01/04/2010

À todos/as que partiram sem poder dizer adeus.

Caio Navarro de Toledo*
Há 46 anos – na data em que o imaginário popular consagra como o “dia da mentira” – era rompida a legalidade democrática implantada no Brasil com o fim da ditadura do Estado Novo (1937-1945). Nestes dias, apenas os falcões da ultradireita brasileira talvez se atreverão a lembrar ou comemorar publicamente o 1º. de abril de 1964; civis e militares que o fizerem, em bizarros cenários, serão uma inexpressiva minoria. Hoje, a quase totalidade das entidades que conspirou, apoiou e promoveu a derrubada do governo democrático de João Goulart (1961-1964), não festejará o golpe civil-militar de 1964. A este respeito, tome-se o exemplo dos grandes meios de comunicação; nestes dias, ao contrário do que fizeram durante quase duas décadas, deixarão eles de divulgar editoriais e artigos que exaltem os “feitos” do regime militar.* A explicação é uma só: no Brasil contemporâneo, todos se afirmam “amigos” ou amantes da democracia...
Diante da recorrente questão “Golpe” ou “Revolução”, deveríamos lembrar as palavras de um ativo protagonista do movimento de abril. Em celebrado depoimento (1981), , Ernesto Geisel declarou: “o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma idéia, em favor de uma doutrina”. Para o vitorioso de 1964, o movimento se fez “contra Goulart”, “contra a corrupção”, “contra a baderna e a anarquia que destruíam o país”.
As palavras do militar golpista – pertinentes, pois rejeitam a noção de “Revolução” para caracterizar o 1º. de abril de 1964 –, no entanto, podem ser objeto de uma outra leitura. Neste sentido, é possível – a partir de uma outra perspectiva teórica – ressignificar todos os “contras” presentes no depoimento do ex-ditador. Mais correto é então afirmar que 1964 representou: (a) um golpe contra a incipiente democracia política brasileira; (b) um movimento contra as reformas sociais e políticas e (c) uma ação repressiva contra a politização dos trabalhadores e o promissor debate de idéias que, de norte a sul, ocorria do país.
Em síntese, no pré-1964, as classes dominantes e seus aparelhos ideológicos e repressivos – diante das iniciativas e reivindicações dos trabalhadores no campo e na cidade e de setores das camadas médias – apenas enxergavam “crise de autoridade”, “subversão da lei e da ordem”, “quebra da disciplina e hierarquia” dentro das Forças Armadas e a “comunização” do país que, no limite, implicariam a “dissolução da família” e o “fim propriedade privada”. Embora, por vezes, expressas numa retórica “radical” – reformas na “lei ou na marra”, “forca aos gorilas” etc. –, as demandas por reformas sociais e as consignas políticas visavam, fundamentalmente, o alargamento da democracia política e a realização de mudanças no capitalismo brasileiro.
Contra algumas formulações “revisionistas” – presentes no atual debate político e ideológico (inclusive nos campos da literatura política e historiografia progressistas) – que insinuam “tendências golpistas” por parte do governo Goulart, deve-se enfatizar que quem planejou, articulou e desencadeou o golpe contra a democracia política foi a alta hierarquia das Forças Armadas, incentivada e respaldada pelo empresariado (industrial, rural, financeiro e investidores estrangeiros) bem como por setores das classe médias brasileiras (as chamadas “vivandeiras de quartel”). Bem antes da chamada “agitação das esquerdas”, alguns desses setores começaram a se organizar para inviabilizar o governo Goulart; a mobilização pelas reformas sociais e políticas – apoiada pelo executivo – ampliou a conspiração e amadureceu a decisão dos golpistas de decretar o fim do regime democrático de 1946.
Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, a ação dos golpistas foi saudada pelas associações representativas do conjunto das classes dominantes, pela alta cúpula da Igreja católica, pelos grandes meios de comunicação etc. como uma autêntica “Revolução”. Por sua vez, a administração norte-americana de Lyndon Johnson (1963-1969) – que foi poupada de dar apoio material aos golpistas, como está comprovado documentalmente –, congratulou-se com os militares e civis brasileiros pela rapidez e eficácia da “ação revolucionária”. Para alívio do Pentágono, CIA, Embaixada norte-americana etc uma “nova Cuba” ao sul do Equador tinha sido impedida!
Embora tivesse uma simpática acolhida junto aos trabalhadores, às classes médias baixas e aos meios sindicais, o governo João Goulart ruiu como um castelo de areia. Dois de seus principais pilares de apoio – como apregoavam os setores nacionalistas – mostraram ser autênticas peças de ficção. De um lado, o propalado “dispositivo militar” que seria comandado pelos chamados “generais do povo”; de outro, o chamado “quarto poder” que estaria representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A rigor, ambos assistiram – sem qualquer reação significativa ou eficaz – a queda inglória de um governo a quem juravam fidelidade; inclusive, diziam os mais “radicais”, com o peço da própria vida.
Desorganizadas e fragmentadas, as entidades progressistas e de esquerda – muitas delas subordinadas ou tuteladas pelo governo Goulart – não ofereceram qualquer resistência à ação dos militares. Sabe-se que, às vésperas de abril, algumas lideranças de esquerda afirmavam que os golpistas – caso atrevessem quebrar a ordem constitucional – teriam as “cabeças cortadas”. Mostraram os duros fatos que se tratava de uma cortante metáfora. Com a ação dos “vitoriosos de abril”, esta expressão, no entanto, tornou-se uma aguda e cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os longos e sombrios 20 anos da ditadura militar.
46 anos depois, nada há, pois, a comemorar. O golpe de 1964 foi um infausto acontecimento pois teve conseqüências perversas e nefastas no processo de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil – que ainda se refletem nos tempos presentes. Decorridos 46 anos do golpe, o conjunto da sociedade brasileira repudia a data, mas os progressistas e socialistas não podem se satisfazer com a derrota sofrida pelos golpistas no plano ideológico. Se os valores da democracia atualmente são diuturnamente exaltados no debate político e cultural, os progressistas e os socialistas não podem se calar diante do fato de que o regime democrático vigente nos pós-1985 ainda não fez plena justiça às vítimas da ditadura militar e ainda todos aguardamos que a verdade sobre os fatos ocorridos entre 1964 e 1985 seja plenamente conhecida. Sendo o “direito à justiça” e o “direito à verdade” condições e dimensões relevantes de um regime democrático, não se pode senão concluir que a democracia política no Brasil contemporâneo não é ainda uma realidade sólida e consistente.

30/03/2010

O valor da mercadoria força de trabalho

Autor: Paiva Neves (*)
O modo de produção capitalista, historicamente, é produtor de mercadorias. Isto porque, tudo que é produzido tem como objetivo central o lucro. O lucro é obtido através da extração da mais valia no ato da produção. No entanto, ele se concretiza plenamente quando a mercadoria é levada ao mercado para ser trocada por dinheiro que por sua vez é trocado por outras mercadorias para fazer mais dinheiro. Este processo continuado de troca é o que caracteriza o capital.
O que define o valor de uma mercadoria é a quantidade de força de trabalho depreendida para a sua produção. Toda mercadoria, ou seja, tudo que é feito pela mão humana e que se destina à troca no mercado é, na prática, trabalho materializado em forma de capital. Pela quantidade de trabalho socialmente necessário para a produção de determinada mercadoria é estabelecido o seu valor.
Força de trabalho é energia física e mental depreendida pelo trabalhador no processo de produção. Quando o trabalhador entra na fábrica descansado e no final do turno sai cansado, nada mais foi que o uso da sua força de trabalho nas horas que labutou. Toda a sua energia física e intelectual foi transferida para a mercadoria produzida.
A força de trabalho termina também sendo uma mercadoria. É uma mercadoria especial porque tem o poder de criar outro valor. O valor da força de trabalho, como as demais mercadorias, também é definido pelo valor do custo da sua produção. O trabalhador para continuar trabalhador precisa de comida, bebida, moradia, enfim, precisa manter a si e a sua família. Esses gastos que ele faz para manter a si e sua família é o custo da sua manutenção e da sua reprodução enquanto trabalhador. A soma de tudo que ele gasta mensalmente para manter a si e a sua família é o valor da mercadoria força de trabalho.
No Brasil, segundo dados do DIEESE, o salário compatível com a manutenção do trabalhador e sua família é algo em torno de R$ 2.000,00. No entanto, temos um salário mínimo de R$ 510,00. Os pisos salariais das categorias chegam a pouco mais do que isso. É muito pouco. É a prova cabal de que a mercadoria força de trabalho está muito aquém do seu valor real. O trabalhador está recebendo mais ou menos a quarta parte do que deveria receber mensalmente pelo trabalho que realiza. Por isso é necessária a consciência da classe que não é política governamental que vai recuperar o poder de compra dos salários. Somente a luta da classe, com independência dos patrões e dos governos, poderá mudar este quadro.
* Paiva Neves é dirigente do Sindicato dos Sapateiros do Ceará e membro do Comitê Central do PCB e de seu Comitê Regional no Ceará

28/03/2010

ENTREVISTA com Antonio Carlos Mazzeo

O Vôo de Minerva – A construção da política, do igualitarismo e da democracia no Ocidente antigo

1- O senador Cristovam Buarque (PDT), diante dos recentes escândalos de corrupção e uso indevido de verbas por deputados e senadores, insinuou em entrevista que um plebiscito para fechar o Congresso poderia ser levado adiante por clamor popular. O Congresso, de acordo com o pensamento político grego, é essencial para a manutenção da democracia?

No meu ponto de vista esta é uma afirmação perigosa e inconsequente, pois indica uma profunda inconsistência teórico-política e demonstra uma grande incompreensão do que é atuar nas contradições onto-negativas da política e qual o papel da democracia, num Estado de cariz burguês. No atual momento político do país o Congresso garante o funcionamento da vida institucional democrática e dos direitos. Se não há uma correlação de forças onde os trabalhadores possam ter hegemonia para construir uma outra forma societal, uma proposta como esta pressupõe intrinsecamente um golpe de Estado. Isso deve ser duramente repudiado.

A questão está no que devemos fazer para avançar na representatividade e na legitimidade de nossos parlamentares. Teríamos que pensar em ações e medidas políticas que garantissem o avanço de uma democracia substantiva, a partir de uma ampla participação popular nos processos decisórios do país e onde as eleições fossem o resultado de uma efetiva presença dos trabalhadores na vida nacional. Devemos criar condições para ampliar os espaços na midia para os debates das questões de interesse nacional, deveríamos optar pelo financiamento público das campanhas eleitorais e reforçar o amplo debate das propostas programáticas dos partidos políticos. Se a votação fosse nos partidos em listas partidárias flexíveis, reforçando os compromissos programáticos a representação parlamentar sairia muito mais fortalecida e legitimada. Devemos pensar numa reforma política de fundo, optar pelo unicameralismo, acabar com existência anacrônica do senado e reforçar a Câmara dos Deputados, dando a ela qualidade, fortalecendo o elemento programático do processo eleitoral.

2- Em que ponto o conceito de democracia que surge com os gregos ainda se assemelha ao conceito de democracia que temos hoje? E em que ponto eles divergem?

O ser-precisamente-assim dos fenômenos histórico-sociais, como dizia Lukács, não é meramente um problema de antíteses metodológicas, mas o resultado de uma indivisível e contraditória unidade dialética, do modo como se apresentam as contradições entre as forças sócioeconômicas que operam em um determinado momento histórico. Então, mesmo que possam haver identidades entre o conceito antigo e o contemporâneo de democracia, eles são produtos de fenômenos historico-ontológicos diversos. A democracia ateniense resultou de uma sociedade agrária e do trabalho escravo que emancipou o extrato dirigente da pólis e possibilitou a ele pensar e a fazer política. Daí o forte vínculo entre escravidão e democracia. Também há o fato dessa democracia ser restrita aos que eram considerados cidadãos: os homens e excluia os escravos, as mulheres, as crianças e os estrangeiros. A democracia contemporânea, por sua vez, é mais genérica e mais ampla, resultado da Revolução Burguesa e da sociedade civil, definida por Marx como burgerliche Geselschaft – sociedade burguesa. Por outro lado, o que há de semelhante entre as duas democracias é que ambas regem a desigualdade, são produtos de sociedades desiguais. Os processos de participação popular foram resultado de pressões populares; na Grécia, do campesinato, e no capitalismo moderno, ela é produto das relações sociais capitalistas, das lutas do proletariado e do conjunto dos trabalhadores. A democracia cria no plano formal uma igualdade perante o Estado e às leis. No plano legal ou abstrato todos as pessoas são iguais. Mas no plano concreto das relações sociais, são desiguais. Também no Mundo Antigo acontecia isso: os camponeses podiam votar na Agorá, mas na realidade concreta, da inserção social e na produção, havia desigualdade, camponeses com mais ou menos dinheiro e poderosas oligarquias. No capitalismo, a democracia aparece como resultado de um “céu político” construído pelo Estado burguês onde também ali, há uma igualdade genérica, mas onde no plano das relações sociais engendradas pela divisão social do trabalho e pelas relações sociais de produção, o indivíduo aparece como cidadão de vida pública e burguês ou proletário de vida privada.

3- É possível dizer por que o conceito de democracia surge naquele momento na Grécia? E por que vai ser um conceito com tamanha difusão e longevidade?

Havia uma intensa e permanente luta política, a stasis. Antes disso, desde a emergência do campesinato como forca política e econômica, no período arcaico, essa classe pressiona a aristocracia a ponto de derrubar a monarquia. E desta emergência camponesa surgem novas formas de representação política. Desse processo surgem as tiranias (que não tinham o sentido dos governos opressores de hoje) que preparam a Grécia, particularmente Atenas, para a presença permanente dos camponeses na vida política e social da pólis. Nesses governos ocorrem várias mudanças importantes, tanto no plano econômico como no social, entre elas a forma de organização do exército que passa de aristocrático para “popular”, surge o exército dos hoplitas, os camponeses que participam militarmente do exército da pólis, desde que possam comprar suas armas, seu escudo, seu capacete e suas coraças de guerra e que lutam coletivamente. Com esta forma de organização, reforça-se a noção de igualdade, de solidariedade e de isonomia, a idéia de “espírito comunal” Mas a democracia antiga só pode eclodir quando o campesinato perde força econômica, a escravidão emerge como elemento central e a pólis ateniense torna-se uma talassocracia imperialista. Assim, pólis passa a ter um caráter aristocrático mais forte, centrada nos que possuem escravos. Quando a burguesia aparece como classe ela vai buscar referências na história, em sociedades onde existiram formas sociais desiguais, reguladas por leis isonômicas. A burguesia, quando volta ao passado e “olha” a experiência dos antigos gregos, não copia, mas recria outra democracia, mais adaptada aos seus interesses.

Mas essa democracia também se esfuma na vida material já que o ser-precisamente-assim do capitalismo não é igualitário. E aí, qualquer ilusão idealista de identidade com a experiência histórica vivida na antiguidade cai por terra exatamente no plano da realidade, pois jamais no capitalismo o trabalhador foi dono dos meios de produção, como o eram os camponeses atenienses, quer dizer, o ser social que emerge da estrutura capitalista é aquele que vende sua força de trabalho ao dono dos meios de produção e não pode ser o camponês da pólis que troca suas mercadorias com a liberdade igualitária.

4- A noção de igualitarismo surge na Grécia clássica, com a Filosofia?

O “sentimento igualitário” é tão antigo quanto o homem. Mas no sentido ocidental o igualitarismo surge na Grécia arcaica, por volta do século VIII a.C. e vai até o século V, na Grécia clássica, quando então subordina-se à democracia. O igualitarismo tem um vínculo estreito com o pensamento filosófico jônio. Os jônios projetam a pólis no universo, isto é, o universo é entendido a partir dos elementos igualitários presentes na pólis. Verificamos esse vínculo no pensamento de Anaximandro, para quem a “substância única” não encontra-se na água nem no ar, mas no infinito, na qualidade infinita da matéria, da qual todas as coisas são originárias e na qual tudo se dissolve quando o cíclo estabelecido por uma lei necessia termina. Para esse filósofo, tal princípio que envolve e governa todas as coias é imortal e indestrutível. Para esse pensador o universo é animado por um eterno movimento. Os elementos físicos que o compõem são igualitários, nenhum é maior ou mais importante que o outro, sendo que esses elementos se equilibram contraditoriamente: molhado e seco, escuro e claro, frio e quente. Quer dizer, no plano filosófico pensava-se o universo de acordo com o que ocorria na pólis - o igualitarismo surgido das lutas sociais.

5- O igualitarismo, como pensado pelos gregos, só vale para o contexto social da época ou pode ser aplicado à nossa sociedade?

A noção de igualitarismo sempre existiu, mas com formas ideo-históricas diferentes. Mesmo quando pensamos o mundo na remota antiguidade, por exemplo, o das sociedades palaciais, observamos tentativas de explicar o mundo a partir do igualitarismo, ainda que mítico, permeado por uma consciência mítico-religiosa, onde o protagonismo desse igualitarismo não era dos homens mas dos deuses em favor dos homens. Esse tipo de consciência de si existente nessas sociedades ditas palaciais, expressava suas formas sócio-metabólicas de reprodução da vida e de apreesão da realidade. Essas eram sociedades camponesas, tributárias a um tipo de Estado onde um rei-deus fazia o papel de intermediação entre os homens e a deidade. Nesse sentido, a própria existência de uma sociedade camponesa colocava em sua forma de coesão social, o princípio igualitário. Mas havia a questão da legitimidade do grupo dirigente, em geral uma nobreza que vivia dos tributos sociais. De modo que era socialmente necessário existir uma forma ideo-societal que colocasse a perspectiva da igualdade. Se pegarmos por exemplo, o conjunto de textos sagrados que formam a Torá hebráica/ Velho Testamento dos cristãos, verificamos a expressão de um Deus que toma como iguais todos os judeus, o “povo eleito”. Já com o helenismo, desenvolve-se uma noção de igualitarismo mais universalizante, como ocorre no cristianismo – em que um Deus salvador (através da imolação de seu filho) transforma toda a humanidade em “povo eleito”, redimindo-a coletivamente.

Já o igualitarismo resultante da Revolução Burguesa será baseado tanto na concepção laica e radical, em geral de origem pequeno-burguesa, como na dos núcleos de proletários e de camponeses. Se pensarmos na Revolução Inglesa de Cromwell, por exemplo, verificamos a presença de um núcleo igualitarista em seu exército revolucionário. Portanto, o igualitarismo contemporâneo nasce com a Revolução Burguesa e esse igualitarismo vai dar origem inclusive ao socialismo e ao comunismo.

6- O senhor tenta mostrar no livro “O Vôo de Minerva” como a política aparece como fator de mediação e ordenação da vida social no mundo antigo. Ela ainda tem este papel hoje? De que maneira?

Sim. Como vimos, a política resulta da luta social e da desigualdade. A política só pode nascer porque surge o igualitarismo. Ela regula as lutas sociais, é uma forma de organizar a desigualdade e o conflito. A própria explicação mítica do seu surgimento nos da essa dimensão, a partir do mito de Prometeu que rouba o fogo e o conhecimento dos deuses para dar aos homens e é severamente punido por Zeus. Ele é acorrentado a uma montanha nos confins do universo onde todos os dias um abutre devora seu fígado. Mas ao mesmo tempo em que pune Prometeu por ter amado os homens como deuses, Zeus olha a humanidade e sabe que é preciso dar condições para que ela se regule, já que tendo o conhecimento e a técnica pode destruir a si mesma. Zeus então dá aos homens a política, para que possam regular os conflitos e as desigualdades.

Também no mundo contemporâneo a política regula a desigualdade e controla os conflitos, e há nela mais elementos de controle do que de emancipação. Regula a desigualdade para manter e não para romper a estrutura da burgerliche Geselschaft. Se, de um lado, a política joga um papel “positivo” na emancipação institucional da sociedade, na emancipação política dos homens, por outro lado ela encontra seu limite na sua própria forma, porque a política expressa o plano da cidadania (também ela burguesa), e que por seu ser-precisamente-assim, é incompatível com um projeto que vá para além daquele presente na sociabilidade burguesa.

7- O senhor escreve, no livro, que para Sócrates e Platão, a democracia destrói o igualitarismo. De que forma isto ocorreria?

A democracia tem mais condição de regular a desigualdade, então incorpora o igualitarismo em seu interior. A democracia ateniense realiza uma “inclusão excludente”, exclui os escravos, de um lado e de outro, subordinam os camponeses às oligarquias. Nesse sentido, a democracia da Grécia Antiga é altamente manipulatória. Platão no Górgias é radical em vincular a degradação da sociedade ateniense à democracia e por meio das “palavras” de Sócrates acusa Péricles como o responsável pela transformação dos atenienses em pessoas ávidas, ociosas e corruptas.

No caso da democracia moderna, ela incorpora o igualitarismo, mas o coloca no plano abstrato. Na democracia da burgerliche Geselschaft, a igualdade de direitos – inclusive a da distribuição dos meios de consumo, é, em todo momento, um corolário da distribuição das próprias condições de produção, quer dizer, quando o ser-humano esta apartado (alienado) de seu próprio produto, resultado de sua praxis essencial, ele não pratica o igual, mas sim um “tipo” de igualitarismo que aliena o homem de si. A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular, mas sim o conjunto das relações sociais, que na sociabilidade burguesa, aparece fragmentada. A democracia na sociedade capitalista é a expressão superestrutural das próprias formas materiais que reproduzem a sociabilidade burguesa. No capitalismo há uma “socialização” intrínseca que é posta por um processo produtivo realizado socialmente. Mas esta produção social se dá no plano de uma produção genérica, já que a apropriação do que é produzido socialmente não é realizada plenamente pelos que produzem a riqueza, quer dizer, pelos trabalhadores. Isso significa dizer que no plano material da vida, o trabalhador recebe apenas parte e, diga-se, a menor parte, do que produziu socialmente. Produz-se desse modo, a separação entre a vida genérica e a vida material não somente de cada indivíduo, mas também da totalidade dos homens. Ora, vemos aí, que nessa fragmentação ocorre a separação entre trabalho e riqueza. Grosso modo, podemos dizer que essa é a base material da superestrutura posta pela democracia da burgerliche Geselschaft. Também essa é uma democracia altamente manipulatória.

8- Há alguma relação entre o pensamento de Sócrates e Platão de que a democracia destrói o igualitarismo e os velhos embates entre capitalistas e comunistas, de que o capitalismo não permite a igualdade e o comunismo impossibilita a liberdade (ligada à democracia)?

Sócrates e Platão, tinham como referências as velhas leis arcaicas que regulavam a sociedade. Sócrates dizia que a democracia estava corrompendo os valores citadinos. Para ele, os cidadãos haviam perdido a noção do “espírito coletivo” da pólis do qual todos faziam parte. Na visão socrático-platônica, a virtude era produto da vida comunitária, passada pelo convívio social e pela apreensão dos conteúdos emanados pelo “espírito da pólis”. Nesse sentido, a virtude jamais poderia ser vendida ou comprada. Daí, na visão socrática, serem os sofistas, filósofos errantes que vendiam seus conhecimentos aos filhos das famílhas abastadas, a síntese da decadência, como evidencia Platão no Protágoras, quando Sócrates chama os sofistas de vendedores varejistas de mercadorias que alimentam a alma.

E é esse o sentido de sua defesa, quando é acusado de corromper a juventude. Sócrates vai dizer, em seu julgamento, que nunca vendeu seus conhecimentos, mas sempre os deu como obrigação de alguém que tem consciência de ser preciso transmitir os fundamentos que regem a vida coletiva. Nessa visão, vender o conhecimento era vender a própria virtude. Aí reside a contraposição socrática do homem coletivo contra o homem privado, que emerge na democracia. NaRepública, Platão irá dizer que todos os males provinham do comércio e da propriedade privada. Para esses filósofos da pólis, a educação deveria ser a Paidéiapedagógica de um modelo civilizatório, onde o núcleo seria a construção de uma política ética.

Quanto ao embate sobre democracia, capitalismo e comunismo, podemos dizer que se inexistem “identidades” reais entre a visão desses filósofos e a dos críticos da sociabilidade burguesa. Marx enfatizou a impossibilidade de se analisar as sociedades humanas fora de seu escopo histórico-concreto. O capitalismo é uma forma econômico-social baseada na produção de mercadorias, que tem como pressuposto o trabalho livre e assalariado e a propriedade privada dos meios de produção. Além disso, a condição do trabalho livre e o alto grau da individualidade da pessoa, as relações sociais engendradas pela sociabilidade capitalista, a sofisticação científica e técnica dessa sociabilidade, irão permitir o afloramento de uma consciência jamais vista nas formas sociais anteriores. Somente no capitalismo a crítica social aparece junto com uma forma de consciência que possibilita a construção de uma proposta alternativa à socialidade burguesa, que vem com as idéias socialistas e comunistas.

O capitalismo apresenta limites para a liberdade em seus aspectos nodais: a propriedade privada dos meios de produção e a expropriação da mais-valia do trabalhador. Essa condição gera uma forma superestrutural que expressa essa determinação material de reprodução de si do capitalismo, que são as formas de representação que emanam da sociabilidade burguesa (democracia, direitos e instituições, etc), e que constituem os elementos regulatórios que fazem parte de seu aparelho ideo-político. Daí, a crítica de Marx ser nucleada na necessidade de coletivização dos meios de produção que garantiria a mais ampla liberdade, pois além desses meios de produção, (incluindo-se aí a propriedade coletiva da terra) e da socialização do produto do trabalho de todos, a sociedade comunista estinguiria toda a estrutura do Estado, trazendo-o para o meio da sociedade, quer dizer, a gestão social passaria para a própria sociedade. Ressaltemos que a humanidade não vivenciou ainda a experiência do comunismo. O que tivemos até hoje foram experiências socialistas que encontraram um enorme gama de problemas em sua aplicação, um deles, foi exatamente a hipertrofia do aparelho estatal, dadas as condições histórias dessas experiências e que, pelos limites de uma entrevista, não poderemos aprofundar.

De qualquer modo, entendo que mesmo com seus graves problemas, sendo que um dos maiores foi a restrição de liberdades civis, essas experiências apresentaram grandes positividades, no âmbito de conquistas sociais que não podemos desconsiderar, se quisermos pensar ainda o futuro do projeto do socialismo e do comunismo.

10- No livro, o senhor defende a hipótese de que o ‘Ocidente antigo’ é resultado de um longo processo de absorção da cultura oriental. Que conceitos (ou que comportamentos) orientais foram importados pelo ‘Ocidente antigo’? De que sociedades, em especial, veio esta influência?

O conceito inicial é de que o Oriente, até por ter construído as primeiras formas de civilização, sempre manteve uma estreita relação com o Ocidente. Relação interativa e permanente, na medida em que as sociedades palaciais, no período do bronze, surgem e se relacionam com o Ocidente e o influenciam. Se pensarmos naquele período, as sociedades mais importantes eram a egípicia e a hitita, e estas sociedades hegemônicas criaram um “modelo” de sociabilidade que irá influenciar também o Ocidente. Por exemplo, Creta é o resultado direto dessa forma societal posta pelo Oriente, assemelha-se às sociedades palaciais orientais, sem ter seu brilho e luxo. Através do mar Mediterrâneo, constrói-se uma integração onde o Ocidente absorve a civilização oriental sintetizando uma cultura euro-mediterranea, no que chamo, seguindo as formulações pioneiras de Gordon Childe, de longo processo de mediterranização da cultura oriental. Essa interação dialética permanente nunca deixará de existir, ao menos até os finais da Idade Média. Há um vínculo umbilical entre Ocidente e Oriente. O que é o helenismo a não ser esse processo de permanente integração? A cultura Ocidental vai para o Oriente e quando retorna ao Ocidente, como síntese, enquanto ruptura e continuidade, traz em seu bojo, e pelo Mediterrâneo, o cristianismo

11- A volta ao mundo político grego foi a forma que o senhor encontrou de embasar uma pesquisa maior, que pretende entender a burguesia que surge no século XVI. Que relação é esta que o senhor foi buscar?

Fui buscar as origens da democracia e do igualitarismo, como se desenvolveram, quais foram suas expressões históricas e intelectuais e, mais tarde, como a burguesia revisita essa experiência e cria uma nova expressão cultural tipicamente burguesa.

Estou começando a escrever um livro sobre o conceito de Virtus como fundamento do igualitarismo burguês, exatamente com produto histórico da construção de umacosmologia burguesa, mas ainda vai levar um tempinho.

acmazzeo@superig.com.br