17/07/2009

CARTA ÀS TESES DO PCB

Por: Lincoln Penna
Rio, 02 de Julho de 2009
Prezado Camarada Ivan
Li as Teses do PCB com entusiasmo. Escritas numa linguagem clara e precisa, o que facilita o entendimento e as eventuais críticas do observador interessado em interagir com os quadros deste partido de tantas glórias, sempre na defesa da classe operária e dos interesses nacionais. Gostaria de ressaltar, de início, duas observações positivas: a quebra da lógica do etapismo, cuja herança vem desde o VI Congresso da Internacional Comunista (IC), quando foi sustentado, em fins dos anos de 1920, que os países de passado colonial não poderiam adotar a perspectiva de uma revolução socialista antes de completarem as tarefas históricas com vistas a realizarem plenamente as relações capitalistas de produção nesses territórios. E ao longo da trajetória do partido essa premissa se tornou quase insubstituível nos documentos orgânicos e nas declarações políticas dos comunistas. Anos antes, é preciso dizer, Stálin proclamara a tese da revolução num só país, redirecionando o papel da IC de órgão promotor da revolução mundial para instrumento de defesa da Revolução Bolchevique, em face das dificuldades por que passava a Grande Revolução de Outubro de 1917.
A outra observação positiva é a da luta anticapitalista, aplicada aos tempos atuais, algo que precisa ser cada vez mais proclamado como uma necessidade da humanidade como um todo. A crescente manifestação a favor da preservação do meio ambiente profundamente afetado pela ação poluidora e devastadora dos interesses de uma exploração predatória do nosso eco sistema planetário é, indiscutivelmente, uma clara demonstração de como tem se expandido a consciência ecológica na direção certa, a de identificar os capitalistas de toda sorte, agentes dessa ação. Essa atitude de identificar o capitalismo e as práticas capitalistas como o obstáculo a ser combatido foi escamoteado exatamente em função das etapas da revolução. Ora, se a revolução não era socialista, como sustentavam os etapistas, os obstáculos a serem removidos seriam as estruturas que emperrariam o desabrochar pleno das relações capitalistas de produção. Assim, o latifúndio e o imperialismo apareciam como responsáveis por todos os males, e o modo de produção que os embalavam, o capitalista, era colocado num plano secundário.
Contudo, tenho algumas observações adicionais a fazer.
Uma das questões refere-se ao papel mesmo da revolução nos nossos tempos. O caráter anticapitalista que deve orientá-la coloca um problema. Como desenvolvê-la no plano de uma formação social isolada, portanto nacional? O sentido anticapitalista e, portanto, socialista, implica na absoluta necessidade de tornar internacional qualquer processo radical de ruptura com o domínio do grande capital. Por outro lado, a direção desse processo revolucionário deve obedecer a forças que constituem o mundo do trabalho cada vez mais diversificado. Essa situação não dilui o peso do proletariado, mas amplia a sua configuração como classe no processo de produção igualmente ampliado pela expansão da tecnologia e das novas ocupações surgidas pela intensidade da produção.
E o sentido anticapitalista põe em discussão a necessidade de se redefinir a democracia, cujos limites políticos e institucionais acabam tornando-a subordinada ao capitalismo impedindo, assim, a ampliação de sua dimensão social, única possibilidade para a implantação verdadeira de uma sociedade radicalmente democrática. A convivência da democracia burguesa com o capitalismo não interessa aos que vivem excluídos dos bens criados pelo trabalho. A reconquista das liberdades democráticas no passado recente correspondeu a um momento de luta contra o regime autoritário no Brasil e em outras sociedades submetidas à ditadura das classes dominantes antipovo. Contudo, essa situação se encontra superada e a perspectiva é de se alcançar seu mais completo horizonte, a democracia igualitária, o comunismo, como objetivo maior e duradouro da História da Humanidade.
Cabe uma última reflexão. Para se chegar a esse patamar do igualitarismo radical, da sociedade sem classe, é imprescindível a existência de uma etapa socialista nos moldes de uma ditadura da classe operária, mesmo ampliada pela multiplicidade de sua representação, presentemente? Ou numa revolução de dimensões mundiais, cujo processo caberá a cada povo implementar em seus espaços nacionais, essa etapa socialista, também passaria a ser dispensada, uma vez removidas as resistências das classes representativas dos interesses do capital?
E mais. Com travar a batalha ideológica que produziu uma consciência da acumulação do dinheiro por parte dos cidadãos, cada vez mais alheios e distantes do altruísmo e da fraternidade universal, e ansiosos pelo ganho a qualquer custo e preço, submetidos à lógica do capital profundamente impregnado em suas vidas.?
Não tenho respostas para essas e muitas outras questões, mas perguntas. Espero que elas sejam instigantes, porque, como dizia Paulo Freire, o grande educador popular, a pergunta é sempre mais importante que as respostas. Elas nos ajudam a pensar e nos obrigam a estarmos atentos à realidade mutante e, por isso mesmo, repleta de desafios. Vencê-los é uma tarefa revolucionária.
Um afetuoso abraço do
Lincoln Penna

15/07/2009

A LUTA A PARTIR DOS LOCAIS DE TRABALHO, MORADIA, ESTUDO

De 10 a 14 de agosto a Intersindical estará em diversos estados na Jornada Nacional de Luta .
Os porta-vozes do governo dentro do movimento sindical como a CUT, Força Sindical , CTB entre outros comemoram a retomada da produção registrada no último período como se isso tivesse alguma conseqüência positiva real para a classe trabalhadora.
Mesmo com a pequena retomada na produção e a diminuição do desemprego, as demissões não pararam e a rotatividade aumenta. Isso quer dizer que os patrões fizeram as demissões em massa no final de 2008 e primeiro trimestre de 2009 e em alguns setores retomam as contratações, só que agora com salários menores.
Exatamente a estratégia patronal que se confirmou. Demitir, diminuir salários, continuar a demitir e depois numa próxima rodada contratar por salários inferiores. A maior parte das centrais sindicais se tornaram mediadoras dos interesses do Capital e dessa maneira impuseram nessa crise mais uma derrota a setores importantes da nossa classe, com os acordos que passaram pela redução salarial, banco de horas, suspensão dos contratos de trabalho (lay-off) .
A partir dessa frágil retomada, o Capital vai exigir muito mais de quem ainda não perdeu seu emprego. Os índices oficiais do próprio governo e dos setores patronais mostram que a intensificação no ritmo de trabalho aumentou, ou seja, os trabalhadores agora trabalham por três, as empresas impõem horas-extras e as condições de trabalho pioram.
Mais uma vez parte do movimento sindical e popular tenta ocultar a realidade da classe trabalhadora, tendo como objetivo ajudar o capital a retomar seus lucros.
Em março os atos promovidos pelas centrais sindicais exigiam a mudança da política econômica e a diminuição da taxa de juros, o resultado desse silencio em relação ao que o Capital está operando no processo de produção, foi a medida do governo Lula que garante a isenção do IPI para os carros e os produtos da linha branca.
DIMUNUIR A TAXA DE JUROS PARA ESCONDER A TAXA DE LUCRO DO CAPITAL VINDA DA EXPLORAÇÃO ?
Os lucros extraordinários que obtiveram as grandes multinacionais antes de sua crise, continuam tendo sua base real no processo de exploração da força de trabalho da classe trabalhadora. A crise de agora é um bom exemplo, pois demonstra o processo cíclico e periódico pelo qual o Capital percorre. Para ganhar a concorrência as empresas investem cada vez mais na parte constante de seu capital (equipamentos cada vez mais modernos e novas tecnologias) e menos em sua parte variável e produtora de valor (a força de trabalho).
Mas a grande maioria das centrais sindicais não se arrisca em discutir que mesmo com a queda da taxa de lucro, as mercadorias produzidas estão carregadas de valor e portanto, de lucro a partir do trabalho da classe trabalhadora. Enquanto isso se movimentam em defesa do governo através de atos contra a CPI da Petrobrás, uma ação oportunista da direita que privatizou tudo quanto pode mas não discutem que o governo Lula tem implementado uma política privatista a seu modo.
Através das Parcerias Pública Privada, sem contar que a própria Petrobrás já está em boa medida nas mãos do capital privado através de ações na Bolsa de Valores seja no Brasil e fora daqui como nos EUA e cumpre muitas vezes um papel imperialista em países da América Latina como a Bolívia.
POR ISSO A INTERSINDICAL ESTARÁ NA SEMANA DE 10 A 14 DE AGOSTO ORGANIZANDO PARALISAÇÕES NA PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
Para além do Banco Central, mais do que marchas é preciso retomar a luta a partir do local onde o Capital ataca nossa classe.
Por isso entre 10 e 14 de agosto metalúrgicos, sapateiros, operários na construção civil, servidores públicos, bancários, entre tantas outras categorias que se organizam na Intersindical estarão em mobilização em defesa do emprego, dos salários e direitos.
Nos diversos estados onde estamos organizados a preparação da jornada de agosto já começou. A nossa 2◦ publicação a revista “ Crise, a Classe no olho do furacão” tem sido um importante instrumento de formação e organização da jornada.
Juntos com os setores do movimento sindical e popular que não renderam a política de parceria com os patrões e governo estamos organizando nos estados e regiões a semana da jornada nacional de lutas.
Não nos pauteremos pelas divergências que não impedem a unidade para essa mobilização, como também não nos submeteremos a atos que têm o objetivo de ocultar da classe trabalhadora a verdadeira luta que temos que travar nesse período.
POR NENHUM DIREITO A MENOS
PARA AVANÇAR NAS CONQUISTAS ACUMULAR FORÇAS NA JORNADA DE LUTA RUMO A GREVE GERAL
AQUI ESTÁ A INTERSINDICAL.

14/07/2009

Sarney, o homem incomum

Posted by Leandro Fortes
Há anos, nem me lembro mais quantos, os principais colunistas e repórteres de política do Brasil, sobretudo os de Brasília, reputam ao senador José Sarney uma aura divinal de grande articulador político, uma espécie de gênio da raça dotado do dom da ponderação, da mediação e do diálogo. Na selva de preservação de fontes que é o Congresso Nacional, estabeleceu-se entre os repórteres ali lotados que gente como Sarney – ou como Antonio Carlos Magalhães, em tempos não tão idos – não precisa ser olhada pelas raízes, mas apenas pelas folhagens. Esse expediente é, no fim das contas, a razão desse descolamento absurdo do jornalismo brasiliense da realidade política brasileira e, ato contínuo, da desenvoltura criminosa com que deputados e senadores passeiam por certos setores da mídia.
Olhassem Sarney como ele é, um coronel arcaico, chefe de um clã político que há quatro décadas domina a ferro e fogo o Maranhão, estado mais miserável da nação, os jornalistas brasileiros poderiam inaugurar um novo tipo de cobertura política no Brasil. Começariam por ignorar as mentiras do senador (maranhense, mas eleito pelo Amapá), o que reduziria a exposição de Sarney em mais de 90% no noticiário nacional. No Maranhão, a família Sarney montou um feudo de cores patéticas por onde desfilam parentes e aliados assentados em cargos públicos, cada qual com uma cópia da chave do tesouro estadual, ao qual recorrem com constância e avidez. O aparato de segurança é utilizado para perseguir a população pobre e, não raras vezes, para trucidar opositores. A influência política de Sarney foi forte o bastante para garantir a derrubada do governador Jackson Lago, no início do ano, para que a filha, Roseana, fosse reentronizada no cargo que, por direito, imaginam os Sarney, cabem a eles, os donatários do lugar.
José Sarney é uma vergonha para o Brasil desde sempre. Desde antes da Nova República, quando era um político subordinado à ditadura militar e um representante mais do que típico da elite brasileira eleita pelos generais para arruinar o projeto de nação – rico e popular – que se anunciava nos anos 1960. Conservador, patrimonialista e cheio dessa falsa erudição tão típica aos escritores de quinta, José Sarney foi o último pesadelo coletivo a nós impingido pela ditadura, a mesma que ele, Sarney, vergonhosamente abandonou e renegou quando dela não podia mais se locupletar. Talvez essa peculiaridade, a de adesista profissional, seja o que de mais temerário e repulsivo o senador José Sarney carregue na trouxa política que carrega Brasil afora, desde que um mau destino o colocou na Presidência da República, em março de 1985, após a morte de Tancredo Neves.
Ainda assim, ao longo desses tantos anos, repórteres e colunistas brasileiros insistiram na imagem brasiliense do Sarney cordial, erudito e mestre em articulação política. É preciso percorrer o interior do Maranhão, como já fiz em algumas oportunidades, para estabelecer a dimensão exata dessa visão perversa e inaceitável do jornalismo político nacional, alegremente autorizado por uma cobertura movida pelos interesses de uns e pelo puxa-saquismo de outros. Ao olhar para Sarney, os repórteres do Congresso Nacional deveriam visualizar as casas imundas de taipa e palha do sertão maranhense, as pústulas dos olhos das crianças subnutridas daquele estado, várias gerações marcadas pela verminose crônica e pela subnutrição idem. Aí, saberiam o que perguntar ao senador, ao invés de elogiar-lhe e, desgraçadamente, conceder-lhe salvo conduto para, apesar de ser o desastre que sempre foi, voltar à presidência do Senado Federal.
Tem razão o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao afirmar, embora pela lógica do absurdo, que José Sarney não pode ser julgado como um homem comum. É verdade. O homem comum, esse que acorda cedo para trabalhar, que parte da perspectiva diária da labuta incerta pelo alimento e pelo sucesso, esse homem, que perde horas no transporte coletivo e nas muitas filas da vida para, no fim do mês, decidir-se pelo descanso ou pelas contas, esse homem comum é, basicamente, honesto e solidário. Sarney é o homem incomum. No futuro, Lula não será julgado pela História somente por essa declaração infeliz e injusta, mas por ter se submetido tão confortavelmente às chantagens políticas de José Sarney, a ponto de achá-lo intocável e especial. Em nome da governabilidade, esse conceito em forma de gosma fisiológica e imoral da qual se alimenta a escória da política brasileira, Lula, como seus antecessores, achou a justificativa prática para se aliar a gente como os Sarney, os Magalhães e os Jucá.
Pelo apoio de José Sarney, o presidente entregou à própria sorte as mais de seis milhões de almas do Maranhão, às quais, desde que assumiu a Presidência, em janeiro de 2003, só foi visitar esse ano, quando das enchentes de outono, mesmo assim, depois que Jackson Lago foi apeado do poder. Teria feito melhor e engrandecido a própria biografia se tivesse descido em São Luís para visitar o juiz Jorge Moreno. Ex-titular da comarca de Santa Quitéria, no sertão maranhense, Moreno ficou conhecido mundialmente por ter conseguido erradicar daquele município e de regiões próximas o sub-registro civil crônico, uma das máculas das seguidas administrações da família Sarney no estado. Ao conceder certidão de nascimento e carteira de identidade para 100% daquela população, o juiz contaminou de cidadania uma massa de gente tratada, até então, como gado sarneyzista. Por conta disso, Jorge Moreno foi homenageado pelas Nações Unidas e, no Brasil, viu o nome de Santa Quitéria virar nome de categoria do Prêmio Direitos Humanos, concedido anualmente pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República a, justamente, aqueles que lutam contra o sub-registro civil no País.
Em seguida, Jorge Moreno denunciou o uso eleitoral das verbas federais do Programa Luz Para Todos pelos aliados de Sarney, sob o comando, então, do ministro das Minas e Energia Silas Rondeau – este um empregado da família colocado como ministro-títere dentro do governo Lula, mas de lá defenestrado sob a acusação, da Polícia Federal, de comandar uma quadrilha especializada em fraudar licitações públicas. Foi o bastante para o magistrado nunca mais poder respirar no Maranhão. Em 2006, o Tribunal de Justiça do Maranhão, infestado de aliados e parentes dos Sarney, afastou Moreno das funções de juiz de Santa Quitéria, sob a acusação de que ele, ao denunciar as falcatruas do clã, estava desenvolvendo uma ação político-partidária. Em abril passado, ele foi aposentado, compulsoriamente, aos 42 anos de idade. Uma dos algozes do juiz, a corregedora (?) do TRE maranhense, é a desembargadora Nelma Sarney, casada com Ronaldo Sarney, irmão de José Sarney.
Há poucos dias, vi a cara do senador José Sarney na tribuna do Senado. Trêmulo, pálido e murcho, tentava desmentir o indesmentível. Pego com a boca na botija, o tribuno brilhante, erudito e ponderado, a raposa velha indispensável aos planos de governabilidade do Brasil virou, de um dia para a noite, o mascate dos atos secretos do Senado. Ao terminar de falar, havia se reduzido a uma massa subnutrida de dignidade, famélica, anêmica pela falta da proteína da verdade. Era um personagem bizarro enfiado, a socos de pilão, em um jaquetão coberto de goma.
Na mesma hora, pensei no povo do Maranhão.

13/07/2009

CRISE ECONÔMICA E VIGÊNCIA DO NEOLIBERALISMO

Renato Nucci Junior (Militante e dirigente do Partido Comunista Brasileiro)

Apresentação
A estatização da General Motors (GM) pelo governo dos Estados Unidos, que passará a deter 60% das ações da empresa, soma-se a medidas semelhantes tomadas em 2008 desde o estouro da crise econômica mundial, que levou à estatização de grandes instituições bancárias e financeiras. Ainda que a concordata da GM tenha sido a quarta maior da história dos Estados Unidos, trata-se da primeira no que tange a uma empresa industrial. Além do mais, a concordata da GM e sua estatização são inusitadas, pois a empresa não é qualquer coisa. Por décadas foi o símbolo do poderio industrial e econômico do imperialismo norte-americano, empregando meio milhão de pessoas e liderando a produção automobilística mundial. Sua concordata e estatização pelo governo dos Estados Unidos, portanto, é emblemática, pois se junta a outros sinais que indicam um declínio da economia norte-americana.
Outro aspecto a ser observado na estatização da GM é o de que Barack Obama declarou que não intervirá na administração da empresa. Trata-se de uma estatização temporária com o fito apenas de salvar a GM da falência, recuperá-la financeiramente com farta ajuda do Estado norte-americano, para depois reprivatizá-la. A mesma situação se passa com os bancos privados resgatados pela estatização, que foi usada como forma de impedir o colapso do sistema bancário e financeiro. O recurso à estatização tem visado unicamente salvar os lucros dos acionistas e assegurar superpoderes e polpudos salários e gratificações aos altos quadros administrativos das empresas estatizadas, mas em hipótese alguma garantir os empregos ou usar os lucros para investimentos em saúde, educação, etc.
O fato é que sem titubear a intervenção do Estado, tão criticada pelas classes dominantes por todo o mundo nos últimos trinta anos, foi requerida sob a desculpa de salvar a economia mundial da catástrofe. Enquanto a produção industrial, a especulação financeira e o comércio internacional ofereciam polpudos lucros, a mão invisível do mercado era louvada como a única capaz de gerar e distribuir riqueza por todo o mundo. Mas quando a crise chegou e os lucros despencaram, apelou-se à mão visível do Estado para se evitar uma catástrofe econômica ainda maior.
Essa ação do Estado em todo o mundo tem embalado algumas análises de que o neoliberalismo, com sua litania sobre as virtudes do livre mercado, teria sido definitivamente derrotado. A crise teria tornado evidente e provado como necessária à intervenção do Estado na vida econômica, fazendo ressurgir em diversos círculos políticos, inclusive em setores da esquerda, uma nova estatolatria. Queremos com esse texto questionar a tese de que o neoliberalismo teria entrado em uma crise definitiva.
O neoliberalismo como doutrina e como prática concreta
Para uma melhor compreensão de nosso argumento pensamos que é preciso entender a dupla dimensão do neoliberalismo: como doutrina e como prática política concreta. Como doutrina, o neoliberalismo propugna um retorno ao liberalismo clássico, com a necessidade de se resgatar o princípio do laissez-faire, ou seja, é preciso afastar do mercado qualquer intervenção externa à sua lógica. O mercado possui uma lógica de funcionamento intrínseca e se deixado a si mesmo, sem interferências julgadas “anacrônicas” que possam limitar ou colocar barreiras aos seus movimentos como as regulamentações estatais e a ação sindical, se torna capaz de operar com o máximo de eficiência, produzindo um equilíbrio natural e remunerando os agentes econômicos na proporção de sua contribuição ao ciclo econômico. Para neoliberais como Hayek e Friedman, foi o afastamento de tais princípios, com o acentuado poder adquirido pelo Estado e pelos sindicatos após a Segunda Grande Guerra, os principais responsáveis pela crise fiscal do Estado, bem como pela estagflação (estagnação econômica combinada com inflação) das principais economias capitalistas no início da década de 1970. A saída apontada pelos neoliberais seria reduzir o papel do Estado na economia e o poder dos sindicatos como forma de fazer o capitalismo voltar aos trilhos e a crescer.
Porém, do ponto de vista da prática política, o neoliberalismo nunca se propôs a construir um Estado mínimo em termos absolutos. Como um fenômeno da luta de classes, o neoliberalismo é uma reação política, econômica, social e ideológica do capital contra os trabalhadores. Sua prática política real e concreta consistiu na aplicação de reformas regressivas baseadas em uma idéia genérica de que a liberdade de comércio e de movimentação financeira, que para serem atingidas necessitavam de uma reduzida intervenção estatal, seriam as únicas capazes de retirar a economia capitalista da estagnação em que se encontrava. Essas reformas regressivas têm como foco a desmontagem de todas as conquistas alcançadas pela classe trabalhadora após a Segunda Grande Guerra, baseando-se em uma desregulação das relações capital-trabalho favorável à burguesia, em uma reforma das políticas fiscais e monetárias cujos impactos resultaram em uma diminuição das funções sociais do Estado, com a privatização e/ou desmonte da seguridade social e dos sistemas de saúde e de educação, fim de subsídios diversos que favoreciam o acesso das classes trabalhadoras a bens e serviços públicos essenciais, privatização das empresas estatais e uma restrição do poder e da influência dos sindicatos na vida econômica e social. No caso da América Latina podemos acrescentar as aberturas comerciais e financeiras, que promoveram a desindustrialização e reprimarizaram as economias da região, tornando-as vulneráveis aos interesses imediatos e de curto prazo do capital especulativo, possibilitando a transferência do patrimônio público e privado nacional para o capital estrangeiro
É importante lembrar que o primeiro país a servir como laboratório para a aplicação das políticas neoliberais foi o Chile, após o golpe militar de 1973 articulado pela burguesia interna e apoiado pelos Estados Unidos, cujo comando coube ao general Augusto Pinochet. Isso demonstra que a liberdade reclamada pelos neoliberais não é incompatível com regimes de exceção e ditaduras sanguinárias. Aliás, o ajuste brutal requerido pelas políticas neoliberais com suas reformas regressivas, ao não admitirem espaço para negociação só podem ser aplicados por medidas de força que eliminem qualquer possibilidade de oposição dos trabalhadores e de seus partidos representativos. Fica evidente que a única liberdade admitida pelos neoliberais é a liberdade para os negócios.
Essa tônica autoritária no trato dado por governantes afinados com as políticas neoliberais, porém, não é exclusividade apenas de ditaduras militares. Os governos civis que os substituíram, adotaram igualmente procedimentos autoritários na aplicação de reformas e medidas neoliberais, ao refutarem qualquer espaço de negociação política com os setores populares atingidos. O Estado, sob regimes democráticos formais, foi blindado para impedir qualquer influência dos trabalhadores e das classes populares na definição de políticas públicas que os pudessem atender em seus interesses, através dos mecanismos de representação como os mandatos legislativos e pressões de suas organizações. Uma das formas adotadas para essa blindagem foi a autonomia concedida aos bancos centrais na definição das políticas monetária e fiscais. Essa autonomia colocou os BC’s sob a influência direta dos grandes monopólios bancários e financeiros. No caso brasileiro, outra medida destinada a blindar o Estado de qualquer influência das classes populares na definição das políticas públicas, foi a de criar as agências reguladoras, órgão pelos quais o governo “terceiriza” a regulação e fiscalização dos serviços públicos prestados por empresas privadas ou privatizadas. O resultado prático do neoliberalismo foi o de aumentar a concentração da renda e da riqueza na classe proprietária dos meios de produção, bem como o de fortalecer os grandes monopólios capitalistas privados, enquanto os trabalhadores e as classes populares em seu conjunto assistem à deterioração de suas condições de vida.
Nesse sentido, o objetivo principal do neoliberalismo é o de superar os óbices que dificultavam uma retomada da valorização do capital através das reformas regressivas indicadas acima. O neoliberalismo é um conjunto articulado de medidas destinadas a atacar as conquistas sociais, políticas e econômicas dos trabalhadores, com o fito de recolocar a acumulação de capital em um novo patamar. Um ataque que descamba para uma política de Estado, articulada com os grandes meios de comunicação, tendente a criminalizar as lutas e organizações populares, cujo maior exemplo no Brasil é a perseguição movida ao MST, empreendida através dos aparelhos de coerção estatal: a justiça e a polícia. Por tais motivos afirmamos que o neoliberalismo em hipótese alguma, propôs a formação de um Estado mínimo em termos absolutos. O Estado mínimo defendido pelos neoliberais, só é mínimo no que tange às garantias sociais, trabalhistas, previdenciárias, de montagem de uma rede de saúde e educação de acesso universal. Contudo, do ponto de vista da prática política real e concreta, o “neoliberalismo realmente existente” se pautou pela construção de um Estado máximo para defender os interesses sobretudo do grande capital.
É importante salientar que os conceitos aqui utilizados de Estado máximo e Estado mínimo são impróprios de um ponto de vista marxista, pois o Estado em sua gênese, caráter e função é o de organizar jurídica e politicamente a dominação e exploração de uma classe social sobre a outra. Portanto, não há um Estado que seja em parte capitalista e em parte socialista. Como bem indica Gramsci, é no Estado que se realiza a unidade histórica da classe dominante. Por esse motivo, no capitalismo o Estado é burguês. Porém, mesmo o caráter de classe e a função repressiva do Estado não o imunizaram das influências e determinações da luta de classe, se tornando um espaço em disputa sobre o qual, por um lado, incidiram os trabalhadores para alcançarem todas as suas conquistas sociais, trabalhistas e econômicas, e, por outro, as classes proprietárias dos meios de produção foram obrigadas a fazerem concessões especialmente após a Segunda Grande Guerra, para não se verem ameaçadas pela revolução proletária. Assim, a dicotomia utilizada pelos neoliberais e quejandos sobre Estado máximo e Estado mínimo, manifestam as determinações da luta de classe e o propósito de colocar o Estado completamente a serviço dos interesses da burguesia, tornando-o infenso a uma ofensiva dos trabalhadores destinada a ampliar seus direitos.
A crise reafirma o neoliberalismo
Caracterizarmos acima o neoliberalismo como uma reação das classes proprietárias dos meios de produção à crise de acumulação capitalista do início da década de 1970. Sua prática política se manifestou por meio de reformas regressivas que retiraram e diminuíram as conquistas sociais, trabalhistas e econômicas dos trabalhadores após a Segunda Grande Guerra. A conclusão a que chegamos, portanto, é a de que as políticas de salvamento de bancos e instituições financeiras, cuja ajuda chega agora às indústrias como é o caso da GM, reafirmam a vigência e continuidade do projeto neoliberal e não sua morte.
Se o neoliberalismo em sua prática real e concreta não pretende construir um Estado mínimo em termos absolutos mas em termos relativos, diferindo portanto de seu corpo doutrinário, os pacotes polpudos de ajuda e a estatização dos bancos e instituições financeiras em crise, a nosso ver não resultam em uma negação do neoliberalismo. O que entrou em crise e talvez tenha mesmo morrido, foi o neoliberalismo como doutrina, mas não como prática política a orientar governos por todo o mundo. Se o neoliberalismo em sua concretude aponta para um fortalecimento do Estado no que tange à defesa dos interesses do capital contra o trabalho, significando uma onda de ataques contra os trabalhadores através de uma nova vaga de reformas regressivas, assistimos na atual crise econômica o neoliberalismo ainda se impor.
O caso da GM é emblemático. Ainda que o Estado norte-americano tenha 60% do controle acionário da empresa, com o UAW (United Auto Workers Union), sindicato que representa os trabalhadores da indústria automobilística controlando mais 15% das ações, se prevê que mais de 20 mil postos de trabalho da empresa serão fechados. Outro exemplo pode ser retirado dos bancos, cujos pacotes de ajuda financeira não significaram qualquer garantia de emprego para os seus funcionários, mas, muito pelo contrário, representaram demissões em massa. Essa combinação de ajuda do Estado aos capitalistas em crise, ao preço de demissões em massa, além de uma nova onda de reformas regressivas (na União Européia uma lei debatida no parlamento europeu pode permitir que a jornada de trabalho chegue a 65 horas semanais!), demonstra cabalmente que o capital não possui alternativa capaz de atender aos interesses dos trabalhadores. Mesmo com a profunda crise sofrida pela doutrina neoliberal após o estouro da crise, do ponto de vista prático não aconteceu qualquer reversão no papel que o Estado burguês vem cumprindo nos últimos anos. Ao contrário, os aspectos acima descritos foram acentuados.
O que devem esperar os trabalhadores
Diante da situação exposta, em que o capital enfrenta uma crise que é, por um lado, mais uma de suas crises cíclicas e, por outro, uma crise de proporções estruturais para as quais a burguesia propõe como saída um processo de intensificação da agenda neoliberal pelo uso escancarado do Estado, resta aos trabalhadores o caminho da luta e da organização. Sem nutrir ilusões de um retorno a um passado mítico, o dos “Trinta Anos Gloriosos”, onde a intervenção dos Estados capitalistas notadamente europeus após a Segunda Grande Guerra foi capaz de gerar um ciclo de crescimento econômico que ampliou a participação dos salários na renda nacional e criou o Estado de Bem-estar social, vivemos um contexto histórico completamente distinto.
Em verdade, todas as conquistas dos trabalhadores nos âmbitos político, econômico e social, resultaram da grande força adquirida pelas lutas operárias desde o século XIX; pela existência de grandes partidos comunistas e socialistas com influência de massa capazes de impor ao capital, reformas que tornaram mais civilizadas a exploração do capital sobre o trabalho; pela existência de um campo socialista como pólo de atração e de ameaça à ordem capitalista; pela existência de gigantescas concentrações industriais que reuniam grandes massas operárias de onde o movimento sindical e os partidos de esquerda extraíam sua força política e organizativa; por um padrão fordista de acumulação baseado no crescimento da massa salarial usado como forma de inserção social e visando criar um ambiente social de estabilidade e consumo de massa; e pela existência de Estados capazes de impor uma relativa disciplina sobre o capital privado.
A atual fase do capitalismo não admite um retorno a esse passado. Tentar recuperá-lo seria uma iniciativa vã, pois exigiria retomar um padrão de acumulação superado pela mundialização capitalista impulsionada nas últimas décadas. Esse movimento iniciado e estimulado pelos grandes oligopólios mundiais deslocou unidades fabris para pontos distantes do globo, querendo explorar uma força de trabalho barata e submetida a formas brutais de exploração, como longas jornadas e péssimas condições de trabalho, além de em muitos casos não possuir direito à organização sindical. Junto a essa deslocalização, surge um padrão de acumulação flexível que combina diferentes métodos de produção: toyotismo, fordismo, formas artesanais e mesmo formas pré-capitalistas.
A tarefa a ser enfrentada pelos trabalhadores não é fácil, pois se trata de lutar para garantir os direitos conquistados há décadas, em um padrão de acumulação que atua justamente em sentido contrário, ou seja, sob a lógica da precarização através do largo uso de contratos temporários e da terceirização. Com a crise econômica a tendência do capitalismo será a de aprofundar essa lógica, sinalizando uma acentuação da agressividade do neoliberalismo através de reformas ainda mais regressivas e com uma deterioração ainda mais grave das condições de vida dos trabalhadores em todo o mundo.
A disjuntiva, “socialismo ou barbárie”, decretada por Rosa Luxemburgo ao testemunhar os horrores da Primeira Grande Guerra, sendo ela inclusive uma de suas vítimas, ainda que contenha uma forte dose de fatalismo, talvez nunca tenha sido tão atual. A crise econômica parece estar mostrando às classes populares por todo o mundo, que o capitalismo não admite um retorno ao passado ou reformas humanizantes que possam civilizar os seus métodos de exploração sobre os trabalhadores. As tendências cada vez mais regressivas do capitalismo do ponto de vista econômico, político e social, instaladas a partir da aplicação do projeto neoliberal no final da década de 1970, estão sendo acentuadas com a crise econômica e se explicitam nas demissões em massa, na previsão de aumento absoluto no número de miseráveis em todo o planeta e nas políticas de Estado cujas preocupações se resumem exclusivamente em salvar os lucros dos grandes monopólios financeiros, bancários e industriais. Elas tornam o capitalismo ainda mais nefasto às classes populares em todo o mundo, afastando qualquer possibilidade de um recuo por si mesmo a formas menos agressivas de exploração. É aqui, a nosso ver, que reside a barbárie.
A barbárie não pode ser confundida com um fatalismo em que rumamos seguros para um colapso iminente do modo de produção capitalista a ponto de fazer a civilização, tal como a entendemos, retroceder ao estágio pré-estatal da guerra de todos contra todos, imaginada por filósofos contratualistas como Hobbes. A barbárie é a miséria, a opressão, a exploração brutal e sem peias sobre os trabalhadores, a alienação, a deterioração das condições de vida, a própria vida cotidiana imersa na serialidade, a devastação causada pelas guerras movidas pelo imperialismo, a insegurança quanto ao futuro, convivendo lado-a-lado com a civilização burguesa.
As tendências cada vez mais regressivas do capitalismo exigirão dos trabalhadores uma resposta em proporções idênticas à agressividade do capital. Se isso não ocorrer a burguesia se sentirá à vontade para aplicar os ajustes necessários visando sair da crise, pela imposição de formas cada vez mais deterioradas das condições de vida e de trabalho. Para que a crise econômica se desdobre em uma crise política, ou mesmo revolucionária, na qual a burguesia venha a perder sua posição hegemônica em ser classe dirigente, restando-lhe apenas a condição de ser classe dominante, duas condições tem de ser respondidas: até onde as massas suportarão uma deterioração em suas condições de vida e de trabalho, bem como qual será a capacidade política e econômica das classes dominantes em oferecer saídas parciais e compensatórias que não solucionem os problemas mais gritantes das classes populares causadas pelas medidas aplicadas pela burguesia para sair da crise, mas que minimizem alguns de seus efeitos, tornando mais suportável o fardo da deterioração das condições de vida, ou que possam iludi-las por mais tempo.
Portanto, urge aos trabalhadores e às suas direções mais conseqüentes e comprometidas com um projeto de transformação social, superar as atuais limitações no nível de consciência e no grau de organização dos trabalhadores, impostas nas últimas duas décadas tanto pelas mudanças no mundo do trabalho, como pela derrota das experiências de construção do socialismo no leste europeu e pelo avanço avassalador do neoliberalismo com todo o seu cortejo de reformas regressivas. Torna-se fundamental, hoje, retomar a organização da classe em seus locais de trabalho e moradia, para mobilizá-las em torno de um programa que resista às ofensivas regressivas e retrógradas do capital, mas que também seja capaz de formular um projeto societário alternativo ao capitalismo.

Campinas, julho de 2009.
Agradeço a preciosa colaboração dos camaradas Paula Hypólito de Araújo e Danilo Enrico Martuscelli pela leitura e sugestões que tornaram esse texto possível.

12/07/2009

As lições de Honduras


de “time”…
Theotonio dos Santos* - 11.07.09

Conta-se uma reveladora brincadeira entre os presidentes latino-americanos:

- Sabe por que não existem golpes de Estado nos Estados Unidos?
- Não!
- Porque nos Estados Unidos não existe embaixada dos Estados Unidos.

Além do mais, sabemos que os golpes nos Estados Unidos se dão através do assassinato, puro e simples, de seus presidentes (como no caso de John Kennedy) ou com a ajuda da Suprema Corte para impedir a recontagem dos votos (como no caso Bush).

Apesar destes e de muitos outros precedentes, vemos agora os líderes do Partido Democrata se indignar com a negativa de recontagem de votos no Irã, acusado de ser uma tremenda ditadura.

No entanto, qual a lição de Honduras? Pela primeira vez na história, os Estados Unidos apóiam a condenação de um golpe de Estado na América Latina, permitindo que se realize uma condenação unânime de um ato de força militar em todas as organizações internacionais.

Isso quer dizer que dessa vez a embaixada americana não participou do ato de força? Desgraçadamente não. De maneira indiscreta, um deputado da direita hondurenha revelou publicamente a conspiração que mantinham os golpistas com a embaixada dos EUA. O fez em memorável sessão de primitivo disfarce democrático no qual se realizou a «eleição» do «sucessor» do presidente Zelaya, que havia renunciado segundo a carta falsa lida por este bisonho «sucessor», que se esqueceu de forjar uma carta de renúncia do vice-presidente, a quem caberia substituir o presidente seqüestrado. Essa sessão foi transmitida pela Radio Globo de Honduras, última a ser silenciada pelos «democratas» do «governo provisório».

De acordo com este deputado, o embaixador dos EUA, que aprovava a mobilização golpista, havia estado contra a realização do golpe antes da consulta popular não-vinculante, chamada de «referendo» pela Corte Suprema hondurenha e pela grande imprensa internacional, que busca desesperadamente justificá-lo.

Seria muito difícil acreditar que o governo dos EUA estivesse ausente da conspiração em um país que serviu de base a suas organizações militares mercenárias que desestabilizaram o governo legítimo dos sandinistas. Nesse mundo de contra-informação no qual vivemos, escutei o locutor da emissora de TV Globo News, no Brasil, dizer que as organizações militares dos «contras» hondurenhos lutavam contra os «guerrilheiros» nicaragüenses.

Todos sabemos os altos custos de tais operações de guerra de baixa intensidade, as quais podem servir de modelo de corrupção para as organizações de defesa dos direitos humanos e transparência. O Congresso dos Estados Unidos se ocupou de nos revelar detalhes tenebrosos da operação triangular contra o governo sandinista, comandada pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, George Bush: o governo dos EUA expandiu as operações do narcotráfico a partir da Colômbia, através dos ‘contras’ assentados em Honduras, Costa Rica e El Salvador. Seus lucros serviam para financiar as operações e, ao mesmo tempo, para comprar armas para o eterno «inimigo» público dos EUA: o governo do Irã.

Apesar de suas diferenças, os líderes religiosos iranianos tinham acordado com o então candidato George Bush prolongar o seqüestro dos norte-americanos prisioneiros em sua embaixada em Teerã, a fim de desmoralizar Carter e permitir a vitória eleitoral de Reagan em troca dessa ajuda militar secreta.

Imediatamente surgem as acusações de que tal tipo de informação faz parte de teorias «conspiratórias». Ainda assim, estamos nos referindo aos fatos revelados pelas investigações do Congresso dos Estados Unidos, o que, tudo indica, acredita mesmo nas conspirações, exitosas ou fracassadas.

Essas conclusões se reforçam com as colocações de Ramsey Clark e do Bispo Filipe Teixeira, da Diocese de São Francisco de Assis (Boston), em sua mensagem urgente ao presidente dos Estados Unidos:

«Levando em consideração:

1) A colaboração próxima dos militares dos EUA com o exército hondurenho, manifestada pelo treinamento e exercícios em comum;

2) O papel da base militar Soto Cano, agora sob o comando do coronel Richard A. Juergens, que era diretor de Operações Especiais durante o seqüestro em fevereiro de 2004 do presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide;

3) Que o chefe do Estado Maior do exército hondurenho, general Romeo Vásquez, foi treinado na Escola das Américas dos EUA;  

4) Que o secretário adjunto de Estado Thomas A. Shannon Jr. e o embaixador dos EUA em Honduras, Hugo Llorens, estavam plenamente informados dos conflitos que conduziam ao golpe militar;

Concluímos que o governo dos Estados Unidos tem responsabilidade no golpe e está obrigado a exigir que o exército hondurenho regresse à ordem institucional e evite ações criminosas contra o povo hondurenho.

Portanto, insistimos, pela paz na região, que o presidente Barack Obama corte imediatamente toda ajuda e relações com o exército de Honduras e suspenda todas as relações com o governo de Honduras, até que o presidente constitucional regresse a seu posto».

Em resumo, o currículo estadunidense em Honduras mostra a dificuldade de confiar em seus desígnios democráticos na região. Talvez, a volta dos sandinistas e dos revolucionários salvadorenhos ao governo depois de anos de brutal repressão em seus países tenha ensinado algo a diplomacia estadunidense, ainda vacilante em condenar definitivamente o golpe de Estado hondurenho.

A imprensa internacional expressa vacilações ao chamar Zelaya de presidente «deposto» e o golpista Roberto Micheletti de presidente «interino»; ao chamar a consulta não-vinculante, proposta por Zelaya para criar uma Constituinte, de «referendo» para perpetuar-se no poder. Coisas que não se puderam escutar sobre o presidente assassino da Colômbia que busca o terceiro mandato presidencial, e nem se escutavam sobre as pretensões de reeleição de Fujimori, Menem ou Fernando Henrique Cardoso.

É também revelador entre suas motivações a ausência de referência na imprensa à falsa carta de renúncia do presidente Zelaya, lida no parlamento para justificar a eleição de seu sucessor. É cômico que se afirme que esse senhor foi eleito por unanimidade quando não compareceram a essa sessão os deputados governistas ameaçados de prisão. Por fim, entre outras insidiosas tergiversações, pretende-se a existência de um confronto mais ou menos igual entre os defensores armados do golpe e os desarmados manifestantes contrários ao mesmo.

Tudo isso e as declarações da secretária Hillary Clinton sobre o necessário respeito das instituições hondurenhas que possuem acordos com os EUA nos mostram que há divergências dentro do governo dos EUA. Com o fantástico apoio internacional que conta o presidente Zelaya, está se buscando obrigá-lo a uma negociação espúria com os golpistas. Até hoje a justiça venezuelana não aceita definir como golpe de Estado o que realizaram os gorilas locais em 2002. Imaginem o que vão propor em Honduras...

Zelaya e o povo hondurenho têm muitas dificuldades pela frente, mas não devem se acovardar diante delas. Não têm porque abaixar a cabeça frente aos mercenários e seus chefes, nem frente aos golpistas que são desprezados por toda a humanidade, apesar dos apoios abertos, inclusive disfarçados, dos grandes meios de comunicação.



* Theotonio dos Santos é titulado em Sociologia e Política e em Administração Pública (UFMG). Mestre em Ciência Política (UnB). Doutor em Economia por Notório Saber - UFMG e UFF e já publicou 30 livros.


Publicado em Correio da Cidadania em 8 de Julho de 2009