16/12/2010

Declínio e queda do império americano: Quatro cenários para o fim do século americano em 2025

por Alfred W. McCoy [*]
Uma aterragem suave para a América daqui a 40 anos? É melhor não apostar. O desaparecimento dos Estados Unidos, enquanto superpotência global, pode chegar muito mais depressa do que se imagina. Se Washington está convencido que o fim do Século Americano será lá para 2040 ou 2050, uma avaliação mais realista das tendências internas e globais sugere que em 2025, apenas daqui a 15 anos, pode estar tudo acabado excepto a gritaria. Apesar da aura de omnipotência que a maior parte dos impérios projecta, uma olhadela para a sua história devia lembrar-nos que eles são organismos frágeis. A sua ecologia de poder é tão frágil que, quando as coisas começam a correr mesmo mal, os impérios normalmente esboroam-se com uma rapidez impiedosa: um ano apenas para Portugal, dois anos para a União Soviética, oito anos para a França, 11 anos para os otomanos, 17 anos para a Grã-Bretanha e, com toda a probabilidade, 22 anos para os Estados Unidos, a contar do ano crucial de 2003. Os futuros historiadores identificarão provavelmente a imprudente invasão do Iraque da administração Bush nesse ano como o início da queda da América. Mas, ao contrário do banho de sangue que marcou o fim de tantos impérios do passado, com cidades a arder e massacres de civis, este colapso imperial do século vinte e um pode ocorrer de modo relativamente calmo através dos rebentos invisíveis do colapso económico ou da guerra cibernética. Mas não tenham dúvidas: quando finalmente acabar o domínio global de Washington, todos os dias haverá recordações dolorosas do que tal perda de poder significa para os americanos qualquer que seja o seu estilo de vida. Como meia dúzia de países europeus descobriram, o declínio imperialista tende a ter um impacto bastante desmoralizante numa sociedade, impondo pelo menos uma geração de privações económicas. À medida que a economia arrefece, a temperatura política sobe, estimulando frequentemente uma grave turbulência interna. Os dados económicos, educativos e militares indicam que, no que se refere ao poder global dos EUA, as tendências negativas convergirão rapidamente em 2020 e provavelmente atingirão uma massa crítica por volta de 2030. O Século Americano, tão triunfalmente proclamado no início da II Guerra Mundial, estará esfarrapado e moribundo em 2025, na sua oitava década, e pode pertencer ao passado em 2030. Significativamente, em 2008, o National Intelligence Council dos EUA reconheceu pela primeira vez que o poder global da América estava de facto numa trajectória de declínio. Num dos seus relatórios futuristas periódicos, Global Trends 2025, o Conselho citava "a transferência da riqueza e do poder económico globais actualmente em curso, grosso modo do ocidente para o oriente" e "sem precedentes na história moderna", como o principal factor no declínio da "força relativa dos Estados Unidos – mesmo na área militar". Mas, tal como muita gente em Washington, os analistas do Conselho previam uma aterragem muito prolongada e muito suave para o predomínio americano global e albergavam a esperança de que, de certa forma, os EUA iriam "manter competências militares únicas… para projectar globalmente o poder militar" durante as próximas décadas. Não vão ter essa sorte. Segundo as actuais projecções, os Estados Unidos vão encontrar-se em segundo lugar, atrás da China (já a segunda maior economia do mundo) em produtividade económica por volta de 2026, e atrás da Índia em 2050. Do mesmo modo, a inovação chinesa está numa trajectória para a liderança mundial em ciências aplicadas e em tecnologia militar algures entre 2020 e 2030, na altura em que o actual suprimento de brilhantes cientistas e engenheiros da América se reformarem, sem uma substituição adequada por uma geração mais nova com deficiente instrução. Em 2020, segundo os planos actuais, o Pentágono jogará uma última cartada para um império moribundo. Lançará uma tripla cobertura letal de modernas armas aeroespaciais robóticas como a última esperança de Washington para manter o poder global apesar da redução da sua influência económica. Mas nesse ano, a rede global chinesa de satélites de comunicações, apoiada pelos super-computadores mais poderosos do mundo, também estará plenamente operacional, fornecendo a Beijing uma plataforma independente para o armamento do espaço e um poderoso sistema de comunicações para ataques de mísseis ou cibernéticos em todos os quadrantes do globo. Embrulhada numa arrogância imperial, tal como Whitehall ou o Quai d'Orsay antes dela, a Casa Branca parece imaginar ainda que o declínio americano será gradual, suave e parcial. No discurso sobre o Estado da Nação em Janeiro passado, o presidente Obama voltou a garantir que "eu não aceito um segundo lugar para os Estados Unidos da América". Dias depois, o vice-presidente Biden ridicularizou a ideia de que "estamos destinados a cumprir a profecia [do historiador Paul] de Kennedy de que vamos ser uma grande nação que falhou porque perdemos o controlo da nossa economia e exagerámos". Do mesmo modo, ao escrever na edição de Novembro da revista institucional Foreign Affairs, o guru da política neoliberal Joseph Nye afastou qualquer conversa sobre o crescimento económico e militar da China, desdenhando "metáforas enganadoras de declínio orgânico" e negando que estivesse em marcha qualquer deterioração do poder global dos EUA. Os americanos vulgares, que vêem os seus empregos a fugir para além-mar, têm uma perspectiva mais realista do que os seus lideres mimados. Uma sondagem de opinião de Agosto de 2010 chegou à conclusão de que 65% dos americanos estão convencidos de que o país já se encontra "numa situação de declínio". A Austrália e a Turquia, tradicionais aliados militares dos EUA, já estão a usar as suas armas fabricadas por americanos em manobras aéreas e navais conjuntas com a China. Os parceiros económicos mais próximos da América já estão a distanciar-se de Washington quanto à oposição às taxas de câmbio da China. Quando o presidente regressou da sua visita à Ásia no mês passado, um cabeçalho tristonho do New York Times resumia a situação desta maneira: "A visão económica de Obama é rejeitada no palco mundial, a China, a Grã-Bretanha e a Alemanha desafiam os EUA, Conversações comerciais com Seul também falham". Vista numa perspectiva histórica, a questão não é se os Estados Unidos vão perder o seu incontestado poder global, mas qual o grau de rapidez e de violência que o declínio terá. Em vez do pensamento desejoso de Washington, vamos utilizar a própria metodologia futurista do National Intelligence Council para sugerir quatro cenários realistas para ver como o poder global dos EUA pode chegar ao fim nos anos 20, seja com um golpe ou com um gemido (acompanhados de quatro análises correspondentes da situação actual). Os cenários futuros incluem: declínio económico, choque petrolífero, desventuras militares e III Guerra Mundial. Embora estas não sejam as únicas possibilidades no que se refere ao declínio americano ou mesmo ao seu colapso, constituem uma visão sobre um futuro próximo.
Declínio económico: Situação actual
Existem presentemente três ameaças principais para a posição dominante da América na economia global: perda de peso económico graças à quota minguante do comércio mundial, declínio da inovação tecnológica americana e fim da situação privilegiada do dólar enquanto divisa de reserva global. Em 2008, os Estados Unidos já tinham descido para o número três nas exportações globais de mercadorias, com apenas 11% em comparação com 12% para a China e 16% para a União Europeia. Não há nenhuma razão para crer que esta tendência se vá inverter. A liderança americana na inovação tecnológica também está em decadência. Em 2008, os EUA ainda eram o número dois a seguir ao Japão nos pedidos de patentes mundiais com 232 mil, mas a China estava a aproximar-se rapidamente com 195 mil, graças a um aumento fulgurante de 400% desde 2000. Um arauto de maior declínio: em 2009 os EUA atingiram o último lugar na classificação entre os 40 países analisados pela Information Technology & Innovation Foundation no que se refere a "mudança" em "competitividade global com base na inovação" durante a década anterior. A dar mais peso a estas estatísticas, o Ministério da Defesa da China divulgou em Outubro o super-computador mais rápido do mundo, o Tianhe-1A, tão poderoso, disse um especialista dos EUA, que "estoira com a actual máquina nº 1" na América. Acrescentem a isto a clara evidência de que o sistema educativo dos EUA, a fonte dos futuros cientistas e inovadores, tem vindo a ficar para trás em relação aos seus competidores. Depois de liderar o mundo durante décadas, no que se refere a gente entre os 25 e os 34 anos de idade com graus universitários, o país mergulhou para 12º lugar em 2010. O Fórum Económico Mundial classificou os Estados Unidos com um medíocre 52º lugar entre 139 países quanto à qualidade do ensino universitário de matemática e ciências em 2010. Actualmente, quase metade de todos os estudantes formados em ciências nos EUA são estrangeiros, a maioria dos quais regressará aos seus países, em vez de se manter aqui como acontecia anteriormente. Por outras palavras, em 2025, os Estados Unidos enfrentarão provavelmente uma escassez crítica de cientistas talentosos. Estas tendências negativas estão a estimular críticas cada vez mais duras ao papel do dólar como divisa de reserva mundial. "Os outros países já não estão dispostos a comprar a ideia de que os EUA sabem o que é o melhor em política económica", observou Kenneth S. Rogoff, um antigo economista de topo do Fundo Monetário Internacional. Em meados de 2009, quando os bancos centrais mundiais detinham um valor astronómico de 4 milhões de milhões de dólares em notas do Tesouro americano, o presidente russo Dimitri Medvedev insistia que era tempo de acabar com "o sistema unipolar mantido artificialmente" baseado "numa divisa de reserva que antigamente era forte". Simultaneamente, o governador do banco central da China sugeria que o futuro poderá assentar numa divisa de reserva global "desligada de países individuais" (ou seja, o dólar dos EUA). Considerem isto como indicadores de um mundo futuro, e duma possível tentativa, conforme referiu o economista Michael Hudson, "para acelerar a falência da ordem mundial financeiro-militar dos Estados Unidos".
Declínio económico: Cenário 2020
Em 2020, depois de anos de gordos défices alimentados por intermináveis guerras em países distantes, e conforme esperado há muito, o dólar dos EUA perde finalmente o seu estatuto especial como divisa de reserva mundial. Subitamente, o custo das importações dispara. Impossibilitado de pagar os défices enormes através da venda ao estrangeiro das notas do Tesouro agora desvalorizadas, Washington é finalmente forçado a reduzir o seu inchado orçamento militar. Debaixo da pressão interna e externa, Washington faz regressar lentamente as forças americanas das centenas de bases ultramarinas para um perímetro continental. Mas agora já é tarde demais. Confrontados com uma superpotência moribunda incapaz de pagar as contas, a China, a Índia, o Irão, a Rússia e outras potências, grandes e regionais, desafiam provocadoramente o domínio dos EUA sobre os oceanos, o espaço e o ciber-espaço. Entretanto, no meio de preços altos, de um desemprego sempre crescente e de uma queda continuada dos salários reais, as divisões internas resultam em choques violentos e debates fracturantes, muitas vezes sobre questões totalmente irrelevantes. Na crista de uma onda política de desilusão e desespero, um patriota da extrema-direita conquista a presidência com retórica retumbante, exigindo respeito para com a autoridade americana e ameaçando retaliação militar ou represálias económicas. O mundo não liga nenhuma quando o Século Americano termina em silêncio. Choque petrolífero: Situação actual Uma consequência do poder económico moribundo da América tem sido a sua dificuldade nos abastecimentos globais de petróleo. Ultrapassando a economia ávida de gasolina da América, a China passou a ser o maior consumidor de energia este Verão, uma posição que os EUA mantiveram durante mais de um século. O especialista em energia Michael Klare argumenta que esta mudança significa que a China vai "assumir o comando na definição do nosso futuro global". Em 2025, o Irão e a Rússia vão controlar quase metade do abastecimento mundial de gás natural, o que potencialmente lhes dará uma vantagem enorme sobre a Europa faminta de energia. Acrescentem as reservas de petróleo a esta mistura e, conforme alertou o National Intelligence Council, dentro de apenas 15 anos, a Rússia e o Irão poderão "emergir como os reis da energia". Apesar duma espantosa capacidade de invenção, as grandes potências petrolíferas estão neste momento a esgotar as grandes bacias de reservas petrolíferas que são de extracção fácil e barata. A grande lição do desastre petrolífero do Deep Horizon no Golfo do México não foi o padrão negligente de segurança da BP, mas o simples facto que toda a gente viu no "pequeno ecrã": os gigantes da energia já não têm alternativa senão procurar aquilo que Klare designa por "petróleo difícil" a quilómetros abaixo da superfície do oceano para conseguir manter os seus lucros. A agravar o problema, os chineses e os indianos tornaram-se repentinamente enormes consumidores de energia. Mesmo que os abastecimentos de combustíveis fósseis se mantivessem constantes (o que não acontece), a procura, e portanto os custos, aumentará certamente – e de forma acentuada. Outras nações desenvolvidas estão a enfrentar esta ameaça de uma forma agressiva dedicando-se a programas experimentais para desenvolver fontes de energia alternativas. Os Estados Unidos seguiram um caminho diferente, fazendo muito pouco para desenvolver energias alternativas ao mesmo tempo que, nos últimos trinta anos, duplicaram a sua dependência das importações de petróleo estrangeiro. Entre 1973 e 2007, as importações de petróleo aumentaram de 36% da energia consumida nos EUA para 66%.
Choque petrolífero: Cenário 2025
Os Estados Unidos mantêm-se tão dependentes do petróleo estrangeiro que qualquer pequena evolução adversa no mercado global de energia em 2025 provoca um choque petrolífero. Em comparação, o choque petrolífero de 1973 (quando os preços quadruplicaram em poucos meses) não é nada. Irritados com a queda do valor do dólar, os ministros do Petróleo da OPEP, num encontro em Ryadh, exigem os pagamentos futuros da energia num "cabaz" de ienes, iuans e euros. O que só contribui para aumentar o custo das importações do petróleo dos EUA. Na mesma altura, enquanto assinam uma nova série de contratos de entrega a longo prazo com a China, os sauditas estabilizam as suas próprias reservas de divisas estrangeiras mudando para o iuan. Entretanto, a China injecta milhares de milhões na construção de um enorme oleoduto trans-Ásia e no financiamento da exploração no Irão do maior campo de gás natural do mundo, em South Pars no Golfo Pérsico. Com a preocupação de que a Marinha dos EUA já não seja capaz de proteger os petroleiros que viajam do Golfo Pérsico para abastecer a Ásia oriental, uma coligação de Teerão, Riad e Abu Dabi forma uma inesperada nova aliança do Golfo e afirma que a nova frota da China de porta-aviões ligeiros passará a patrulhar o Golfo Pérsico a partir duma base no Golfo de Oman. Sob uma forte pressão económica, Londres concorda em cancelar o aluguer aos EUA da sua base na ilha de Diego Garcia no Oceano Indico, enquanto Camberra, pressionada pelos chineses, informa Washington que a Sétima Frota deixou de ser bem-vinda para usar Fremantle como porto de abrigo, expulsando assim na prática a Marinha dos EUA do Oceano Indico. Duma penada, e após alguns avisos sucintos, a 'Doutrina Carter', segundo a qual o poder militar dos EUA iria proteger eternamente o Golfo Pérsico, é posta de parte em 2025. Todos os elementos que há muito garantiam aos Estados Unidos abastecimentos ilimitados de petróleo a baixo preço daquela região – logística, taxas de câmbio e poder naval – evaporam-se. Nesta altura, os EUA ainda conseguem cobrir uns insignificantes 12% das suas necessidades energéticas a partir da sua alternativa embrionária da indústria energética e mantém-se dependente das importações de petróleo para metade do seu consumo de energia. O choque petrolífero que se segue atinge o país como um furacão, disparando os preços para alturas impressionantes, tornando as viagens uma proposta extremamente cara, colocando os salários reais (que há muito estavam em declínio) em queda livre e tornando não competitivas as poucas exportações americanas que ainda restam. Com os termóstatos a descer, os preços da gasolina a furar o tecto, e os dólares a fugir mar fora em troca do petróleo caro, a economia americana fica paralisada. Com as alianças há muito desgastadas no fim e as pressões fiscais a aumentar, as forças militares americanas começam finalmente uma retirada encenada das suas bases ultramarinas. Em poucos anos, os EUA estão funcionalmente na falência e o relógio aproxima-se da meia-noite do Século Americano.
Aventuras militares desastrosas: Situação actual
Contrariando o bom senso, à medida que o seu poder enfraquece, os impérios embarcam frequentemente em aventuras militares desastrosas e mal aconselhadas. Este fenómeno é conhecido entre os historiadores do império como "micro-militarismo" e parece envolver esforços psicologicamente compensadores para salvar o estigma da retirada ou da derrota ocupando novos territórios, mesmo que breve e catastroficamente. Estas operações, irracionais mesmo do ponto de vista imperialista, representam muitas vezes gastos hemorrágicos ou derrotas humilhantes que só aceleram a perda do poder. Em todas as épocas, os impérios bélicos sofrem de uma arrogância que os leva a mergulhar cada vez mais profundamente em aventuras desastrosas até que a derrota se transforma em derrocada. Em 413 AC, uma Atenas enfraquecida enviou 200 barcos para serem massacrados na Sicília. Em 1921, uma Espanha imperialista moribunda enviou 20 mil soldados para serem dizimados pelos guerrilheiros berberes em Marrocos. Em 1956, um Império Britânico em decadência destruiu o seu prestígio atacando o Suez. E em 2001 e 2003, os EUA ocuparam o Afeganistão e invadiram o Iraque. Com a arrogância que define os impérios ao longo dos milénios, Washington aumentou o número de efectivos no Afeganistão para 100 mil, alargou a guerra até ao Paquistão, e prolongou o seu compromisso até 2014 e para além disso, namorando desastres grandes e pequenos neste cemitério de impérios com armas nucleares, infestado por guerrilhas.
Aventuras militares desastrosas: Cenário 2014
O 'micro-militarismo" é tão irracional, tão imprevisível, que cenários aparentemente irreais rapidamente são ultrapassados pelos acontecimentos reais. Com as forças militares americanas esticadas desde a Somália às Filipinas e as tensões crescentes em Israel, no Irão e na Coreia, são múltiplas as combinações possíveis para uma crise militar desastrosa no estrangeiro. Estamos a meio do Verão de 2014 e uma reduzida guarnição americana no Kandahar em guerra no sul do Afeganistão é súbita e inesperadamente invadida por guerrilheiros talibãs, enquanto a aviação americana está no chão por causa duma tempestade de areia que impede a visão. São feitas pesadas baixas e, em retaliação, um comandante americano envergonhado envia bombardeiros B-1 e caças F-16 para demolir bairros suburbanos da cidade que se julga estarem sob controlo dos talibãs, enquanto helicópteros equipados com metralhadoras AC-130U "Spooky" varrem os escombros com um devastador fogo de canhões. Imediatamente, os mullahs começam a pregar a jihad nas mesquitas por toda a região, e unidades do exército afegão, treinados por forças americanas para dar a volta à guerra, começam a desertar em massa. Então, os combatentes talibãs desencadeiam uma série de ataques extremamente sofisticados, visando as guarnições dos EUA em todo o país, fazendo aumentar as baixas americanas. Em cenas que fazem recordar Saigão em 1975, helicópteros americanos resgatam soldados e civis americanos nos telhados de Cabul e Kandahar. Entretanto, irritados com o beco sem saída interminável que já dura há décadas no que se refere à Palestina, os lideres da OPEP impõem um novo embargo petrolífero aos EUA como protesto pelo seu apoio a Israel, assim como pela matança de número incontável de civis muçulmanos nas suas guerras em curso por todo o Grande Médio Oriente. Com os preços da gasolina a subir em espiral e as refinarias a ficarem secas, Washington toma a decisão de enviar forças de Operações Especiais para conquistar os portos petrolíferos do Golfo Pérsico. Isto, por sua vez, incentiva uma onda de ataques suicidas e a sabotagem de oleodutos e de poços de petróleo. Enquanto nuvens negras se acumulam no céu e os diplomatas se levantam na ONU para denunciar asperamente as acções americanas, comentadores em todo o mundo fazem ressuscitar a história para brandir este "Suez da América", uma referência explícita à derrocada de 1956 que marcou o fim do Império Britânico.
III Guerra Mundial: Situação actual
No Verão de 2010, as tensões militares entre os EUA e a China começaram a aumentar no Pacífico ocidental, outrora considerado um 'lago' americano. Ainda um ano antes ninguém teria previsto uma evolução destas. Tal como Washington se aproveitou da sua aliança com Londres para se apropriar de grande parte do poder global da Grã-Bretanha depois da II Guerra Mundial, também a China está a utilizar agora os proveitos do seu comércio de exportações para os Estados Unidos para financiar o que parece vir a ser um desafio militar ao domínio americano nas águas da Ásia e do Pacífico. Com os seus recursos cada vez maiores, Beijing está a reclamar um vasto arco marítimo desde a Coreia à Indonésia há muito dominado pela Marinha dos EUA. Em Agosto, depois de Washington ter manifestado um "interesse nacional" no Mar do Sul da China e de ali ter efectuado exercícios navais para reforçar essa pretensão, o Global Times oficial de Beijing respondeu asperamente, dizendo, "O confronto de forças EUA-China em relação à questão do Mar do Sul da China fez subir a parada quanto à decisão de qual vai ser o verdadeiro futuro governante do planeta". No meio de tensões crescentes, o Pentágono relatou que Beijing já detém "a capacidade de atacar… porta-aviões [americanos] no Oceano Pacífico ocidental" e visar "forças nucleares por todo… o continente dos Estados Unidos". Ao desenvolver "capacidades ofensivas de guerra nuclear, espacial e cibernética", a China parece determinada a competir pelo domínio daquilo a que o Pentágono chama "o espectro de informação em todas as dimensões do campo de batalha moderno". Com o desenvolvimento em curso do poderoso super míssil Longo Alcance V, assim como com o lançamento de dois satélites em Janeiro de 2010 e outro em Julho, num total de cinco, Beijing deu sinal de que o país estava a dar passos rápidos na direcção de uma rede "independente" de 35 satélites para capacidades de posicionamento global, de comunicações e de reconhecimento até 2020. Para conter a China e alargar a sua posição militar globalmente, Washington pretende montar uma nova rede digital de robótica aérea e espacial, capacidades avançadas de guerra cibernética e vigilância electrónica. Os estrategas militares esperam que este sistema integrado envolva a Terra numa grelha cibernética capaz de ofuscar exércitos inteiros no campo de batalha ou de caçar um simples terrorista no campo ou na favela. Em 2020, se tudo correr conforme planeado, o Pentágono vai lançar um escudo de três camadas de pequenos aviões espaciais de controlo remoto – que vão da estratosfera até à exosfera, armados com mísseis ágeis, ligados por um elástico sistema de satélite modular e manobrados inteiramente por vigilância telescópica. Em Abril passado, o Pentágono fez história. Alargou as operações dos aviões de controlo remoto até à exosfera lançando calmamente o X-37B, um veículo espacial não tripulado, para uma órbita baixa a 410 km acima do planeta. O X-37B é o primeiro de uma nova geração de veículos não tripulados que vão marcar o total armamento do espaço, criando uma arena para futuras guerras diferente de tudo o que já se viu.
III Guerra Mundial: Cenário 2025
A tecnologia do espaço e a guerra cibernética são coisas tão novas e sem estarem testadas que até os cenários mais estranhos podem vir a ser ultrapassados por uma realidade que ainda é difícil de conceber. Mas se utilizarmos apenas o tipo de cenários que a própria Força Aérea usou no seu Jogo de Capacidades Futuras 2009, podemos obter "uma melhor compreensão de como o ar, o espaço e o ciber espaço se sobrepõem na guerra" e começar a imaginar como poderá ser realmente travada uma próxima guerra mundial. São 11:59 da noite de quinta-feira de Acção de Graças em 2025. Enquanto os ciber-compradores se apinham nos portais da Melhor Compra para beneficiar dos grandes descontos na última palavra de aparelhos electrónicos domésticos chineses, os técnicos da Força Aérea dos EUA no Telescópio de Vigilância Espacial em Maui engasgam-se com o café quando os seus ecrãs panorâmicos se apagam subitamente. A milhares de quilómetros, no centro de operações do Ciber-Comando dos EUA, no Texas, os ciber-guerreiros depressa detectam binários maliciosos que, embora lançados anonimamente, mostram as distintas impressões digitais do Exército de Libertação de Pequim. O primeiro ataque aberto é um ataque que ninguém previra. "Vírus" chineses apoderam-se do controlo da robótica a bordo de um avião "Vulture" americano, de controlo remoto, não tripulado, alimentado a energia solar, quando ele se encontra a 70 mil pés de altitude sobre o Estreito Tsushima entre a Coreia e o Japão. Este dispara subitamente toda a carga de mísseis transportada na sua enorme envergadura de 120 metros, enviando dezenas de mísseis letais que mergulham inofensivamente no Mar Amarelo, desarmando eficazmente essa arma formidável. Decidido a combater o fogo com fogo, a Casa Branca autoriza um ataque de retaliação. Confiante em que o seu sistema satélite F-6 "Fractionated, Free-Flying" é impenetrável, os comandantes da Força Aérea na Califórnia transmitem códigos robóticos para a flotilha de aviões espaciais de controlo remoto X-37B que se deslocam numa órbita a 400 km acima da Terra, ordenando-lhes que lancem os seus mísseis "Triple Terminator" contra os 35 satélites da China. Resposta zero. Quase em pânico, a Força Aérea lança o seu Cruise Vehicle Hipersónico Falcon para um arco a 160 km acima do Oceano Pacífico e, 20 minutos depois, envia os códigos de computador para disparar mísseis contra sete satélites chineses em órbitas vizinhas. Subitamente os códigos de lançamento deixam de estar operacionais. À medida que os vírus chineses alastram descontroladamente pela arquitectura dos satélites F-6, enquanto os super-computadores americanos de segunda categoria não conseguem decifrar o diabolicamente complexo código do vírus, deixam de funcionar sinais de GPS vitais para a navegação dos navios e aviação americana em todo o mundo. Porta-aviões começam a andar em círculos no meio do Pacífico. Esquadrões de caças aterram. Mortíferos aviões de comando remoto voam sem rumo, despenhando-se quando se esgota o combustível. Subitamente, os Estados Unidos perdem o que a Força Aérea americana há muito chamava "o supremo terreno elevado ": o espaço. Em poucas horas, o poder militar que dominara o globo durante quase um século, foi derrotado na III Guerra Mundial sem uma única baixa humana.
Uma Nova Ordem Mundial?
Mesmo que os acontecimentos futuros venham a ser mais sensaborões do que estes quatro cenários sugerem, todas as tendências significativas apontam para um declínio muito mais impressionante do poder global americano em 2025 do que tudo o que Washington parece estar hoje a encarar. À medida que em todo o mundo os aliados começam a realinhar as suas políticas para terem conhecimento dos crescentes poderes asiáticos, o custo de manter 800 ou mais bases militares ultramarinas vai tornar-se simplesmente insustentável, acabando por forçar uma retirada encenada numa Washington ainda renitente. Com os EUA e a China numa corrida para armar o espaço e o ciber-espaço, é inevitável que aumentem as tensões entre as duas potências, tornando pelo menos possível um conflito militar em 2025, embora isso não seja garantido. A complicar ainda mais as coisas, as tendências económicas, militares e tecnológicas acima traçadas não funcionarão isoladamente. Tal como aconteceu aos impérios europeus depois da II Guerra Mundial, essas forças negativas vão mostrar-se inquestionavelmente sinérgicas. Vão combinar-se de formas perfeitamente inesperadas, vão criar crises para as quais os americanos não estão minimamente preparados e vão ameaçar precipitar a economia numa súbita espiral descendente, mergulhando esta nação numa geração ou mais de miséria económica. Enquanto o poder dos EUA recua, o passado oferece um espectro de possibilidades para uma futura ordem mundial. Numa das pontas deste espectro, não se pode pôr de lado a ascensão de uma nova superpotência global, embora isso seja pouco provável. Tanto a Rússia como a China revelam ainda culturas auto-referenciais, escritas difíceis não romanas, estratégias de defesa regional e sistemas legais subdesenvolvidos, que lhes negam instrumentos chave para um domínio global. Portanto, de momento, parece que não há no horizonte nenhuma superpotência que possa suceder aos EUA. Numa versão sombria, medonha, do nosso futuro global, uma coligação de corporações transnacionais, de forças multilaterais como a NATO e duma elite financeira internacional talvez pudesse forjar um único elo supra-nacional, possivelmente instável, que tornaria sem sentido continuar a falar de impérios nacionais. Enquanto as corporações desnacionalizadas e as elites multinacionais governariam assumidamente um mundo assim em enclaves urbanos seguros, a multidão seria relegada para a desolação urbana e rural. No 'Planeta Favela' (Planet of Slums) , Mike Davis apresenta pelo menos uma visão parcial de um mundo desses. Defende que os mil milhões de pessoas já amontoadas em fétidos bairros pobres, tipo favelas, em todo o mundo (e que chegarão aos dois mil milhões em 2030) formarão "as 'cidades falhadas, selvagens' do Terceiro Mundo… o campo de batalha característico do século vinte e um". À medida que a noite se instala nalgumas das futuras super-favelas, "o império pode impor tecnologias orwelianas de repressão" como "helicópteros com metralhadoras, tipo vespas, a caçar inimigos enigmáticos pelas ruas estreitas dos bairros pobres… Todas as manhãs os bairros respondem com bombistas suicidas e explosões eloquentes". A meio caminho do espectro de possíveis futuros, pode emergir um novo oligopólio global entre 2020 e 2040, com potências em ascensão como a China, a Rússia, a Índia e o Brasil colaborando com potências em decadência como a Grã-Bretanha, a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos para imporem um domínio global ad hoc, parecido com a aliança solta dos impérios europeus que governaram metade da humanidade por volta de 1900. Outra possibilidade: a ascensão de hegemonias regionais num regresso a algo que faz recordar o sistema internacional que funcionou antes de tomarem forma os impérios modernos. Nesta ordem mundial neo-westfaliana, com as suas imagens infindáveis de micro-violência e de exploração sem controlo, cada hegemonia dominará a sua região – a Brasília na América do Sul, Washington na América do Norte, Pretória na África do Sul, e por aí afora. O espaço, o ciber-espaço e as profundezas marítimas, libertos do controlo do antigo "polícia" planetário, os Estados Unidos, até podem tornar-se áreas públicas globais, controladas por um Conselho de Segurança das Nações Unidas alargado ou qualquer órgão ad hoc. Todos estes cenários são extrapolações de tendências existentes para um futuro no pressuposto de que os americanos, cegos pela arrogância de décadas de um poder historicamente sem paralelo, não possam ou não queiram tomar medidas para gerir a erosão descontrolada da sua posição global. Se o declínio da América está de facto numa trajectória de 22 anos, de 2003 a 2005, então já esbanjámos a maior parte da primeira década desse declínio com guerras que nos afastaram dos problemas a longo prazo e, tal como a água despejada nas areias do deserto, desperdiçaram milhões de milhões de dólares de que precisamos desesperadamente. Se restam apenas 15 anos, ainda se mantém alta a possibilidade de esbanjá-los todos. O Congresso e o presidente encontram-se actualmente manietados; o sistema americano está inundado de dinheiro público destinado a emperrar as obras; e poucas indicações há de que quaisquer questões de significado, incluindo as nossas guerras, o nosso estado de segurança nacional, o nosso esfomeado sistema de educação, e o nosso antiquado fornecimento de energia, sejam tratadas com a necessária seriedade para assegurar o tipo de aterragem suave que podia maximizar o papel e a prosperidade do nosso país num mundo em mudança. Os impérios da Europa acabaram e o império da América está a acabar. É cada vez mais duvidoso que os Estados Unidos venham a ter algo parecido com o êxito da Grã-Bretanha em moldar uma ordem mundial sucedânea que proteja os seus interesses, preserve a sua prosperidade e exiba o carimbo dos seus melhores valores.
[*] Professor de história na Universidade de Wisconsin-Madison, colaborador frequente de TomDispatch, autor de Policing America's Empire: The United States, the Philippines, and the Rise of the Surveillance State (2009). É também o lider do projecto "Empires in Transition" , um grupo de trabalho global de 140 historiadores de universidades de quatro continentes. Os resultados das suas primeiras reuniões em Madison, Sidney, e Manila foram publicados como Colonial Crucible: Empire in the Making of the Modern American State e as conclusões da sua última conferência aparecerão no próximo ano em "Endless Empire: Europe's Eclipse, America's Ascent, and the Decline of U.S. Global Power".
O original encontra-se em www.tomdispatch.com/... .
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

15/12/2010

Roswitha Scholz: a emancipação das mulheres e a superação do capital

Escrito por Demétrio Cherobini (*)
09-Dez-2010

Em 1846, veio à luz um artigo de Marx que, infelizmente, passou quase despercebido aos seus posteriores discípulos e críticos: Sobre o suicídio, uma brochura de algumas dezenas de páginas que analisava situações de suicídio, a maioria de mulheres, ocorridos na França, durante aquele período histórico singular. O filósofo mostrava em seu texto como o capitalismo era uma formação social que oprimia não somente os trabalhadores, mas indivíduos das mais diversas origens e segmentos sociais. Entre as vítimas "não-proletárias" levadas ao desespero e ao auto-aniquilamento pelas pressões da sociedade burguesa, estavam, sobretudo, as mulheres. Na visão de Marx, era a opressão sócio-político-econômica do capitalismo, articulada à, nas suas palavras, "tirania familiar" (patriarcal) – que permitia aos homens tratar suas esposas como objetos -, que levava as mulheres à trágica decisão de liquidar com suas próprias vidas. O suicídio, nesse contexto, foi interpretado pelo pensador alemão como uma espécie de protesto contra uma condição bárbara e degradante, e por esse motivo deveria estar isento de todo e qualquer tipo de julgamento moralista ou condenação preconceituosa. Para Marx, uma "sociedade" que pratica atrocidades desse teor não merece nem mesmo ser chamada de sociedade, pois "mais parece uma selva habitada por feras selvagens". Esse artigo constituiu-se, naquela época, numa crítica radical e sem concessões da subordinação feminina e da natureza opressiva do tipo de organização familiar vigente na sociedade capitalista. Em nosso tempo histórico, por sua vez, pode se converter em material fecundo para instigar um rico debate sobre a relação das lutas feministas com todos os outros movimentos organizados que têm por objetivo a emancipação humana. Nesse sentido, então, vale a pena perguntar: de que modo podemos entender a articulação que existe entre a ordem dominada pelo capital e a opressão das mulheres?

Roswitha Scholz (1), filósofa alemã que se debruça sobre tais questões há mais de trinta anos, tem muito a nos ensinar a respeito. De acordo com sua teoria, no capitalismo, diferentemente de outros tipos de sociedade, a formação do valor (que constitui, segundo ela, a essência da relação-capital e que exige, pois, para sua efetivação, subordinação hierárquica e discriminação material e psíquica) envolve sobretudo uma relação sócio-psíquica específica, onde certas "qualidades, atitudes e sentimentos avaliados como menores (sensualidade, emocionalidade, fraqueza de caráter e de entendimento etc.) são projetados sobre ‘a mulher’ e dissociados pelo sujeito masculino, que se constrói como forte, realizador, concorrencial, eficiente e por aí afora [grifos em negrito nossos]". Se essa teoria for correta, ela está repleta de uma série de implicações políticas, tanto para os que lutam contra a exploração do sistema do capital, quanto para os que buscam o fim da opressão de gênero e da desigualdade prática que existe entre homens e mulheres, pois demonstra que esses dois combates, para serem vitoriosos nos seus propósitos, devem ser realizados de uma forma articulada e coerente. Sigamos, pois, para nosso esclarecimento, o raciocínio sutil da filósofa.

Roswitha Scholz quer compreender a relação entre o capitalismo e o patriarcado, entre a formação social onde predomina a produção do valor e a violenta sujeição que os homens realizam sobre as mulheres. Com esse intento, entabula uma profunda investigação a fim de verificar as várias formas de expressão da dominação masculina nas sociedades ocidentais ao longo da história.

O patriarcado é, para Scholz, uma criação cultural e histórica. O patriarcado ocidental, ligado à forma-valor, teve sua origem, segundo a filósofa, na Grécia antiga, e persistiu durante o Império Romano. Nessas sociedades, as condições específicas vigentes fizeram surgir uma esfera pública que os homens tomaram como exclusividade sua.

"As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral. A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como ‘antípoda’, no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. – atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade".

Na Idade Média, condições históricas diversas fizeram com que desmoronasse a antiga diferenciação entre esfera pública e privada. Scholz afirma que, na sociedade medieval, chegaram a subsistir mesmo resquícios "semimatriarcais" no seio do patriarcado, especialmente entre as tribos germânicas, onde as mulheres desfrutavam de uma espécie de "significação mística". A própria figura da bruxa não era vista de antemão como negativa, pois se considerava que, se a magia poderia resultar em algo "mau", também era capaz de produzir algo "bom". Nesse período, a mulher era juridicamente subordinada ao marido e podia até ser negociada como escrava ou cabeça de gado. Mas, por outro lado, também tinha a possibilidade de dedicar-se ao comércio e ocupar-se de um ofício fora do ambiente doméstico (isto na chamada Alta Idade Média). Além disso, possuía ainda uma certa autoridade no interior da família e tinha a chamada "última palavra" como administradora do lar.

No início da Idade Moderna, a condição das mulheres foi dificultada drasticamente. Isso se deveu ao "renascimento" do antigo mundo cultural grego e às respectivas mudanças nos fundamentos da sociedade.

"Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por elas sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher". (Becker, apud Scholz)

As transformações desse período já deixavam entrever o capitalismo nascente e a conseqüente sociedade do valor. O "feminino" sofreu aí uma campanha da aniquilação. Se na figura da bruxa, que se fez presente na etapa histórica anterior, ela, a mulher/bruxa, mantinha uma relação "simpática" com a natureza (e até fazia as vezes de natureza, em certo sentido), agora, com o predomínio da racionalidade do homem moderno, tudo isso precisava ser reconfigurado. Não que a mulher perdesse essa associação com o místico e o natural. Mas, porque o próprio "natural" era concebido de forma diferente, como objeto de domínio. Nesse contexto, evidentemente, também a mulher precisava ser dominada. E a Igreja, por sua vez, contribuía enormemente para a sujeição do feminino. Como explica Scholz,

"Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projeto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza. A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demônio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade".

A ética protestante, nesse período, também não foi nada benevolente com as mulheres. Para Scholz, a Reforma se empenhou em domesticar a mulher, fazendo com que ela levasse uma vida serena, amável, humilde, controlada pelo patriarcado e encerrada "no claustro do casamento". (Lutero teria sido, nesse contexto, um dos principais responsáveis por tal concepção acerca do feminino).

Já a era do Iluminismo, por sua vez, deu novo impulso a essa "domesticação". Apesar do fato de que alguns dos filósofos da época defendessem o projeto de uma emancipação igualitária entre os gêneros, tais concepções não foram capazes de se impor na prática, em virtude do peso do tipo de processos sociais nos quais estavam inseridas, "a saber, a progressiva socialização pelo valor", como explica Scholz. Esse tipo de socialização exigia, segundo a filósofa, uma certa diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, onde a mulher deveria destinar-se, "por natureza", a ser não mais que esposa, dona-de-casa e mãe.

Note-se que, desde o princípio da Idade Moderna, é possível verificar a persistência e o acentuamento entre as esferas do público e do privado e a restrição da atividade da mulher a este último domínio. Scholz afirma que o período do Iluminismo, em especial, atribuiu a essa divisão uma nuance peculiar: a polarização de caráter dos sexos.

"Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma ‘polarização de caráter entre os sexos’. A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação. À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um ‘bem-estar doméstico’ propiciado pela mulher".

No século XIX, as cisões entre o feminino e o masculino e entre o privado e o público se aprofundaram. A "vocação" materna da mulher da sociedade burguesa acentuou-se ainda mais. O sujeito feminino recebeu a tarefa precípua de manter a família em equilíbrio, realizar os afazeres domésticos e dar cabo de tudo que tivesse um cunho mais pessoal na vida conjugal, ao passo que o homem, que tinha no âmbito público seu locus "natural" de atuação realizadora, foi talhado para atividades produtivas em múltiplos campos: ciência, tecnologia, cultura etc. Este século, contudo, assistiu a proliferação de vários movimentos feministas (muitos deles burgueses) que exigiam a modificação das condições de existência das mulheres. Essas lutas se prolongaram no século XX (especialmente em sua segunda metade) e deram a impressão de que a relação entre os sexos estava a sofrer grandes mudanças, com as mulheres transcendendo o espaço doméstico/privado no qual os homens queriam lhes confinar a todo custo.

Ora, pergunta-se Scholz: na contemporaneidade a situação das mulheres estaria melhor? Aqui, há que se ter um pouco de cuidado e atenção para ir além do aparente e de suas conseqüentes conclusões precipitadas. Para a filósofa alemã, o que se verifica hoje é, na verdade, uma contradição muito mais aguda do que a que ocorria em épocas anteriores. Para entender como isso se dá, é preciso que nos detenhamos brevemente sobre sua teoria do valor-dissociação. De que trata, pois, tal formulação? Scholz parte de uma compreensão crítica acerca das concepções de Marx sobre o que constitui a essência do capital.

De acordo com o pensador alemão, o capital é um sistema que se realiza pela valorização do valor. Para que esse processo ocorra, mercadorias precisam ser produzidas e trocadas no mercado. Nesse contexto, é uma condição sumamente necessária que as mercadorias tenham um valor de troca. No mercado, as trocas de mercadorias só se realizam por valores equivalentes. Ou seja, uma mercadoria só pode ser trocada por outra de mesmo valor. Mas o que é que determina o valor de uma mercadoria? Para Marx, não é nenhuma característica física capaz de satisfazer certa necessidade humana (isto é, o seu valor de uso). O valor das mercadorias só pode ser formado pela presença nelas de um elemento que seja comum a todos os tipos de mercadorias. E qual é esse elemento? Numa palavra, o trabalho humano. Nas palavras de Marx (1978, 74-5), "quando consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. […] os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho na outra".

Para gerar capital, o capitalista, em primeiro lugar, vai ao mercado e compra matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho (que só pode ser fornecida por trabalhadores dispostos a vendê-la). Esses elementos (que são todos mercadorias) possuem um certo valor determinado (valor este que é definido pela quantidade de tempo de trabalho social passado plasmado nessas mercadorias, inclusive na força de trabalho). Quando os trabalhadores colocam em movimento esses meios de produção (os instrumentos de trabalho e a matéria-prima), o produto que daí surge possui um quantum de valor maior (porque no produto foram invertidas mais horas de trabalho social) do que aquele presente nas mercadorias no início do ciclo. Este novo valor é trocado no mercado por uma soma de valor exatamente equivalente à sua. Uma parte do valor em dinheiro obtido pela venda da mercadoria é destinada a repor as mercadorias originais (meios de produção e força de trabalho). A outra parte do valor (o valor excedente, a mais-valia) é apropriada pelo capitalista. Como a essência do sistema do capital é produzir valores para serem trocados no mercado, subordinando para tal fim as próprias necessidades dos sujeitos históricos (diz-se que o valor de troca subordina o valor de uso), ocorre que a formação do valor passa a funcionar por si mesma, automaticamente, fazendo das pessoas meros apêndices do processo de produção de mercadorias. É como se, então, o próprio capital se tornasse o "sujeito" e as pessoas os "objetos" desse circuito. (Mas como o capital não pode ser mais do que um pseudo-sujeito, diz-se que, na verdade, a sua realização ocorre a partir de um processo sem sujeito). A este fenômeno Marx denominou fetichismo. O movimento de produção do valor é eminentemente fetichista, pois o capital adquire propriedades de sujeito (se "humaniza", isto é, passa a ser a fonte da atividade e a criar imperativos práticos de ação) e as pessoas adquirem características de objeto (se "coisificam", isto é, viram objetos para o processo de produção de mercadorias).

No geral, Roswitha Scholz concorda com essa concepção de Marx, embora acredite que, no contexto contemporâneo, o trabalho abstrato (que é o que gera valor de troca, ao contrário do trabalho concreto, que é o que dá à luz valores de uso) esteja em "crise". Isso não invalida, contudo, a teoria de que o capital é essencialmente um mecanismo centrado na formação de valor excedente. A filósofa acrescenta apenas que esse processo envolve especificação sexual. Ou seja, é um determinado patriarcado que produz as mercadorias e, nesse movimento, projeta sobre as mulheres certas características que serão dissociadas da formação dos valores. Isto já era visível no patriarcado grego (que mantinha atividades comerciais mercantis). E, mais ainda, do Renascimento em diante, quando os processos que envolviam a realização do capital foram novamente despontando no horizonte histórico e se consolidando a seguir. É nesse sentido, como afirma Scholz, que "o valor é o homem, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do ‘trabalhador’ abstracto – antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior -, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra".

Essa dissociação na formação do valor foi responsável por uma divisão das esferas sociais entre público e privado, onde a primeira foi tomada como o campo "natural" de atuação dos homens, e a última, das mulheres. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram transcender em parte a clausura do lar e do ambiente privado imposta a elas pelos homens. Contudo, em nossos dias, onde, na visão de Scholz, a família tradicional nuclear tende a se dissolver, as mulheres ainda aparecem numa condição que ela chama de "duplamente socializadas", isto é, responsáveis tanto pela família como pela profissão. Isto significa que as mulheres ainda aparecem como as principais responsáveis pelas atividades "reprodutivas" (próprias ao ambiente familiar) e, juntamente com isso, têm de desempenhar atividades profissionais nas quais ganham menos, recebem menos oportunidades de promoção e assim por diante.

É exatamente por essa razão que, segundo a filósofa, é errôneo dizer que em nossos dias o patriarcado se enfraqueceu. Para Roswitha Scholz, ele, na verdade, se asselvajou, pois, em nosso contexto, as mulheres, que são "duplamente socializadas", também são, por conseguinte, duplamente oprimidas: ao venderem a sua força de trabalho e no âmbito doméstico. Vivemos hoje, portanto, o período do asselvajamento do patriarcado.

Como superá-lo? Ora, se se entende que esse patriarcado está relacionado com um tipo específico de atividade social, que tem na realização do valor o seu fundamento, a superação da dominação de gênero exige que se vá além exatamente desse modo de sociabilidade vinculada à produção de mercadorias, à produção de valor. Nas palavras de Scholz: "A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma ‘esquerda feminista’ que tenha consciência tanto subjetiva e pessoal quanto objetiva e social do mecanismo de cisão [entre os gêneros]. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que ‘nossa’ sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. [...] além disso, é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais".
A teoria de Roswitha Scholz é, evidentemente, muito mais rica e cheia de nuances do que esta exposição. Fica o convite para a leitura de seus textos, muitos dos quais estão à disposição, em português, no site do grupo intelectual do qual a filósofa faz parte, o Exit (http://obeco.planetaclix.pt/). Mais do que uma mera e imperfeita apresentação, este texto visou, sobretudo, realizar um convite à leitura da obra desta insigne pensadora, que nos recomenda que, tal como a crítica dos processos fetichistas do capital, também a crítica à opressão de gênero deve ganhar um lugar central em nossa agenda de lutas.

Nota:
1 - Todas as citações de Scholz que faremos aqui são do texto indicado na bibliografia. Os grifos em negrito e sublinhado são de nossa autoria.

Referências:
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In MARX, Karl, Os pensadores (Seleção de textos de José Arthur Gianotti). São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006
SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem – Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. (1992) In http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm

(*) Demétrio Cherobini é licenciado em Educação Especial (UFSM), bacharel em Ciências Sociais (UFSM) e mestrando em Educação (UFSC).
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cherobini@yahoo.com.br

14/12/2010

DERROTAR DILMA NAS RUAS

José Arbex Jr (*)
Exatamente como aconteceu no dia 3 de outubro, 36 milhões de eleitores (número equivalente 27% do universo de 136 milhões de brasileiros qualificados para votar) preferiram não depositar o seu voto em qualquer candidato à presidência. Esse é, de longe, o dado mais significativo de segundo turno das eleições: 4,7 milhões anularam o voto, 2,5 milhões votaram em branco e 29 milhões se abstiveram. Dilma Rousseff foi eleita, portanto com apenas 41% do total de votos possíveis, ao passo que José Serra obteve 32% (isto é, ficou míseros 5 pontos percentuais acima dos votos não válidos e das abstenções).
Para um país onde o voto é obrigatório, os resultados revelam, no mínimo, que boa parte de população não deposita qualquer confiança ou entusiasmo nos dois candidatos. Os votos em Dilma tampouco demonstraram uma suposta força de “esquerda a direita” como alardeiam supostas lideranças da mais suposta ainda “esquerda”, já que boa parte dos votos foi carreada pela máquina coronelista do PMDB, com a preciosa ajuda de tradicionais esquerdistas do quilate de José Sarney e Michel Temer, e outra parte, ainda foi depositada pelo subproletariado cooptado pela distribuição das migalhas oriundas do assistencialismo estatal.
Os votos em Dilma não refletem sequer o apoio do Partido dos Trabalhadores à sua candidatura. Dilma foi a “candidata do lula”, não do PT a presidência do país. Ela filiou—se ao PT apenas em 2001, não tem base partidária e foi guindada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva à chefia da casa civil após a queda de José Dirceu, em 2005, em detrimento da opção por petistas “históricos”. Da mesma forma, Lula acertou “pelo alto” um acordo com o PMDB, assegurando-lhe o cargo de vice de Dilma (Michel Temer) e o apoio do PT à candidatura aos governos do Maranhão (Roseana Sarney) e Minas Gerais (Hélio Costa).
Os conflitos provocados no PT por essas medidas foram públicos, assim como as defecções que o partido sofreu a partir de 2003, incluindo a de petistas “emblemáticos” como Heloísa Helena, Marina Silva e Ivan Valente, entre outros. A capacidade de Lula impor a sua vontade ai PT decorre de uma combinação de múltiplus fatores: alianças internas entre grupos que formam a “máquina” do partido, controladas diretamente por ele; uma política de cooptação de militantes guinados a cargos públicos bem remunerados e o mais importante: o fortalecimento do “lulismo” descolado do PT.
O “lulismo” – do qual Dilma tornou-se imagem refratada – é, provavelmente, o fenômeno político e social mais importante e nefasto do cenário conjuntural brasileiro contemporâneo. Começou a adquirir uma forma nítida e concreta a partir de 1998, quando Lula, antes identificado com as grande greves do ABC, passou a se apresentar como “lulinha paz e amor” e a cortejar o voto do subproletariado – constituído por trabalhadores informais, sem carteira assinada, dispostos a aceitar salários miseráveis e condições indignas de trabalho -, com um discurso assistencialista (centrando no programa Fome Zero), ao mesmo tempo em que acenava para os banqueiros a disposição de aceitar as regras do jogo financeiro, compromisso consagrado pela “carta aos Brasileiros”,em 2002.
Em sua primeira gestão, Lula criou uma série de programas sociais destinados a atrair o subproletariado. No final de 2003, lançou o Programa Bolsa Familia (PBF), que hoje atende a 12 milhões de lares. Entre os milhões daqueles que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, e os que elegeram Dilma agora, a maioria era composta por nordestinos de renda baixa, o público alvo por excelência do PBF. Combinado com o PBF, Lula manteve o controle da inflação, garantiu um aumento menor do preço da cesta básica nas regiões mais pobres, assegurou um ganho real de 25% no salário mínimo, criou o “crédito consignado” e outras medidas destinadas a expandir o financiamento popular. Além disso, lançou uma série de programas que beneficiam setores tradicionalmente marginalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural).
Se a “distribuição real de renda” é cantada em verso e prosa pela “esquerda” lulista como “prova” de que seu governo tem “uma lado progressista”, a contrapartida é o fato de que Lula passou a governar com o apoio direto do capital financeiro, cujos lucros, sem precedentes na história do país, somam dezenas de vezes o total dos investimentos em programas sociais. A contrapartida é o apaziguamento de uma ampla camada conservadora da classe média que quer a “ordem” e a estabilidade, e o amor do subproletario, que vê no presidente um “igual” que “chegou lá” e está “ajeitando as coisas” para os mais pobres. Seu governo incorporou plenamente a noção conservadora que dispensa a organização da classe trabalhadora, pois um Messias conduz as reformas.
Mas para fazer isso Lula teve que “congelar”- principalmente, por meio da cooptação – os movimentos sociais, as principais lideranças sindicais do país e “rifar” o seu próprio partido, o PT, que hoje existe apenas como sombra do poder pessoal de um presidente que se coloca acima de todos os partidos. O “lulismo” significou, portanto, o abandono dos perspectivas de esquerda que estiveram na base da fundação do PT, as quais pressupunham uma elevação da consciência de classe por meio da luta política. Houve , ao contrario, um rebaixamento da consciência. Por essa razão é que o escândalo do “mensalão”, em 2005, não impediu a reeleição de Lula: ele tinha o apoio de uma camada da sociedade que não lê jornais e que não se sentiu afetada. Por esse mesmo motivo, não teve repercussões mais desastrosas as revelações. Às vésperas do primeiro turno de 2010, das maracutaias envolvendo Erenice Guerra, amiga intima de Dilma e sua substituta na casa civil.
O governo Dilma – o Lula do mundo bizarro – será, necessariamente, muito pior e mais caótico. Lula, ao menos, tem brilho próprio, controla a máquina petista e coloca-se acima da disputa entre as várias facções dos grupos burgueses (negocia, costura acordos e concilia com todos eles, e ainda faz a ponte com o senhores do Império). Dilma Roussef não é nada disso. Ela deve sua eleição a Lula, sem ter o seu carisma nem base organizada para sustentar o seu governo. Começa como refém do PMDB no congresso e comprometida até o pescoço com um programa de governo que significa a manutenção da total subordinação ao capital financeiro.
A única perspectiva real que sobre à esquerda brasileira é romper com a paralisia que a marcou durante os oito anos de Lula e passar à oposição ativa, mais ou menos como propunha a fórmula lançada pelo comitê central do PCB, logo após o primeiro turno: “Derrotar Serra nas urnas e depois Dilma nas ruas.” A primeira parte já se cumpriu.

(*) José Arbex Jr. é jornalista
Publicado em "Caros Amigos", edição de novembro de 2010