das expropriações e da base social do capital (a produção do trabalhador livre) atravessa todo O Capital e justifica a consigna "expropriar os expropriadores".
4. Este ponto é um dos mais dramáticos da atualidade, dada a intensificação, nas últimas décadas, das expropriações de enormes contingentes populacionais, em especial na Ásia, na América Latina e na África, que foram analisadas como produção de populações "excedentes"ou "sobrantes" e sem sentido, gerando um reforço de argumentos de cunho humanitário e filantrópico. Ainda mais inquietante é o fato de que o ritmo de expropriações não parece amainar, mas, ao contrário, intensificar-se.
5. "O primeiro animal patenteado foi a ostra Allen, cuja alteração cromossómica lhe conferia uma maior dimensão e um sabor mais intenso. No âmbito dos seres vivos, em 1988, o US Patent and Trademarrk Office (USPTO) admitiu o primeiro registro da patente de um mamífero, um rato transgênico – o chamado rato Harvard – dotado de um gene humano passível de desenvolver um câncer. Este caso, que foi precedido de quatro anos de polêmica muito alargada, acabou por ser também aceite pela Agência Européia de Patentes. Trilhado o caminho da apropriação privada da vida biológica, esta estendeu-se em pouco tempo à biologia humana. Em 1998, cerca de 8000 patentes sobre genes humanos, técnicas e métodos relativos ao seu isolamento e manipulação tinham sido concedidas pelo USPTO. Em outubro de 2000, tinham sido entregues 160.000 pedidos de patentes relativos a sequências de ADN por firmas sediadas nos EUA, na Europa ocidental e no Japão, sendo que 70% partiram de um grupo de apenas 10 empresas e só a francesa Genset concorria a 36.000 patentes. Em 2001, tornou-se possível a concessão de patentes relativas a células estaminais humanas e a embriões de mamíferos desenvolvidos em laboratórios, sem recurso a esperma, que poderiam ser utilizados, por exemplo, para a clonagem de animais." (GARCIA, 2006: 985, grifos meus)
6. Klagsbrunn (2008: 28-9) critica o uso da expressão "mundialização financeira" por Chesnais, por diluir as determinações da esfera da produção na financeirização. Vale acrescentar que a produção se refere a um modo de existência, e não apenas ao processo imediato de produção econômica. Um debate sobre o histórico dessas categorias, seu alcance, importância e dificuldades, ainda que necessário, extrapola o objetivo deste capítulo.
7. Do grupo de países de alcance e porte desiguais, que originalmente integrou a Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OECE), estabelecida pelos Estados Unidos como base para o Plano Marshall e desigualmente aquinhoados com tais recursos: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Itália, Noruega, Portugal, Suíça, Suécia, Espanha e Turquia resultaria um ainda menor número, ou pequena Europa, que viria a formatar a atual União Europeia: Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. A Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido passaram a integrar a União Europeia em 1973.
8. Suposições como um Terceiro Setor, imune ao mercado e aos governos; ou de uma esfera privada, mas pública, expressam a impotência para pensar teoricamente a totalidade. Realizam um esquartejamento analítico apressado de algumas evidências imediatas e, na maioria dos casos, apenas traduzem o óbvio interesse de apresentar-se como instâncias incontaminadas e constituídas de pura "boa vontade".
9. Gramsci emprega a expressão cosmopolitismo em diversos contextos. Diferentemente do internacionalismo, o cosmopolitismo derivaria do papel de centralização medieval desempenhado pela Igreja. Em seguida, adotaria um perfil idealizado, adotado por elites dominantes internamente, porém incapazes de forjar um espírito nacionalpopular, este sim efetivamente internacionalista. (GRAMSCI, CC, v. 2, 2001: 80).
10. Há interessante relato de Hobsbawn (2002), em que o autor revela o inesperado das distâncias culturais entre as gerações.
11. Mandel alertava que, entre 1974 e 1975, ocorreu a primeira crise generalizada da economia capitalista internacional no pós-segunda Guerra Mundial, com uma "recessão que atingiu simultaneamente todas as grandes potências imperialistas" (1985: 9).
[*] Professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-Fiocruz; da Pós-Graduação em História da UFF e da Escola Nacional Florestan Fernandes-MST. Pesquisadora do CNPq, com cujo apoio vem realizando a pesquisa da qual deriva este artigo. Comunicação apresentada em Serpa no III Encontro Civilização ou Barbárie.
O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=1805
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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