07/02/2009

Paraisópolis: crise econômica já fomenta a pobreza e a sua criminalização

Tudo começou com o atropelamento e morte de um garoto que teve duplo azar na vida: nasceu pobre e morreu nos primeiros anos de sua frutífera vida. Seguiu-se ao acidente uma manifestação dos moradores por equipamento público, para coibir novas mortes. Nada mais justo e compreensível.

Na manifestação ocorreram quebradeiras provocadas por garotos que não têm muito a perder, mas não contavam com o apoio dos manifestantes e da Associação de Moradores. Quando se vive no limite, relegado a uma mobilidade restrita numa metrópole repleta de possibilidades, sem a presença efetiva de equipamentos públicos de qualidade, assombrado pela violência, pelo desemprego, miséria, álcool e rendimentos risíveis, a fronteira entre o legal e o ilegal é muito tênue. Não se trata simplesmente de "desvio de caráter", ou de vandalismo inconseqüente como parte da imprensa e a própria SSP fez crer. Mas o teatro estava apenas no começo.

Paraisópolis é uma grande mancha urbana de pequenos casebres, alta densidade demográfica e com indicadores sociais perversos: apenas 0,45% dos jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior. Em 1991 o índice era de 1,19%. Apenas 20% do mesmo grupo social estão no ensino médio (Moema tem percentual de 84%) e a baixa escolaridade colabora no desemprego: 1 em cada 4 adultos está sem trabalho. A renda média entre seus moradores é de R$ 367,00 ao passo que na cidade de São Paulo o valor chega a R$ 1.325,00. A degradação persistente da qualidade de vida destas pessoas desceu em profundidade abissal.

Ao seu redor encontramos situação inversa: cercada de edifícios majestosos, casas de alto padrão, com imensos terrenos gramados e arborizados, seguranças particulares e abastecidos de total infra-estrutura. Seus vizinhos gastam mais dinheiro num ano em manutenção das piscinas do que o Estado em educação para estes deserdados urbanos.

Cito esta contradição explícita na paisagem da geografia local para reforçar a idéia de que o convívio permanente entre os socialmente desiguais é sempre explosivo, apesar da repetitiva ladainha de que o problema reside na personalidade das pessoas, que a delinqüência vem de berço e a violência está no sangue de alguns. Tolos, não percebem que este mesmo discurso embala as políticas de segurança pública há décadas sem solução definitiva.

Também não façamos coro com a tese dos "dois Brasis", pois as relações entre estes dois mundos são próximas. Trabalhar como doméstica nestas residências é uma das principais fontes de empregos para as mulheres de Paraisópolis e o assistencialismo corre solto e evidencia sua incapacidade em apontar saídas: Kaká doou bolas, ONG´s distribuem alimentos e roupas, a BOVESPA montou uma Biblioteca, Colégio de classe alta da redondeza oferece bolsas de estudos, enfim, ações apoiadas em responsabilidade social que não dão conta de suprir a irresponsabilidade social dos governos constituídos.

Quando carros foram atacados, pneus queimados e comércios destruídos, num ato espontâneo de revolta contra uma realidade insuportável, a resposta foi o show da operação policial. Estar rodeada de ricos e, principalmente, muito próximos do Palácio do Governo de São Paulo, habitado e dirigido pelo Sr. José Serra, foi outro baita azar.

Na ótica do governo, era preciso agir e rápido. Primeiro, a desculpa padrão: a culpa é da própria população que protege os traficantes que atacaram a Polícia. Segundo, uma movimentação policial exemplar: desfile de viaturas pela Marginal do Rio Pinheiros mostrando que o governador não tergiversa, age. Terceiro, a grande mídia entra em cena: como sempre criando cenários que levam à conclusão imediata de que a ação se justifica, e mortos e feridos são inevitáveis.

O mais irônico é que ocupar casas sem mandato de segurança virou rotina, matar jovens suspeitos, uma necessidade, e aterrorizar a população local, um aviso. Minha suspeita é que por detrás deste modus operandi, que se diga não é uma exclusividade de São Paulo, existe uma política mal disfarçada de redução das pressões populacionais por emprego e serviços públicos, que acomete principalmente crianças e adolescentes pelo Brasil afora. São grupos de extermínio institucionalizados e que comumente recebem aplausos de telespectadores confortavelmente instalados diante de seus televisores, e crentes de que o melhor foi feito.

Poderia haver o caminho do diálogo, sem dúvida nenhuma, houvesse interesse do Gabinete do Governador. O Cel. Ailton Araújo Brandão, comandante da ação em Paraisópolis, tem, inclusive, folha corrida a este respeito. Ele foi um dos participantes daquela malfadada reunião ocorrida com a cúpula da Polícia Militar de São Paulo e o PCC, em 2006, quando era Comandante da PM na ponta oeste do estado de São Paulo, justamente onde estavam presos os membros da cúpula da organização. Um ano depois recebeu o título de cidadão prudentino, com direito a almoço e placa da honraria pelos serviços prestados.

O Cel. Brandão apontou seu dedo para as novas tecnologias como culpada pelo sumiço de gravações contra a PM pela morte de 104 pessoas nos confrontos com o PCC. O gravador do 190 falhou e o backup automático também falhou.

Mas ele foi condecorado pela Assembléia Legislativa de São Paulo em setembro de 2007 como Comandante do Policiamento da Capital da Polícia Militar do Estado de São Paulo, junto com o governador Serra. Recebeu importante medalha dos paulistanos, embora o povo de Paraisópolis possivelmente nem saiba que ela exista. Talvez por isso a raiva.

A PF também chegou ao referido Cel. através da Operação Santa Tereza. Em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo foi revelado um esquema de distribuição de ingressos para uma festa de peão no interior de São Paulo com artistas consagrados. O "mimo" era a contrapartida pelo oferecimento de segurança pública a um prostíbulo privado que lavava dinheiro do BNDES na capital. Vê-se, portanto, que o crime maior não está em Paraisópolis, mas em outros lugares, e o Cel. sabe quais são.

A ação da polícia é a síntese de uma imbricada teia de interesses que passa pela definição, a priori, de que pobre em favela é culpado antes de mais nada, de que é preciso fazer alguma coisa contra a criminalidade e é na favela que o tráfico manda. Humilhar pessoas, revistando-as, invadindo suas casas, num show travestido de caça aos traficantes, explicita mais do que uma prática condenável, mas um tratamento de choque para um problema social.

A ocupação da favela de Paraisópolis na cidade de São Paulo, neste começo de fevereiro, é emblemática sobre o papel do tucanato diante dos problemas sociais no estado de São Paulo. Para fazer justiça, o Demo Kassab também foi condecorado na Assembléia Legislativa num ambiente agradável e de confraternização.

Pena que, enquanto alguns desfrutam deste conto de fadas com dinheiro público, outros vivem num inferno constante e são condenados ao castigo da morte lenta e silenciosa. Mesmo vivendo na "cidade do paraíso".

Ricardo Alvarez é professor e editor do Blog Controvérsia - blog.controversia.com.br
Fonte: Correio da Cidadania

04/02/2009

HÁ OUTRAS VERDADES QUE EU NÃO SEI

Manoel Messias Pereira*

No ano de 2009, o tema comum, nas discussões, dos fóruns, tanto o de Davos como o Fórum Social, da América Latina, que este ano ocorreu em Belém –PA, foi a crise econômica que iniciou nos Estados Unidos e avançou pelo mundo, trazendo artes de incertezas como realidade.
A imprensa mundial estampou bem este panorama, e no Wall Street Journal, mandou um longo artigo falando da “Revolução quieta da América Latina” em que Stephen Haber, um conservador, saúda as reformas econômicas e sociais de Chile e Brasil e defende inclusive o Bolsa Família. E critica a Venezuela e a Argentina. Num pequeno comentário da Folha de São Paulo, o escritor Bruce Sterling que esteve no Fórum Social diz “O Fórum Social deu a idéia do que fazer e demanda que os caras ricos arrumem tudo para eles”. E o sociólogo Emir Sader criticou o Forum por limitar-se às ONGs e perguntou “onde estão as massas?”, ou seja os movimentos sociais. Pelo lado de Davos, vi uma manchete em que há uma conclusão de que essa foi a reunião mais pessimista da história e o sociólogo Michael Lowy diz “quem está em crise é Davos”. E crê que o Brasil deveria ser a vanguarda, já que tem um grande partido de trabalhadores e um presidente operário que saiu do meio sindical e hoje tem o governo nas mãos.
E toda essa indignação, tanto da esquerda quanto da direita, demonstram que os senhores analistas econômicos e sociais vivem como baratas que receberam inseticidas, tontas, mas não mortas, e perdidas sem saber o destino do mundo, em encruzilhadas de despachos, sem ebôs e sem exus.
A minha verdade em relação a Haber, é que para ele o Brasil está no caminho certo, pois este país tem vestimentas social-democratas revisionistas, portanto bernsteiniana, como parceira de um capitalismo que lentamente mata o trabalhador, tendo outros pobres desgraçados mais ou menos cultos como reservas de mercado, para a troca do dia a dia, como peças recicladas ou com defeitos. E critica a Venezuela porque o presidente Hugo Chaves fala em socialismo, que necessariamente é algo que nasce da crítica ao capitalismo. E já na Argentina, com certeza não sei.
Já a minha verdade, em relação a Bruce Sterling, é preciso lembrá-lo que a riqueza é fruto da exploração dos recursos naturais e da exploração do homem pelo homem, assim como de estado pelo Estado (guerras) e não há Deus nenhum, estabelecendo cartório ou hierarquia fragmentária de uma sociedade, ou talvez até há e eu é que não sei.
Para Emir Sader, creio que ele tem razão, pois há quem diz-me que na época em que assassinaram os garotos da Candelária, haviam dezenas de ONGs para cuidar daqueles garotos, que estavam estendidos nas calçadas e até hoje eu não vi nenhuma responsabilidade de ONGs, ou de governos pelo abandono de pequenos brasileiros assim como de pessoas idosas, porém estas instituições ou organizações nem sempre cumprem o papel para qual elas devem trabalhar. Se há outra verdade eu não si.
E com referencia a Michel Lowy, ele ficou indignado para deixar quem conhece-o também indignado, pois como marxista, deveria lembrá-lo de Lênin, que afirmou que “não há revolução sem teorias revolucionárias”, pois não adianta apenas ser o dogmático marxista, sem observar a práxis leninista, nas palavras e na ação. E portanto não adianta querer que um trabalhador na presidência, que não teve nem prática e nem doutrina revolucionária e no mínimo apenas recebeu um olhar da visão social da Igreja, com teorias de Leão XIII e João XXIII, porém com reservas e críticas, uma vez que essa instituição religiosa também abrigou pregações do anticomunismo, da TFP- Tradição Família e Propriedade, entre outras coisas. E há outras verdades que eu também não sei.
E desta forma, creio que a desorientação que a crise nos traz é para que possamos estabelecer um novo momento dialético com visão revolucionária e conseqüentemente uma pratica de um processo revolucionário. Mas pode ser que há outras verdades e aí eu não sei.
Manoel Messias Pereira é militante do PCB de São Jose do Rio Preto

03/02/2009

A UNASUR em perspectiva

(Jerónimo Carrera *)
Eis aqui um instigante artigo de Jerónimo Carrera, um dos mais prestigiados dirigentes comunistas da América Latina, refletindo sobre as intenções do governo brasileiro na região.
É um tanto estranho o pouco caso com que os meios informativos aqui da Venezuela demonstram - tanto aqueles que de algum modo dependem do aparato estatal como os que servem de porta-voz da embaixada ianque - pela situação interna e pelo desenvolvimento imediato da UNASUR, a nova União das Nações Sulamericanas, um organismo de integração muito atrativo que se propõe a agrupar o conjunto de países denominados sulamericanos.
Não é muito o que eu aqui quero dizer a respeito, ainda que considere necessário incitar o debate sobre o tema. Com essa finalidade, pois, chamo a atenção para um dos primeiros passos da UNASUR, algo bastante curioso, para não dizer logo de una vez algo bastante suspeito.
Refiro-me à informação, não muito difundida, de que foi criado numa reunião extraordinária da UNASUL, realizada em 16 de dezembro no Brasil, um órgão específico com o propósito declarado de coordenar os mecanismos de defesa dos países membros, proposta feita precisamente pelo governo brasileiro. Também se anunciou que este órgão, batizado de Conselho de Defesa Sulamericano, teria agora em janeiro sua sessão inaugural.
Naturalmente, o que de imediato podemos todos fazer é especular sobre a motivação que possa ter o Brasil, como país proponente, e os Estados Unidos, para guardar silêncio frente ao que, à primeira vista, surge como uma ameaça ao seu papel hegemônico de todo um século em nosso continente americano. É quase impossível, logicamente, crer que Brasília tenha podido conceber tão significativo projeto sem consulta prévia a Washington. Inclusive, racionalmente dou maior possibilidade à idéia de que tudo isto seja parte da reacomodação política dos monopólios ianques em razão de sua crise econômica.
Temos que nos perguntar, os venezuelanos em especial, sobre o que pode vir a significar para nós a formação deste novo aparato, que se diz que atuará "com ênfase nos aspectos de cooperação, treinamento e equipamento", segundo fico sabendo pelo artigo do meu apreciado amigo e atual embaixador da Guiana na Venezuela, o camarada Odeen Ishmael, de 24-12-08.
Chama a atenção também que a Colômbia primeiro tenha expressado sua oposição ao Conselho de Defesa, alegando que enfrentava uma "ameaça terrorista", e logo tenha se arrependido, o que permitiu à presidenta chilena Michelle Bachelet anunciar com imensa alegria que a proposta havia sido aprovada de forma unânime por todos os presidentes sulamericanos. Da mesma forma se anunciou um apoio para "a luta da Colômbia contra as FARC e outros grupos armados ilegais."
Entende-se assim a condenação ao ostracismo que se tenta nestes últimos tempos aplicar aos camaradas das FARC, inclusive por parte de governos como o venezuelano.
Igualmente, se compreende muito bem que a burguesia do Brasil, com seus ares de "potência emergente", aspirante a um posto permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), e, sobretudo, com uma indústria armamentista em expansão graças à sua associação muito estreita com a dos Estados Unidos, pretenda hoje passar a assumir a chefia regional. Não podemos descartar tal possibilidade pelo fato de estar aí de presidente, por agora, um desses socialdemocratas que na França bem se conhece como "gerentes de crises": Luís Inácio "Lula" da Silva.
Muito cuidado devemos ter com este aparato de "defesa" que nos soa muito similar à hoje quase morta Junta Interamericana de Defesa, criada em Bogotá pela IX Conferência Interamericana, em 1948, e logicamente com o voto de aprovação de uma delegação venezuelana presidida nada menos que pelo "socialista" Rómulo Betancourt.
* Jerónimo Carrera, Presidente de Honra do PCV (Partido Comunista da Venezuela)
(Publicado no semanário La Razón, n° 733, Caracas, domingo 25 de janeiro de 2009).
Tradução de Rodrigo Oliveira Fonseca)

02/02/2009

CARTA DO MST

13º. Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
1. Nós, mais de 1.500 trabalhadores rurais sem terra, vindos de todas as regiões do Brasil, e delegações internacionais da América Latina, Europa e Ásia, nos reunimos de 20 a 24 de janeiro em Sarandi, no Rio Grande do Sul, para comemorar os 25 anos de lutas do MST. Avaliamos também nossa história e reafirmamos o compromisso com a luta pela Reforma agrária e pelas mudanças necessárias ao nosso País.
2. Festejamos as conquistas do nosso povo ao longo desses anos, quando milhares de famílias tiveram acesso à terra; milhões de hectares foram recuperados do latifúndio; centenas de escolas foram construídas e, acima de tudo, milhões de explorados do campo recuperaram a dignidade, construíram uma nova consciência e hoje caminham com altivez.
3. Reverenciamos nossos mártires que caíram nessa trajetória, abatidos pelo capital. E lembramos dos líderes do povo brasileiros que já partiram, mas deixaram um legado de coerência e de luta.
4. Vimos como o capital, que hoje consolida num mesmo bloco as empresas industriais, comerciais e financeiras, pretende controlar nossa agricultura, nossas sementes, nossa água, a energia e a biodiversidade.
5. Nos comprometemos em garantir à terra sua verdadeira função social, cuidar das sementes e produzir alimentos sadios, de modo a proteger a saúde humana, integrando homens e mulheres a um meio ambiente saudável e adequado a uma qualidade de vida cada vez melhor.
6. Reafirmamos nossa disposição de continuar a luta, em aliança com todos os movimentos e organizações dos trabalhadores e do povo, contra o latifúndio, o agronegócio, o capital, a dominação do Estado burguês e o imperialismo.
7. Defendemos a reforma agrária como uma necessidade popular, que valoriza o trabalho, a agro-ecocologia, a cooperação agrícola, a agro-indústria sob o controle dos trabalhadores, a educação e a cultura, medidas imprescindíveis para a conquista da igualdade e da solidariedade entre os seres humanos.
8. Estamos convencidos de que somente a luta dos trabalhadores e do povo organizado pode levar às mudanças econômicas, sociais e políticas indispensáveis à efetiva emancipação dos explorados e oprimidos.
9. Reafirmamos a solidariedade internacional e o direito dos povos à soberania e à autodeterminação. Por isso, manifestamos nosso apoio a todos que resistem e lutam contra as intervenções imperialistas, como faz hoje o povo afegão, cubano, haitiano, iraquiano e palestino.
10. Cientes de nossas tarefas e enormes desafios que se colocam, reafirmamos a necessidade de construir alianças com as organizações e os movimentos populares e políticos em torno de bandeiras comuns, para que, unidos e solidários posamos construir um projeto popular, capaz de romper com a dependência e subordinação interna e externa ao capital e de construir uma sociedade igualitária e livre - uma sociedade socialista.
Sarandi, 24 de janeiro de 2009
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST

01/02/2009

O mundo mudou e está em crise. E o Fórum Social Mundial?


O slogan "outro mundo possível" define a agenda do Fórum Social Mundial e a crise econômica mundial apontada por todos como um terremoto cujas ondas provocarão pesados estragos interroga-a agora frontalmente. Em um debate que reuniu Emir Sader, Michael Löwy e Luis Hernández Navarro, uma advertência se repetiu com diferentes matizes: o próprio FSM não está livre dessas ondas. Ou define uma estratégia de luta política que leva em conta o que pode ocorrer nos próximos meses, ou corre o risco de ser soterrado pelos escombros do mundo atual.
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Clarissa Pont
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BELÉM - Em encontro promovido pela Revista Margem Esquerda, da Editora Boitempo, neste sábado (31), o sociólogo Emir Sader, o pesquisador do Centre National des Recherches Scientifiques (CNRS), Michael Löwy, e o jornalista Luis Hernandéz Navarro, do La Jornada, analisaram a situação atual do FSM e avançaram perspectivas para um público que lotou o Auditório Setorial Básico da Universidade Federal do Pára. "O mundo está em crise.
Lucien Goldmann disse que uma das características do capitalismo é a sua indiferença axiológica, sua indiferença ética e moral. Ele é perfeitamente compatível com a democracia, com a guerra, com a barbárie, com o fascismo. Essa é a indiferença ética do capitalismo. Temos três crises. A econômica, a alimentar e a ecológica. As conseqüências da crise ecológica devem ser dramáticas. Infelizmente não temos outro planeta para mudar no universo. Para enfrentar essas três crises nós temos que pensar em alternativas que sejam radicais, ou seja, que arranquem o mal pela raiz”, iniciou Michael Löwy, depois de devolver a agenda e o casaco de Boaventura Souza Santos. O sociólogo português, que participara de mesa pela manhã no mesmo local, havia esquecido seus pertences na mesa.“Não vamos esperar que essa crise acabe com o capitalismo. Walter Benjamim, que é um pensador que eu respeito muito, dizia que o capitalismo nunca vai morrer de morte natural. Por mais que ele tenha crises, sempre dá a volta por cima.
A não ser que a gente dê cabo dele. A solução não é uma versão mais verde, mais civilizada, mais ética e regulada do modo de produção capitalista. Nós temos que pensar em uma alternativa revolucionária”, completou Löwy. Segundo ele, a Amazônia é o local perfeito para a realização desta nona edição do FSM, já que os debates em torno da questão ambiental foram um dos eixos principais do encontro. Escolhido com antecedência de quase dois anos, o tema da Amazônia e de seu papel no equilíbrio ambiental do planeta deveria inicialmente ser o central de todo o evento, mas ficou circunscrito ao primeiro dia de atividades (na quarta, 28, aconteceu o Dia Pan Amazônico) e diluído em outros dez eixos escolhidos pelo Conselho Internacional para os demais dias.
O tema da crise e da guerra na Palestina acabaram recebendo tanta ou mais atenção nesses dias que passaram. E onde está o outro mundo possível, depois do encontro na Amazônia, para Löwy? “A resposta, como diz a canção, está no vento. Em particular, nos ventos da América Latina. A solução radical e revolucionária já está sendo discutida pelos movimentos sociais, por alguns governos, e é o que está se chamando de o socialismo do século XXI. É o nome dessa alternativa, é essa a resposta, é um outro paradigma de civilização. Esse socialismo se reclama de José Carlos Mariátegui, de Ernesto Che Guevara, de Farabundo Martí e se reclama de alguém como Chico Mendes”, respondeu.Nesta edição, experiências importantes na América Latina em particular mostram que outro mundo continua sendo possível, principalmente pela experiência dos movimentos sociais e governos progressistas e de esquerda no continente. “Começou um período novo, é fundamental entender o momento em que os movimentos sociais elegeram seus próprios governos, como aconteceu na Bolívia.
Agora se estabelece uma relação nova com a política e passa-se a disputar a hegemonia de outra forma. Digo isso não para tornar o Fórum governamental ou estatal, nada disso. Mas o Evo Morales não devia ter vindo fazer dois discursos. Devia ter trazido as experiências dele aqui”, disse Emir Sader. Para ele, existe “uma espécie de pecado original do Fórum. Ele surgiu dirigido por um secretariado de oito organizações brasileiras, o problema é que seis são ONGs e duas são movimentos sociais, MST e CUT. Imagina a desproporção. MST e CUT têm a existência inquestionável, votam as suas decisões, elegem seus representantes. Apesar de algumas ONGs serem conhecidas, como o Ibase, outras são tão desconhecidas que dois de seus representantes mudaram sua representação, eles continuam lá, mas mudaram a representação da organização onde eles supostamente estão. Elegeu-se um secretariado amplo, mas formado por entidades de vários países que tem dificuldade de se estruturar, então eles continuam existindo como Comitê Facilitador”.
A tensão sobre os rumos do fórum vem desde Porto Alegre. Nos primeiros anos, houve quem negasse a luta política, quem fizesse cara feia diante da participação dos partidos e dos chamados movimentos sociais tradicionais (sindicatos, entidades estudantis e outros) e quem rejeitasse a idéia da força das ONGs na construção do processo do Fórum. Segundo Emir Sader, “as ONGs não podem ser o paradigma político de um outro mundo possível. Nós teremos que construir isso. Elas têm lugar aqui, no entanto, o protagonismo tem que ser dos movimentos sociais”. Luiz Hernandez Navarro, acredita que “isso gera uma contradição cada vez mais insustentável, que são as duas contradições principais do Fórum nos dias de hoje: entre a dinâmica e a lógica de funcionamento das ONGs e, por outro lado, o tipo de relação que é necessário estabelecer com a política institucional e com as mobilizações sociais e os governos progressistas”. O jornalista mexicano ainda remontou uma parte da história do movimento altermundista: “O historiador inglês Eric Hobsbawm fala que o século XX começou com a Revolução Russa de 1917 e terminou com a queda do Muro de Berlim em 1989.
Há quem afirme que o século XXI começou com o 1º de janeiro de 1994, a partir do levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional, ou no final de 1999 com os protestos contra a OMC em Seattle, que apresentam o que depois viria a ser o movimento altermundista. É quando se começa a plantar a semente de um novo sujeito político social alternativo que o escritor Manuel Vasques Montalbán, já falecido, chamou de os globalizados. O novo século, então, começa com a revolta dos globalizados que seriam, na lógica dele, o equivalente ao proletariado nos primeiros anos do capitalismo. Que isso nos valha como uma descrição do que hoje estamos vivendo: a emergência deste novo ator que possui distintas características em todo o mundo, um ator constituído no marco da globalização capitalista”.
Navarro apresentou a seguinte análise sobre esse tema:“Na tradição da esquerda, as internacionais eram tradicionalmente de origem operária. Eram os grandes sindicatos que serviam de coluna vertebral. Isso não existe mais, o movimento sindical está aí, é uma cor a mais no conjunto do Fórum, mas está muito longe de hegemonizar. Estamos falando aqui de algo que mescla três atores fundamentais: por um lado, ONGs e fundações internacionais, muitas das quais se apresentam como representantes da sociedade civil sem que seja correto falar assim, porque a sociedade civil por definição não tem representação. Não há quem possa falar pela sociedade civil. O segundo ator são claramente os movimentos sociais e o terceiro são os intelectuais e acadêmicos. Todos desempenham um papel dentro fórum muito complexo e difícil de definir"."Depois de Nairóbi, em que até empresas privadas financiaram o Fórum, teve quem falasse de que a frase ‘outro mundo é possível’ deveria ser trocada para ‘outro turismo é possível’. Não estou exagerando. Dava impressão de que o modelo nascido em Porto Alegre encontrava seu esgotamento. Mas o Fórum hoje me parece três coisas. Primeiro, ele existe, não é uma invenção, não é uma quimera.
O Fórum influi na tomada de decisões políticas de estados, influi em partidos e em movimentos sociais. O Fórum é a única organização multi-setorial internacional com um projeto emergente”.Enfim, por onde anda o outro mundo possível quando diversas possibilidades não são mais utopia? Em Belém, em Porto Alegre? Em Seattle, nas primeiras manifestações contra a Organização Mundial do Comércio? Em Washington, Sidney ou Gênova, onde elas prosseguiram? No Equador, nas manifestações contra o Tratado de Livre Comércio Andino? Nos governos progressistas da América Latina? Na luta contra Davos, Guantánamo, e o massacre na Faixa de Gaza?
O slogan "outro mundo possível" define a agenda do Fórum Social Mundial e a crise econômica mundial apontada por todos como um terremoto cujas ondas provocarão pesados estragos interroga-a agora frontalmente. Seguindo as análises de Sader, Löwy e Navarro, o próprio FSM não está livre dessas ondas. Ou define uma estratégia de luta política que leva em conta o que ocorrerá no mundo nos próximos meses, ou corre o risco de ser soterrado pelos escombros do mundo atual.

Fonte: Agência Carta Maior