31/01/2009

Crise do capitalismo, sem mistérios!


Para apresentar os principais encadeamentos da crise financeira é preciso partir dos mecanismos que a desencadearam; a deterioração dos mecanismos e das instituições de regulação, e o papel chave que os Estados Unidos desempenham. Na avaliação dos impactos, quem deverá em última instância pagar pela bancarrota do cassino?
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“Os benefícios fundamentais da globalização financeira são bem conhecidos: ao canalizar fundos para os seus usos mais produtivos, ela pode ajudar tanto os países desenvolvidos como os em via de desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de vida.” IMF, Finance & Development, March 2002, p. 13.
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“Os administradores de fundos enriqueceram e os investidores viram o seu dinheiro desaparecer. E estamos falando de muito dinheiro, em todo esse processo” ­- Paul Krugmann, Folha de São Paulo, 30-12-2008
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Tirando a roupa (financeira)

As pessoas imaginam profundas articulações onde, em geral, há mecanismos bastante simples. Nada como alguns exemplos para ver como funciona. Há poucos anos estourou o desastre da Enron, uma das maiores e mais conceituadas multinacionais americanas. Foi uma crise financeira e um dos principais mecanismos de geração fraudulenta de recursos fictícios, foi um charme de simplicidade. Manda-se um laranja qualquer abrir uma empresa laranja num paraíso fiscal como Belize. Esta empresa reconhece por documento uma dívida de, por exemplo, 100 milhões de dólares. Esta dívida entra na contabilidade da Enron como “ativo”, e melhora a imagem financeira da empresa. Os balanços publicados ficam mais positivos, o que eleva a confiança dos compradores de ações. As ações sobem, o que valoriza a empresa, que passa a valer os cem milhões suplementares que dizia ter.

Os executivos da Enron acharam o processo muito interessante. O setor de produção (que produzia efetivamente coisas úteis) foi colocado no seu devido lugar, e os magos da finança se lançaram no filão que apresentava a vantagem de ser menos trabalhoso e mais lucrativo. No momento da falência, a Enron tinha 1600 empresas fictícias na sua contabilidade. A empresa de auditoria Arthur Andersen não percebeu. As empresas de avaliação de risco não perceberam. A primeira tinha a Enron como cliente de consultoria. As segundas são pagas pelas empresas que avaliam.

Partimos deste exemplo da Enron porque é simples, representa um mecanismo de fraude honesto e transparente. Não viu quem não quis. E também para marcar o que é uma cultura da área financeira, onde vale rigorosamente tudo, conquanto não sejamos pegos. Não é o reino dos inteligentes (tanto assim que quebram), mas dos espertos. E os que buscam produzir bens e serviços realmente úteis são levados de roldão, em parte culpados porque toleraram idiotas disfarçados em magos de finanças e marketing. Qualquer semelhança com empresas nacionais que se lançaram em aventuras especulativas é mera coincidência.

O estopim da crise financeira de 2008 foi o mercado imobiliário norte-americano. Abriu-se crédito para compra de imóveis por parte de pessoas qualificadas pelos profissionais do mercado de Ninjas (No Income, No Jobs, no Savings). Empurra-se uma casa de 300 mil dólares para uma pessoa, digamos assim, pouco capitalizada. Não tem problema, diz o corretor: as casas estão se valorizando, em um ano a sua casa valerá 380 mil, o que representa um ganho seu de 80 mil, que o senhor poderá usar para saldar uma parte dos atrasados e refinanciar o resto. O corretor repassa este contrato – simpaticamente qualificado de “sub-prime”, pois não é totalmente de primeira linha, é apenas sub-primeira linha – para um banco, e os dois racham a perspectiva suculenta dos 80 mil dólares que serão ganhos e pagos sob forma de reembolso e juros. O banco, ao ver o volume de “sup-prime” na sua carteira, decide repassar uma parte do que internamente qualifica de “junk” (aproximadamente lixo), para quem irá “securitizar” a operação, ou seja, assegurar certas garantias em caso de inadimplência total, em troca evidentemente de uma taxa. Mais um pequeno ganho sobre os futuros 80 mil, que evidentemente ainda são hipotéticos. Hipotéticos mas prováveis, pois a massa de crédito jogada no mercado imobiliário dinamiza as compras, e a tendência é os preços subirem.

As empresas financeiras que juntam desta forma uma grande massa de “junk” assinados pelos chamados “ninjas”, começam a ficar preocupadas, e empurram os papéis mais adiante. No caso, o ideal é um poupador sueco, por exemplo, a quem uma agência local oferece um “ótimo negócio” para a sua aposentadoria, pois é um “sup-prime”, ou seja, um tanto arriscado, mas que paga bons juros. Para tornar o negócio mais apetitoso, o lixo foi ele mesmo dividido em AAA, BBB e assim por diante, permitindo ao poupador, ou a algum fundo de aposentadoria menos cauteloso, adquirir lixo qualificado. O nome do lixo passa a ser designado como SIV, ou Structured Investment Vehicle, o que é bastante mais respeitável. Os papéis vão assim se espalhando e enquanto o valor dos imóveis nos EUA sobe, formando a chamada “bolha”, o sistema funciona, permitindo o seu alastramento, pois um vizinho conta a outro quanto a sua aposentadoria já valorizou.

Para entender a crise atual, não muito diferente no seu rumo geral do caso da Enron, basta fazer o caminho inverso. Frente a um excesso de pessoas sem recurso algum para pagar os compromissos assumidos, as agências bancárias nos EUA são levadas a executar a hipoteca, ou seja, apropriam-se das casas. Um banco não vê muita utilidade em acumular casas, a não ser para vendê-las e recuperar dinheiro. Com numerosas agências bancárias colocando casas à venda, os preços começam a baixar fortemente. Com isso, o Ninja que esperava ganhar os 80 mil para ir financiando a sua compra irresponsável, vê que a sua casa não apenas não valorizou, mas perdeu valor. O mercado de imóveis fica saturado, os preços caem mais ainda, pois cada agência ou particular procura vender rapidamente antes que os preços caiam mais ainda. A bolha estourou. O sueco que foi o último elo e que ficou com os papéis – agora já qualificados de “papéis tóxicos” – é informado pelo gerente da sua conta que lamentavelmente o seu fundo de aposentadoria tornou-se muito pequeno. “O que se pode fazer, o senhor sabe, o mercado é sempre um risco”. O sueco perde a aposentadoria, o Ninja volta para a rua, alguém tinha de perder. Este alguém, naturalmente, não seria o intermediário financeiro. Os fundos de pensão são o alvo predileto, como o foram no caso da Enron.

Mas onde a agência bancária encontrou tanto dinheiro para emprestar de forma irresponsável? Porque afinal tinha de entregar ao Ninja um cheque de 300 mil para efetuar a compra. O mecanismo, aqui também, é rigorosamente simples. Ao Ninja não se entrega dinheiro, mas um cheque. Este cheque vai para a mão de quem vendeu a casa, e será depositado no mesmo banco ou em outro banco. No primeiro caso, voltou para casa, e o banco dará conselho ao novo depositante sobre como aplicar o valor do cheque na própria agência. No segundo caso, como diversos bancos emitem cheques de forma razoavelmente equilibrada, o mecanismo de compensação à noite permite que nas trocas todos fiquem mais ou menos na mesma situação. O banco, portanto, precisa apenas de um pouco de dinheiro para cobrir desequilíbrios momentâneos. A relação entre o dinheiro que empresta – na prática o cheque que emite corresponde a uma emissão monetária – e o dinheiro que precisa ter em caixa para não ficar “descoberto” chama-se alavancagem.

A alavancagem, descoberta ou pelo menos generalizada já na renascença pelos banqueiros de Veneza, é uma maravilha. Permite ao banco emprestar dinheiro que não tem. Em acordos internacionais (acordos de cavalheiros, ninguém terá a má educação de verificar) no quadro do BIS (Bank for International Settlements) de Basiléia, na Suíça, recomenda-se por exemplo que os bancos não emprestem mais de nove vezes o que têm em caixa, e que mantenham um mínimo de coerência entre os prazos de empréstimos e os prazos de restituições, para não ficarem “descobertos” no curto prazo, mesmo que tenham dinheiro a receber a longo prazo. Para se ter uma idéia da importância das recomendações de Basiléia, basta dizer que os bancos americanos que quebraram tinham uma alavancagem da ordem de 1 para 40.

A vantagem de se emprestar dinheiro que não se tem é muito grande. Por exemplo, a pessoa que aplica o seu dinheiro numa agência verá o seu dinheiro render cerca de 10% ao ano. O banco tem de creditar estes 10% na conta do aplicador. Se emprestar este dinheiro para alguém a 20%, por exemplo, terá de descontar dos seus ganhos os 10% da aplicação. Mas quando empresta dinheiro que não tem, não precisa pagar nada, é lucro líquido. A alavancagem torna-se portanto muito atraente. E a tentação de exagerar na diferença entre o que tem no caixa e o que empresta torna-se muito grande. Sobretudo quando vê que outros bancos tampouco são cautelosos, e estão ganhando cada vez mais dinheiro. É uma corrida para ver quem agarra o cliente primeiro, pouco importa o risco. E os ganhos são tão estupendos...

A ficção da regulação

A “bolha” imobiliária vinha sendo comentada há pelo menos três anos. Greenspan previa um “soft landing”, ou seja, um esvaziamento suave da bolha, e não o “crash landing” que finalmente aconteceu. É interessante comparar a frase ufanista do FMI em 2002, que colocamos em epígrafe no início deste artigo, com a avaliação bastante mais cautelosa e até alarmante que aparece já em 2005: “Ainda que seja difícil ser categórico sobre qualquer coisa tão complexa como o sistema financeiro moderno, é possível que estes desenvolvimentos estejam criando mais movimento procíclicos que no passado. Podem igualmente estar criando uma probabilidade maior (mesmo que ainda pequena) de um colapso catastrófico (catastrophic meltdown). ”

Em dezembro de 2007, o FMI lança um grito: “Global governance: who’s in charge?” diz a capa da publicação, claramente sugerindo que ninguém está “in charge”, ninguém está regulando nada. “Lax, if not fraudulent, underwriting practices in subprime mortgage lending largely explain the rise in the rate of seriously delinquent loans from 6 percent to 9 percent between the second quarter of 2006 and the second quarter of 2007”. Na época já estimava que o lixo tóxico (troubled loans como era ainda chamado) estava corrompendo (disrupting) o mercado financeiro americano de 57 trilhões de dólares. A culpa recai, segundo o Fundo, sobre a globalização do sistema, abandonando as “local depository institutions [which] make loans” em proveito dos “major Wall street banks and securities firms, which employ the latest financial engineering to repackage mortgages into securities through credit derivatives and collateralized debt obligations”. O uso de paraísos fiscais está igualmente bem mapeado: “Securitization involves the pooling of mortgages into a special-purpose vehicle, which is simply a corporation registered in what is usually an off-shore tax-haven country”. Este e outros canais eram utilizados, segundo o Fundo, “to keep the subprime assets off their books and to avoid related capital requirements”. A expressão “keep off their books” nos é familiarmente conhecida como “caixa dois”. Atribuir a crise ao “pânico” e outras manifestações irracionais não tem muito sentido. O pânico existe, pois as pessoas não gostam de perder dinheiro. Mas tem a sua origem no comportamento fraudulento quando não criminoso das principais instituições financeiras. E sobretudo na ausência de qualquer vontade ou capacidade reguladora do FED e do governo norte-americano.

Quando os pequenos bancos locais se transformam em gigantes planetários, a imprensa apresenta a evolução como positiva, dizendo que os bancos ficam ‘mais sólidos”. A realidade é que ficam mais poderosos, logo menos controlados. No conjunto, o que aconteceu com a globalização financeira é que os papéis circulam no planeta todo, enquanto os instrumentos de regulação, os bancos centrais nacionais, estão fragmentados em cerca de 190 nações. Na prática, ninguém está encarregado de regular coisa alguma. E se algum país decide controlar os capitais, estes fugirão para lugares mais hospitaleiros (market-friendly), em processo muito parecido com os mecanismos de guerra fiscal entre municípios. Nas análises das Nações Unidas, isto é chamado de race to the bottom, corrida para o fundo, de quem reduz mais as suas próprias capacidades de controle.

Lembremos aqui que os gigantes globalizados da finança, os chamados Institutional Investors, constituem um grupo pequeno e seleto. Segundo o New Scientist, 66 grupos apenas gerem 75% das movimentações especulativas planetárias que eram da ordem de 2,1 trilhões de dólares por dia na véspera do agravamento da crise em 2008. É fácil imaginar o poder político que corresponde a esta capacidade de irrigar com dinheiro ou desequilibrar com fugas qualquer economia. Stigliz lembra bem que se trata de um clube de pessoas que circulam alternadamente entre Wall Street, o Departamento do Tesouro norte-americano, o FMI e o Banco Mundial. Paulson, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, na gestão Bush, pertencia à Goldman & Sachs. O mecanismo é familiarmente chamado de “porta giratória”.

Haveria ainda de se considerar o papel regulador das agências avaliadoras de risco. O muito conservador The Economist chega a se indignar com o peso que adquiriu este oligopólio de tres empresas – Moody’s, Standard & Poor (S&P) e Fitch – que “fazem face a críticas pesadas nos últimos anos, por terem errado relativamente a crises como as da Enron, da WorldCom e da Parmalat. Estes erros, a importância crescente das agências, a falta de competição entre elas e a ausência de escrutínio externo estão começando a deixar algumas pessoas nervosas”. O The Economist argumenta também que as agências de avaliação são pagas pelos que emitem títulos, e não por investidores que utilizarão as avaliações de risco, com evidentes conflitos de interesse. O resultado é que “a mais poderosa força nos mercados de capital está desprovida de qualquer regulação significativa”.

A pá de cal na capacidade de regulação veio no final dos anos 1990 quando se liquidou a separação entre os bancos comerciais tradicionais, que tipicamente recebiam depósitos de correntistas e faziam empréstimos locais, e os investidores institucionais. Todo mundo passou a fazer o que quisesse, os intermediários financeiros passaram a ser “supermercados” de produtos financeiros e inclusive grandes empresas industriais e comerciais viraram especuladores.

Nesta discrepância entre finanças globais e regulação nacional, jogam um papel complementar importante os paraísos fiscais, cerca de 70 “nações”, ilhas da fantasia onde frequentemente existem mais empresas registradas do que habitantes, e onde não se pagam impostos nem exigem relatórios de atividades. Estes paraísos exercem hoje o papel que no século 18 desempenhavam algumas ilhas do Caribe que constituíam abrigos permanentes de piratas, onde os produtos da ilegalidade podiam ser estocados, trocados e comercializados. Mudou apenas o tipo de produto, encobrindo não só caixa dois, como evasão fiscal, tráfego de armas e lavagem de dinheiro. Não haverá um mínimo de ordem financeira mundial enquanto subsistirem estes off-shores de ilegalidade.

Circo, cassino, ciranda financeira, estes são os termos com os quais já há tempos especialistas têm designado o carnaval econômico que oportunistas dos mais variados tipos desenvolvem com dinheiro que não é deles – se trata de poupanças da população ou de emissão de dinheiro com autorização pública – e que acaba quebrando não os próprios intermediários, mas pessoas, empresas ou países que produzem, poupam e investem.

O papel dos Estados Unidos

O epicentro da atual crise está nos Estados Unidos, e o eixo desencadeador foi o mercado imobiliário. Mas a diferença relativamente às crises dos hedge funds ou do Long Term Capital Management (LTCM) de poucos anos atrás, é a nova fragilidade dos Estados Unidos. A tradição ideológica exige que se considere os EUA à beira do colapso ou como poderoso bastião do capitalismo, segundo as posições. A realidade é que se trata sim de um poderoso bastião, mas impressionantemente fragilizado.

Os Estados Unidos têm uma dívida pública de 10,5 trilhões de dólares. Como ninguém consegue imaginar o que pode representar tal soma, vale a pena lembrar que o PIB mundial é da ordem de 55 trilhões de dólares. Ou seja, a dívida pública norte-americana representa cerca de um quinto do PIB mundial. É um país que vive acima de suas posses. O American Way of Life é amplamente artificial. Sem falar do conteúdo das atividades: os custos advocatícios empresariais são da ordem de 370 bilhões de dólares por ano, e pode-se duvidar se este aumento do PIB gera qualidade no Way of Life.

O endividamento como nação se reflete na situação das famílias. O americano adulto médio tem oito cartões de crédito, e gasta um terço da sua renda com o pagamento de dívidas. Apresentado no momento da concessão, o crédito aparece como um instrumento de dinamização da conjuntura, pois aumenta a capacidade de compra da família. No entanto, cada dívida significa não só reembolso, como pagamento de juros e, na realidade, o que se consegue com endividamento é uma antecipação de consumo, e não o seu aumento. Quando chega a hora de pagar, o efeito se inverte. Até onde irão as famílias norte-americanas no faz-de-conta de prosperidade?

Os dois endividamentos, público e privado, dependem no caso americano de um desequilíbrio entre importações e exportações, da ordem de 1 trilhão de dólares anualmente.8 Este déficit sistemático levou a um acúmulo de reservas em dólares em particular pela China, que detém curiosamente hoje uma capacidade impressionante de desestabilização do sistema monetário norte-americano. Imagina, comenta informalmente Ignacy Sachs, o Partido Comunista da China salvando a economia americana.

Neste final de 2008, as matrizes norte americanas de multinacionais estão comprando dólares nos mercados do mundo para se recapitalizar, e inúmeras empresas com dívidas denominadas em dólar buscam igualmente a moeda, além de especuladores tentando “realizar” papéis podres transformando-os em moeda real, gerando uma valorização. O médio prazo deste processo é simplesmente um ponto de interrogação, em particular considerando a gigantesca massa de dólares que os EUA emitiram quando estes eram – e ainda são em parte – ao mesmo tempo moeda nacional e moeda-reserva mundial.

O efeito desequilibrador que os Estados Unidos geram no planeta é poderoso, e isto torna as responsabilidades do novo governo eleito muito amplas. Os desequilíbrios monetários e financeiros foram-se acumulando durante as décadas da farra neoliberal, e hoje estão gravadas nas estruturas produtivas. Mais importante ainda, a dinâmica recente de concentração de renda nos Estados Unidos, inclusive com a drástica redução de impostos pagos pelos ricos, geraram uma cultura do lucro fácil e uma estrutura de poder que de tudo fará para manter o sistema. Os ajustes terão de ser profundos.

Quem paga a conta?

A conta da irresponsabilidade norte-americana, devidamente imitada em outros países que até ontem nos davam lições, ainda está por ser apresentada. A curtíssimo prazo, e buscando conter o pânico entre eleitores, os governos dos países mais afetados procuraram tranquilizar os milhões de pequenos depositantes. Neste sentido, vários países passaram a assegurar que no caso de quebra de um banco, por exemplo, o governo ressarciria as perdas dos correntistas até 100 mil dólares, ou até sem limite, segundo os países. O processo é interessante, pois o correntista seria ressarcido do seu próprio dinheiro com dinheiro que pagou para o governo sob forma de impostos. A generosidade governamental escapa à compreensão de muitos, que acham que talvez devessem ser debitados os especuladores que afinal especularam precisamente com o dinheiro dos poupadores.

Mas a grande massa de movimentação financeira foi evidentemente no socorro às instituições financeiras que estão quebrando. Neste início de 2009, a conta dos recursos mobilizados está em cerca de 4 trilhões de dólares. Como o ex-presidente Bush explicou candidamente, isto ia contra as suas convicções, mas como uma quebradeira geral iria prejudicar ainda mais a população, e sendo o bem-estar desta a sua preocupação maior, tinha de mobilizar o dinheiro necessário. Dinheiro público, naturalmente, pois se tratava justamente de não prejudicar os bancos ou seguradoras. Aqui também, para o público, ficou um sentimento profundamente ambíguo: alívio porque a quebradeira seria evitada, ou retardada, mas também a amarga constatação de que se estava salvando especuladores com o próprio dinheiro do público. Na primeira reviravolta do “mercado” após o anúncio dos 700 bilhões do governo americano, quando o mercado se recuperou momentâneamente, houve declarações – lamentavelmente públicas – de especuladores: “The happy days are back”. Já não dizem o mesmo, pelo menos por enquanto. Ponto essencial, é preciso lembrar que os trilhões desembolsados pelo governo não estarão disponíveis para políticas públicas em saúde, educação e assim por diante. Alguém tem de pagar.
Um drama que ainda se desenrola, e de dimensões imprevisíveis, é o dos que pouparam a vida inteira para formar um fundo de pensão, e dos próprios grandes fundos que tinham os seus ativos aplicados em ações que perderam valor. É preciso lembrar que os administradores das grandes instituições de especulação trabalham essencialmente com dinheiro de terceiros, e que têm os seus salários – em geral na faixa de dezenas de milhões ao ano – garantidos, foram os primeiros a saber como realocar o que tinham em opções empresariais. Mas os detentores de ações perderam massas avassaladoras de recursos, mais de 30 trilhões neste início de 2009. Quando uma pessoa tem mil dólares em dinheiro, enquanto não houver um surto inflacionário, tem o seu poder de compra garantido. Mas quando os seus dólares foram transformados em papéis que perderam todo valor, estão arruinados. Muita gente procurou dólares para se livrar de ações de empresas perfeitamente produtivas, e que fazem coisas úteis, buscando a segurança do dinheiro vivo, agravando o processo.

Gera-se assim um amplo efeito multiplicador, em que a irresponsabilidade da especulação financeira atinge áreas de atividades produtivas. Note-se aqui que “especulação” é o termo tecnicamente correto. O inglês não tem, como temos em português, a diferença entre investimento e aplicação financeira. Tecnicamente, o investimento é quando alguém constrói uma fábrica, por exemplo, e com o lucro da produção financiará a restituição do empréstimo e os juros correspondentes. À movimentação financeira correspondeu uma atividade produtiva. No caso da aplicação financeira apenas se transfere ativos financeiros de uma área para outra, não se gera produto ou serviço algum. O Economist, que sempre considerou este último tipo de aplicação como “investment”, e durante décadas declarou que a especulação ajudava na mobilidade dos capitais e, portanto, no seu uso mais produtivo, hoje enfrenta grandes dificuldades para sair da saia justa: não querendo acusar os amigos de sempre de especuladores, passou a chamá-los de “speculative investors”. Os doutores sofistas de tempos passados não inventariam melhor.

Temos assim um processo desequilibrado, em que por um lado os impressionantes avanços tecnológicos permitiram fortes aumentos de produtividade sistêmica no planeta, mas por outro lado a apropriação dos excedentes gerados se dá na mão de intermediários, não de produtores, e muito menos dos trabalhadores. Este desvio das capacidades financeiras, do investimento produtivo para as esferas da especulação, está no centro da perversão sistêmica que enfrentamos.

Especulação e concentração de renda

Num plano mais amplo, portanto, o próprio sistema é desequilibrado em termos de alocação e de apropriação de recursos, mesmo quando não há crise. Marjorie Kelly produziu nesta área um estudo particularmente interessante, intitulado “O direito divino do capital”. Analisando o mercado de ações dos Estados Unidos, Kelly constata que a imagem das empresas se capitalizarem por meio da venda de ações é uma bobagem, pois o processo é marginal: “Dólares investidos chegam às corporações apenas quando novas ações são vendidas. Em 1999 o valor de ações novas vendidas no mercado foi de 106 bilhões de dólares, enquanto o valor das ações negociado atingiu um gigantesco 20,4 trilhões. Assim que de todo o volume de ações girando em Wall Street, menos de 1% chegou às empresas. Podemos concluir que o mercado é 1% produtivo e 99% especulativo”. Mas naturalmente, as pessoas ganham com as ações e, portanto, há uma saída de recursos: “Em outras palavras, quando se olha para as duas décadas de 1981 a 2000, não se encontra uma entrada líquida de dinheiro de acionistas, e sim saídas. A saída líquida (net outflow) desde 1981 para novas emissões de ações foi negativa em 540 bilhões”...”A saída líquida tem sido um fenômeno muito real – e não algum truque estatístico. Em vez de capitalizar as empresas, o mercado de ações as tem descapitalizado.

Durante décadas os acionistas têm se constituído em imensos drenos das corporações. São o mais morto dos pesos mortos. É inclusive inexato se referir aos acionistas como investidores, pois na realidade são extratores. Quando compramos ações não estamos contribuindo com capital, estamos comprando o direito de extrair riqueza”.

Esta forma de drenar a riqueza produzida pelas empresas está baseada num pacto de solidariedade nas próprias corporações, em que os acionistas são bem remunerados pelos seus aportes iniciais, e os administradores levam salários nababescos (na faixa de dezenas e frequentemente centenas de milhões de dólares anuais mais opções). Encontramos aqui a boa e velha mais valia, onde a produtividade do trabalho aumenta de forma acelerada graças às novas tecnologias, mas a participação da remuneração do trabalho declina. O FMI apresenta uma tabela bem clara referente aos países mais desenvolvidos (ver tabela abaixo). Constatamos que a parte da renda destinada à remuneração do trabalho cai sistematicamente entre 1980 e 2005 nos países avançados. É o efeito prático mais direto do neoliberalismo. É interessante lembrar que em 1980 se inicia, com Reagan e Margareth Thatcher, a onda neoliberal. E é bom recorrer a estatísticas do Fundo, pouco suspeito no caso. (IMF, Finance&Development, June 2007, p. 21)

A compreensão deste “pano de fundo” é importante, pois não se trata apenas de um sistema bom que entrou em crise por movimentos conjunturais: a financeirização dos processos econômicos vem há décadas se alimentando da apropriação dos ganhos da produtividade que a revolução tecnológica em curso permite, de forma radicalmente desequilibrada. Não é o caso de desenvolver o tema aqui, mas é importante lembrar que a concentração de renda no planeta está atingindo limiares absolutamente obscenos. (Fonte: Human Development Report 1998, p. 37)

A imagem da taça de champagne é extremamente expressiva, pois mostra quem toma que parte do conteúdo, e em geral as pessoas não têm consciência da profundidade do drama. Os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda. Como ordem de grandeza, os dois terços mais pobres têm acesso a apenas 6%. Em 1960, os 20% mais ricos se apropriavam de 70 vezes a renda dos 20% mais pobres, em 1989 são 140 vezes. A concentração de renda é absolutamente escandalosa, e nos obriga de ver de frente tanto o problema ético, da injustiça e dos dramas de bilhões de pessoas, como o problema econômico, pois estamos excluindo bilhões de pessoas que poderiam estar não só vivendo melhor, como contribuindo de forma mais ampla com a sua capacidade produtiva. Esta concentração não se deve apenas à especulação financeira, mas a contribuição é significativa e, sobretudo, é absurdo desviar o capital de prioridades planetárias óbvias. O cassino tornou-se um entrave central no processo de desenvolvimento em geral.

Os lucros financeiros no Brasil

Finalmente, e antes de entrar nas propostas, um comentário sobre a situação particular da intermediação financeira no Brasil. Basicamente, cinco grupos dominam o mercado. A ANEFAC, Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis, apresenta mensalmente a taxa média de juros efetivamente praticada junto ao tomador final, pessoa física ou pessoa jurídica.

Para pessoa jurídica, os juros anuais se mantêm em 68% durante 3 anos, sendo que os juros correspondentes na Europa seriam da ordem de 3% ao ano. É importante lembrar que neste período a taxa básica de juros Selic caiu de 19,75% para 13,75%, ou seja, 6 pontos percentuais (queda de 30,4%), sem que houvesse redução da taxa média para pessoa jurídica ou para pessoa física no mercado financeiro.

A situação aqui é completamente diferente dos bancos dos países desenvolvidos, que trabalham com juros baixos e alavancagem altíssima. Essencial para nós, é que sustentar no Brasil juros que são da ordem de mil por centos relativamente aos juros praticados internacionalmente, só pode ser realizado mediante uma cartelização de fato. Para dar um exemplo, o Banco Real (Santander Brasil) cobra 146% no cheque especial no Brasil, enquanto o Santander na Espanha cobra 0% (zero por cento) por seis meses até cinco mil euros. Os ganhos dos grupos estrangeiros no Brasil sustentam assim as matrizes. Lembremos ainda que a Anefac apresenta apenas os juros, sem mencionar as tarifas cobradas. Os resultados são os spreads fantásticos e lucros impressionantes que o setor apresenta, sobre um volume de crédito no conjunto bastante limitado (39% do PIB) para uma economia como o Brasil. A intermediação financeira tornou-se assim um fator central do chamado “custo Brasil”, e um vetor central da concentração de renda. Os lucros são tão impressionantes, que ao abrigo deste cartel mesmo grupos de comércio, em vez de se concentrar em prestar bons serviços comerciais, hoje se concentram na intermediação financeira.

Em termos de remuneração do trabalho, o processo no caso brasileiro é bastante mais dramático, pois a queda da participação da remuneração do trabalho na renda nacional, durante o período, foi da ordem de 45% para 35%, o que representa ao mesmo tempo uma queda mais acelerada do que os países desenvolvidos vistos anteriormente e um nível absurdamente baixo. Em período mais recente, apesar dos fortes avanços sociais do governo Lula, menos da metade dos ganhos de produtividade do trabalho foi repassada ao trabalhador.

Os números apontam para o bom momento econômico e social do país. Entretanto, é preciso estar atento para o fato de que o mundo do trabalho ainda não é capaz de repassar ao trabalhador parte significativa dos ganhos obtidos nos últimos anos. A Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física do IBGE indica, por exemplo, que entre 2001 e 2008, houve aumento de produção física da indústria brasileira na ordem de 28,1%, com ganhos de produtividade do trabalhador de 22,6%. A folha de pagamento por trabalhador, em contrapartida, cresceu, em termos reais, 10,5% no mesmo período de tempo. Por conta disso, o Custo Unitário do Trabalho (CUT) – entendido como a razão entre o rendimento real médio por trabalhador ocupado e a produtividade – apresentou queda de 10,2% no mesmo período de tempo. Noutras palavras, a remuneração dos trabalhadores não tem acompanhado plenamente os ganhos de produtividade da indústria brasileira. Se não são os salários a incorporar completamente os ganhos de produtividade, não podem ser percebidos sinais de pressão sobre os custos de produção, o que poderia sugerir alguma pressão inflacionária. Sem o repasse pleno da produtividade aos trabalhadores, estimula a expansão do estrato superior na distribuição de renda no Brasil.

O Brasil tem evidentemente um grande trunfo na mão, que é a possibilidade de usar os bancos oficiais para reintroduzir concorrência no mercado cartelizado, permitindo ao mesmo tempo dinamizar a economia ao estimular consumo e investimento. Este mecanismo, ao que tudo indica, está sendo progressivamente implantado. O sistema de intermediação financeira dos grandes grupos terá de evoluir para mecanismos de concorrência, inclusive porque a cartelização é ilegal. No curto prazo, no entanto, parece claro que o funcionamento protegido da concorrência de um grupo de gigantes com lucros imensos gera, paradoxalmente, uma situação mais estável do que a da sobre-exposição dos grupos financeiros dos países desenvolvidos. O problema aqui é de que em vez de termos intermediários financeiros que facilitam as iniciativas econômicas, temos atravessadores que as encarecem. A intermediação financeira tornou-se aqui num dos principais instrumentos de concentração de renda e de desequilíbrios sociais.

No geral tanto nos países desenvolvidos, como no Brasil, cada vez mais os lucros corporativos estão alimentando atravessadores financeiros, gerando uma ampla classe de rentistas. A questão, vista do ponto de vista de “quem paga”, tende a deslocar-se, na visão das pessoas, para pensar melhor em “a quem pagamos”. Trata-se de poupanças da população. Este ponto é essencial, pois tratando-se de um cassino gerado com dinheiro da população, proteger os especuladores pode legitimamente ser apresentado como uma proteção à própria população, pois é o dinheiro dela que está em risco. Isto gera, evidentemente, uma posição de chantagem, e uma correspondente posição de poder. E permite deixar de lado o que deve ser a questão central da canalização das poupanças: não se os intermediários estão ganhando ou perdendo dinheiro, mas a que agentes econômicos, a que atividades, a que tipo de desenvolvimento e com que custos ambientais devem servir estas poupanças. Bastará assegurar que não quebre um sistema cujo produto final não está servindo?

Para o Brasil, paradoxalmente, a crise financeira pode representar uma oportunidade. Somos o país da desigualdade. A metade da população ainda precisa ter acesso ao consumo básico diversificado, incluindo nisto não só o alimento e outros bens de primeira necessidade, mas também o consumo de bens sociais como saúde e educação, de infraestruturas sociais como redes de saneamento e redes de banda larga de comunicação e assim por diante. Em outros termos, uma expansão dos programas, em grande parte já desenvolvidos pelo governo, tem a virtude de ao mesmo tempo começar a resgatar a nossa imensa dívida social, e de dinamizar, através da maior demanda agregada (consumo popular e investimento público), as próprias atividades empresariais. Reorientar as nossas capacidades de financiamento cada vez mais neste sentido – ainda que reduzindo a dimensão do rentismo financeiro e das atividades especulativas – faz todo sentido.

As medidas propostas: salvar o sistema ou transformá-lo? Naturalmente, dado o peso político do sistema especulativo mundial engendrado nas últimas décadas, predomina na mídia e nas tomadas públicas de posição a busca de um simples conserto, um “arreglo” como dizem os hispânicos, que permita aos especuladores voltar aos bons dias. Inclusive, quase não se encontram explicações sobre os mecanismos: a mídia se concentra no que se tem chamado de “economia de elevador”, jogando diariamente cifras sobre porcentagens de ganhos e perdas, e entrevistando magos que decifram o futuro dos altos e baixos, sobre os quais em geral não têm a mínima ideia. A palavra chave, que protege o consultor, é sempre que “o mercado está nervoso”, o que implica cientificamente que tudo é possível.

Mas a realidade é que algumas coisas mudaram de forma irremediável, constituindo deslocamentos sistêmicos. Primeiro, há o fato que a credibilidade dos Estados Unidos e o seu papel de liderança planetária, já fortemente abalados pelos golpes desferidos contra as Nações Unidas, as guerras irresponsáveis, o uso escancarado da tortura, e o desprezo geral pela concertação internacional – afundaram de maneira impressionante. Houve um deslocamento geopolítico sistêmico em direção ao mundo multipolar.

Segundo, se já depois do calote de Nixon em 1971, com a desvinculação do dólar da sua cobertura em ouro, já se falava na morte do sistema Bretton Woods, hoje a visão torna-se muito mais ampla, pois houve uma falência generalizada dos mecanismos de regulação que se acreditava serem funcionais. Em particular, a regulação financeira havia sido montada como instrumento destinado a impedir o comportamento irresponsável por parte dos países em desenvolvimento, e a crise surge nos países que se propunham como modelo. Não há instrumentos de regulação multilateral para esta situação. A imagem de um Bretton Woods II, no sentido de uma reformulação sistêmica dos processos regulatórios e das regras do jogo, está no horizonte.

Um terceiro ponto importante, é que diferentemente da crise de 1929, em que cada país se recolheu em posturas defensivas para lamber as suas feridas em mercados protegidos, desta vez há uma atitude concertada e multilateral para se enfrentar a crise. A rapidez com a qual se levantaram recursos para salvar instituições cuja credibilidade é baixíssima, mas cujo poder de estrago é imenso, aponta para uma nova cultura de construção de políticas multilaterais, mas também para o imenso poder político dos especuladores, que tudo farão para conter mudanças estruturais.

Quarto, e particularmente importante para nós, com a reunião do G20 em 15 de novembro de 2008, há pela primeira vez um reconhecimento planetário de que o mundo dito “em desenvolvimento” existe não apenas como fonte de matérias primas e de problemas, mas como fator essencial da construção de soluções.

Finalmente, o abalo planetário da confiança nas instituições financeiras não tem volta, pois são milhões os que foram prejudicados nas suas poupanças ou aposentadorias, e circulam em todos os meios de comunicação as contabilidades duplas, o uso dos paraísos fiscais para fraudar tanto o público como as obrigações fiscais, a falsificação dos dados sobre a situação real das instituições, o compadrio que preside às atividades das agências de avaliação de risco. No caso da Enron, depois da WorldCom e da Parmalat, houve uma ofensiva de propaganda em defesa do sistema, sugerindo a imagem das maçãs podres (bad apples) num sistema saudável. Hoje, esta imagem mudou, e a reconstrução da confiança só se dará no quadro de mudanças sistêmicas. São muitas bad apples. Esta mudança de contexto ainda não chegou a Basiléia.

Não é o caso aqui de entrar no detalhe da enxurrada de propostas que surgem, veremos apenas os rumos gerais. É interessante consultar as 47 propostas elencadas na sequência da reunião do G20 em novembro de 2008, a bateria de sugestões desenvolvidas por Barack Obama para reequilibrar a economia norte-americana (indo bastante além do mercado financeiro), a consulta organizada por Eichengreen a um conjunto de especialistas dias antes da reunião do G20, as propostas preliminares do Comitê de Supervisão Bancária de Basileia. Trata-se por enquanto de propostas, não mais do que isto.

Da mesma forma como Bretton Woods exigiu dois anos de preparação por equipes técnicas, não se fará uma reformulação real em pouco tempo. Trata-se, até agora, de uma ampla lista de idéias. E não devemos perder de vista que os responsáveis (e beneficiários) do sistema jogarão a carta do tempo, esperando que a crise amaine para que nada mude. Elencamos a seguir alguns elementos destas primeiras propostas, sabendo que ainda carecem do arcabouço técnico de sua sistematização e do poder político de sua implementação.

Agrupando as propostas segundo os seus eixos de impacto, as mais significativas vêm na área da governança, já que claramente ninguém estava governando coisa alguma.22 A principal questão envolve a existência ou não de um instrumento supranacional de regulação financeira global, na linha de uma World Financial Organization (WFO) análoga à Organização Mundial do Comércio (WTO na sigla inglesa). Dado o caráter internacional dos processos especulativos, a sua evolução para sistemas racionais de canalização de capitais em função de necessidades reais do desenvolvimento terá de alguma forma ser coordenada ao nível mundial. Na reunião do G20, qualquer opção neste sentido foi vetada pelos Estados Unidos, que colocaram nas resoluções a afirmação de que os problemas serão resolvidos antes de tudo pelos “reguladores nacionais”. Os Estados Unidos assim preservam a sua capacidade de agir mundialmente, mas de se regularem nacionalmente. Com esta visão, evidentemente, simplesmente não haverá regulação.

Sobra então a cosmética relativa às organizações multilaterais existentes. Isto envolve a capitalização do Fundo Monetário Internacional, cujos recursos, da ordem de 250 bilhões de dólares, são ridículos frente à dimensão dos rombos financeiros gerados pelos bancos. Propõe-se igualmente a redistribuição dos votos no Fundo, retirando o poder de veto dos EUA. O BIS deveria também passar a ser administrado de forma mais ampla e receber maiores poderes e assim por diante. Continuamos, no entanto, no quadro destas propostas, com o dilema central: a finança se tornou mundial, mas não há nada que se pareça com um banco central mundial. Fluxos mundiais versus regulação nacional; processos globais versus gestão fragmentada. Who’s in charge?

Neste plano tem sido ainda colocado um argumento central: com a regulação fragmentada atual, qualquer país que passe a exercer algum controle sobre o movimento de entrada e saída de capitais, visando assegurar o seu uso produtivo e evitar os movimentos pró-cíclicos, passa imediatamente a ser discriminado nos movimentos, tanto pelos investidores institucionais como pelas agências de risco. A regulação, nestas condições, ou é planetária ou ineficiente.

Os conteúdos da regulação reforçada proposta são relativamente óbvios, e não muito misteriosos: trata-se antes de tudo de limitar a alavancagem, que atingiu conforme vimos níveis absurdos. Trata-se também de assegurar a transparência dos processos, e de organizar o acesso às informações não apenas individualmente, mas em termos sistêmicos.24 Uma exigência igualmente óbvia é o controle da dupla contabilidade, que se generalizou, bem como o controle dos paraísos fiscais e das fraudes associadas ao “off-shore” financeiro. As agências de avaliação de risco ganhariam um quadro regulatório (“regulatory framework”) e não poderiam ser financiadas por quem avaliam.

Este tipo de recomendações constitui uma visão de que o sistema deve se manter, mas a sua governança deve melhorar. O problema básico, naturalmente, é o das próprias condições da governança. O elefante no meio da sala – o que não dá para não ver, e que é grande demais para mover – é o pequeno clube de gigantes mundiais que maneja todo este processo, que desencadeou o caos e que chamamos por alguma razão misteriosa de “forças de mercado”. A delicadeza com que se trata este grupo comove. Na declaração do G20 de 15 de novembro, merece apenas três linhas: “As instituições financeiras também (!) devem arcar com a sua parte da responsabilidade na confusão (turmoil), e deveriam fazer a sua parte para superá-la, inclusive reconhecendo as perdas, melhorando a informação (disclosure) e fortalecendo a sua governança e práticas de gestão de risco”.

Claessens é dos poucos que coloca com clareza a necessidade de “um novo regime para os grandes bancos internacionais”: “One internally consistent approach, perhaps the only one, is to establish a separate regime for large, internationally active financial institutions. This would mean an ‘International Bank Charter” with accompanying regulation and supervision, liquidity support, remedial actions as well as post-insolvency recapitalisation fund in case things go wrong. The idea is that a separate international college of supervisors, with professionals recruited internationally, would regulate, license and supervise these institutions" Em troca destas mudanças, os grupos poderiam “agir livremente”.

No conjunto, é óbvio que um sistema onde um país detém o poder de emitir uma moeda cujo uso é internacional, é estruturalmente desequilibrado. Qualquer proposta de se regular gigantes planetários sem haver um sistema supranacional efetivo é estruturalmente ineficaz. Na realidade, estamos aqui no reino do “wishful thinking”, de propostas destinadas a negociar a transição até sairmos magicamente do fundo do poço, para saudar a volta dos happy days e esperar a próxima crise. A grande incógnita neste início de 2009, é o próximo presidente dos Estados Unidos, que recebe um país profundamente desmoralizado e caótico nos planos político, militar, econômico e sobretudo ético. O caos gerado nesta presidência Bush, em que o poder de fato foi exercido não por um presidente, mas por corporações, políticos corruptos e fundamentalistas religiosos, abre espaço para mudanças profundas. Se as forças que estão se agregando em torno a Barack Obama terão dinamismo suficiente para gerar mudanças institucionais, é um ponto de interrogação, mas em todo caso é um potencial e uma oportunidade. Aliás a crise, ao cimentar a eleição de Obama, algo de positivo já trouxe.

A convergência das crises: um outro desenvolvimento, outras instituições

Tivemos portanto de imediato numerosas propostas de consertos do sistema, sem mexer na sua lógica. A intenção é claramente mostrar que no futuro será diferente, pois teremos governos severos e austeros que cobrarão resultados. Haverá postura e ética no sistema reformado. E os grupos responsáveis por tudo isto, que aliás aparecem tão pouco na mídia quando os dias são bons, passarão a se comportar de maneira socialmente responsável. As propostas surgem mesmo sem muita base institucional ou elaboração técnica, porque uma massa de poupadores no planeta está sendo atingida diretamente – da classe média para cima – pelo derretimento das suas poupanças e das suas esperanças de aposentadoria.28 E na medida em que o caos financeiro gerado pelos especuladores está atingindo os produtores efetivos de bens e serviços, é o povo em geral que passa a sofrer as consequências. Dentro do sistema, há uma clara consciência da volatilidade política da situação. Propostas, em consequência, surgem rapidamente. A sua implementação – a não ser os trilhões demandados pelos grandes grupos – obedecerá a outros ritmos.

O caos sistêmico gerado e a clara perda de governança econômica, frente ao desespero de uma imensa massa de pessoas prejudicadas, estão gerando um novo clima político. Estão se abrindo possibilidades de se colocar na mesa propostas mais amplas no sentido de um desenvolvimento que tenha pé e cabeça. Mais precisamente, gera-se um espaço para que surjam alternativas de desenvolvimento, e para que – não parece um objetivo exorbitante – o nosso próprio dinheiro sirva para fins úteis. Não se deve sonhar excessivamente – muito do espaço político gerado dependerá da profundidade da crise – e esta é uma incógnita. Mas é importante sim organizar alternativas sistêmicas, pois o que estamos sofrendo é uma crise estrutural de curto e médio prazos dentro de um quadro de crises mais amplas que se avizinham, particularmente nos planos social, climático, energético, alimentar, de água e outros.

As propostas que estão surgindo vêm de pessoas como Jeffrey Sachs, que propõe que o uso dos recursos financeiros seja formalmente vinculado à construção das Metas do Milênio. Stiglitz trabalha com uma visão de fazer os objetivos de qualidade de vida nortearem a alocação de recursos, e não apenas o chamado Produto Interno Bruto. Hazel Henderson resgata a importância da taxa Tobin, que cobraria um imposto sobre transações internacionais especulativas para financiar um desenvolvimento socialmente mais justo. Ignacy Sachs trabalha com a visão de uma convergência da crise financeira com a crise energética e a necessidade de repensarmos de forma sistêmica o nosso modelo de desenvolvimento. Não se trata aqui de um idealismo excessivo, e sim de uma apreciação fria dos nossos desafios.

O gráfico que apresentamos abaixo constitui um resumo de macro-tendências, num período histórico de 1750 até a atualidade. As escalas tiveram de ser compatibilizadas, e algumas das linhas representam processos para os quais temos cifras apenas mais recentes. Mas no conjunto, o gráfico permite juntar áreas tradicionalmente estudadas separadamente, comodemografia, clima, produção de carros, consumo de papel, apropriação da água e outros. A sinergia do processo torna-se óbvia, como se torna óbvia a dimensão dos desafios ambientais. O comentário do New Scientist é igualmente significativo:

The science tells us that if we are serious about saving the Earth, we must reshape our economy. This, of course, is economic heresy. Growth to most economists is as essential as the air we breathe: it is, they claim, the only force capable of lifting the poor out of poverty, feeding the world’s growing population, meeting the costs of rising public spending and stimulating technological development – not to mention funding increasingly expensive lifestyles. They see no limits to growth, ever. In recent weeks it has become clear just how terrified governments are of anything that threatens growth, as they pour billions of public money into a failing financial system. Amid the confusion, any challenge to the growth dogma needs to be looked at very carefully. This one is built on a long standing question: how do we square Earth’s finite resources with the fact that as the economy grows, the amount of natural resources needed to sustain that activity must grow too? It has taken all of human history for the economy to reach its current size. On current form, it will take just two decades to double. (Fonte: New Scientist, 18 October 2008, p 40).

Estamos aqui entre pessoas que entenderam que se trata de um sistema que sem dúvida deixou de funcionar, e que está portanto em crise, mas que sobretudo é um sistema que quando funciona é inviável. As soluções têm de ser mais amplas. Esta visão mais ampla pode – e apenas pode – viabilizar mudanças mais profundas.

A crise financeira tem esta particularidade de ser pouco transparente em termos de dinâmicas e de soluções, para a população em geral. Não é muito viável se colocar na rua grandes manifestações relativas à mudança dos mecanismos de regulação do BIS de Basileia. A grande defesa do sistema absurdo de especulação que enfrentamos, é que pouquíssimas pessoas entendem o que se passa. Mas se os mecanismos são obscuros, os impactos são visíveis, e estes sim podem mobilizar.

A perda de empregos por parte de gente que estava cumprindo bem as suas funções produtivas, porque uns irresponsáveis gostam de ganhar dinheiro com poupança dos outros, gera indignação. A perda da base de sobrevivência de cerca de 300 milhões de pessoas no planeta que viviam de pesca artesanal, porque grandes empresas de pesca oceânica estão acabando com a vida nos mares, está gerando outra faixa de irritações políticas. O caos climático está trazendo as primeiras amostras do seu potencial, e está gerando outros desesperos, além de tomadas mais amplas de consciência. A contaminação da água doce por excessos de quimização, insuficiências clamorosas de saneamento, e esgotamento de lençóis freáticos, está levando a um conjunto de crises setoriais que envolvem desde a redução da pesca até à tragédia de 1,8 milhão de crianças que morrem anualmente por não ter acesso à água limpa, e à ameaça de regiões rurais que dependiam de uma segunda safra com irrigação.

Não é o caso aqui de fazer um elenco das nossas tragédias. Mas o fato é que, com um pouco de recuo, já não são crises setoriais, e representam sim uma crise mais ampla de governança local, nacional, regional e planetária. Há uma convergência de problemas que se avolumam, cuja sinergia os torna mais ameaçadores, e cuja raiz comum encontra-se ao fim e ao cabo no fato que os nossos mecanismos atuais de governança não são suficientes. Com a globalização, financeirização e oligopolização de grandes eixos de atividades econômicas, o mercado perde de forma acelerada as suas funções reguladoras. E as alternativas, particularmente a capacidade de planejamento e de intervenção organizada, foram desativadas.

Ignacy Sachs resume bem o dilema: que desenvolvimento queremos? E para este desenvolvimento, que Estado e que mecanismos de regulação são necessários? Não há como minimizar a dimensão dos desafios. Com 6,7 bilhões de habitantes – e 70 milhões a mais a cada ano – que buscam um consumo cada vez mais desenfreado, e manejam tecnologias cada vez mais poderosas, o nosso planeta mostra toda a sua fragilidade. A questão básica que se coloca para a reformulação do sistema de intermediação financeira é que é criminoso o desperdício das nossas poupanças e do potencial mundial de financiamento no cassino global, quando temos desafios sociais e ambientais desta dimensão e urgência, e que necessitam vitalmente de recursos.

O desperdício de recursos financeiros nas dinâmicas atuais é avassalador. Segundo as Nações Unidas, “medidos em termos de paridade de poder de compra do ano 2000, o custo de se liquidar a pobreza extrema – o montante necessário para puxar 1 bilhão de pessoas para cima da linha de pobreza de $1 por dia – é de $300 bilhões”.30 A realidade é que a utilidade marginal do dinheiro, em termos de sua capacidade de gerar qualidade de vida, decresce rapidamente quanto mais se eleva a renda. Em outros termos, quanto mais os recursos são orientados para a baixa renda, maior é a utilidade. Em termos prosáicos, rendem mais. Assegurar a renda mínima planetária faz todo sentido, é uma forma simples, com as tecnologias atuais, de multiplicar o valor real dos recursos. Como, além do mais, os recursos que chegam à base da pirâmide são transformados em demanda efetiva, e não em especulação, estimulando portanto a produção e o emprego, é a própria produtividade sistêmica dos recursos que aumenta. A solução que permite enfrentar simultâneamente os dramas sociais, os desafios ambientais e a racionalidade no uso de recursos econômicos está na resposta organizada às necessidades mais prementes da base da pirâmide. Estamos vivendo a era do desperdício. É tempo de orientar os recursos para os seus usos mais produtivos.

As alternativas não serão construídas da noite para o dia. Algumas medidas são óbvias, e já estão sendo amplamente discutidas: controlar os paraísos fiscais, taxar os movimentos especulativos, organizar sistemas de controle e regulação sobre os intermediários financeiros, voltar a separar as atividades propriamente bancárias dos investidores institucionais, criar sistemas locais de financiamento e assim por diante. Mas numa visão mais abrangente, temos de estar conscientes de que estamos enfrentando a construção de uma nova institucionalidade. O planeta não sobrevive – e muito menos o bípede curiosamente chamado de homo sapiens – sem amplos processos colaborativos, visão de longo prazo, planejamento e intervenções sistêmicas. O papel do Estado precisa ser resgatado, já não como socorro de iniciativas corporativas irresponsáveis, mas como articulador de um desenvolvimento mais justo e mais sustentável, e com forte participação da sociedade civil organizada.

Um outro mundo não é apenas possível, é necessário. O desafio para o mundo progressista é aproveitar as janelas de oportunidade que a crise financeira nos abre, para sistematizar uma visão alternativa. Temos de mostrar que uma outra gestão é possível.

Viável? Lamentavelmente, esta não é a questão. As medidas terão de ser tomadas. O aquecimento global, por exemplo, está se dando, e a opção de se queremos ou não enfrentá-lo não está na mesa, e sim o como. A crise financeira representa apenas uma oportunidade – e não uma garantia – para organizarmos uma convergência de forças da sociedade interessadas num desenvolvimento que tenha um mínimo de viabilidade econômica, de equilíbrio social e de sustentabilidade.
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Fonte: Le Monde Diplomatique

Movimentos sociais definem agenda de mobilização para 2009

Criação de G8 ampliado e comemoração de 60 anos da OTAN serão alvos de protestos. Foi proposta uma semana de protestos contra o capital e a guerra entre os dias 28 de março e 4 de abril, período no qual, segundo as organizações européias, será criada uma nova articulação de países ricos que, além dos oito do G8, incluirão as demais 12 nações mais ricas do mundo.
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Verena Glass
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BELEM – Um pouco adiantados no cronograma do FSM, os movimentos sociais realizaram nesta sexta (30) - e não no último dia do Fórum, como de costume - a assembléia geral que define os focos de ação e as agendas de luta internacionais unificadas.
Mais esvaziada do que nas edições anteriores- muitos movimentos estavam realizando atividades no Fórum -, a articulação, que reuniu principalmente organizações da América Latina e da Europa, fez uma avaliação contundente da crise global do capitalismo e seus aspectos econômico, alimentar, climático, energético e político. De acordo com os movimentos, as soluções à crise apontadas até agora pelos governos buscam apenas socializar os prejuízos, ao mesmo tempo que tendem a transferir os recursos da periferia para o centro do poder econômico.
Como contraponto a este quadro, a assembléia apontou algumas prioridades de luta, como um novo paradigma produtivo baseado na sustentabilidade do uso dos recursos naturais, a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais em todas as agendas reivindicatórias em nível multilateral, a redução da jornada de trabalho sem redução salarial, o direito aos territórios para as comunidades indígenas e tradicionais, e um investimento massivo no trabalho de formação política das bases sociais, entre outros. Avaliou-se também que as dificuldades enfrentadas com o colapso do modelo neoliberal poderá ajudar na organização de um novo patamar de lutas sociais.Em relação à agenda de mobilizações, além das datas tradicionais como os dias internacionais da mulher e dos trabalhadores rurais, e da cúpula do G8, em julho, da Cúpula das Américas, em abril, e do Clima, em dezembro, foi proposta uma semana de protestos contra o capital e a guerra entre os dias 28 de março e 4 de abril, período no qual, segundo as organizações européias, será criada uma nova articulação de países ricos que, além dos oito do G8, incluirão as demais 12 nações mais ricas do mundo. Segundo os movimentos europeus, que convocaram grandes mobilizações contra a iniciativa, este seria um mecanismo definitivo de controle, por parte de poucos, de todo o sistema econômico e produtivo mundial.
Outro evento que deve gerar grandes protestos será a comemoração dos 60 anos da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no dia 4 de abril em Estrasburgo, na França.Para este evento, os movimentos tentarão reeditar os grandes protestos de rua que antecederam a invasão americana do Iraque em 2003. Por último, o dia 30 de março deverá ser uma data unificada de ações de apoio à Palestina e contra os crimes de guerra cometidos por Israel nesta última ofensiva contra Gaza.
Fonte: Agência Carta Maior

30/01/2009

A ESCANDALOSA OPERAÇÃO DE SALVAMENTO DO GRUPO VOTORANTIM

Nota Política do PCB
O governo brasileiro vem agindo diante da crise mundial do capitalismo, exatamente da mesma maneira que os demais governos burgueses. Até agora, todas as medidas adotadas foram para beneficiar o capital. Para os trabalhadores, só demissões e ameaças de perdas de direitos.
O governo queima dinheiro público (financiamentos generosos, renúncia fiscal etc.) para manter empresas privadas ameaçadas de falência, sem exigir nem ao menos a contrapartida de que mantenham empregos. Por exemplo, o setor de bebidas e alimentos, maior beneficiário de recursos do BNDES nos últimos meses, foi o que mais demitiu no período. A melhor solução seria o setor público assumir o controle destas empresas, em parceria com os trabalhadores, o que permitiria um melhor controle da economia, a manutenção e a criação de empregos e o barateamento dos preços dos produtos básicos ao consumidor.
A chamada MP dos Bancos Federais é uma vergonha. O governo obriga o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a comprarem ativos podres, acima do preço de mercado, comprometendo a saúde e o futuro desses bancos públicos e deturpando seus objetivos, que deveriam ser sociais. Os exemplos da Nossa Caixa e do Banco Votorantim são emblemáticos. Se fossem bons negócios, não precisa a MP, pois algum banco particular os compraria.
O caso do Banco Votorantim, em particular, é criminoso, um escândalo nacional. Recursos públicos foram usados para salvar capitalistas que perderam no cassino dos derivativos. Pagando um preço que daria para comprar quase o Banco todo, o Banco do Brasil adquiriu apenas 49% da instituição, que é para a família Ermírio de Moraes continuar no comando, com o controle acionário.
Como se não bastasse, o BNDES concedeu R$2,4 bilhões para a Votorantim Papel e Celulose comprar ações da Aracruz Celulose, que estava endividada. O governo federal, ao invés de implantar a reforma agrária nas terras em que a Aracruz criou um deserto verde, favorece um setor (plantação de pínus e eucalipto) que, além de gerar pouco emprego, destrói o meio ambiente.
O Brasil precisa conhecer o que está por trás destas nebulosas transações. É fundamental alguma iniciativa parlamentar, com respaldo popular, no sentido de criar uma CPI dos Bancos Públicos ou, pelo menos, da convocação do Ministro da Fazenda para um depoimento público a respeito. Outra medida que se impõe é a revelação da vasta lista de políticos que recebem dinheiro do Grupo Votorantim, um dos maiores financiadores de campanhas eleitorais.
Partido Comunista Brasileiro
Comissão Política Nacional
Janeiro de 2009

29/01/2009

A crise dos grandes jornais

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Mais empresas e grupos midiáticos devem fechar jornais nos próximos meses. O novo príncipe, como Octavio Ianni definiu o poder midiáticos dos nossos tempos, está em crise existencial.
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Bernardo Kucinski
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De repente, não mais que de repente, grandes jornais do mundo Ocidental entraram em crise financeira aguda. Entre eles o New York Times, ícone do capitalismo Ocidental, o El Pais, símbolo do novo expansionismo ibérico, o poderosos Chicago Tribune e o veterano Christian Science Monitor. Estão sem caixa. Alguns, venderam seus prédios, outros buscam injeções de capital, redações foram reduzidas à metade. O Christian Science Monitor deixou de vez a forma impressa, ficando só na internet.. Será o começo do fim da era dos grandes jornais?
Ignácio Ramonet apontou ,no Fórum de Mídia Livre desta segunda feira, para a estreita relação, quase que orgânica, entre o capital financeiro e os grande grupos de mídia. É como os bancos fornecessem o combustível dos conglomerados midiáticos. Quando advém ao estrangulamento do crédito, principal mecanismo desta crise depois do colapso dos grandes bancos americanos e alguns europeus, precipita-se uma situação de insolvência que já vinha tomando forma desde que a internet começou a comandar a dinâmica do jornalismo. Para Ramonet , o aprofundamento e o espalhamento da recessão econômica, etapa seguinte desta crise, afeta profundamente o modo de produção da grande mídia, principalmente ao reduzir sua principal fonte de financiamento, a publicidade. São três pauladas sucessivas na grande mídia impressa.
Primeira paulada: o esvaziamento de suas funções pela interne, processo de natureza estrutural que deverá se aprofundar.
Segunda paulada: o estrangulamento do crédito, fator apenas temporário mas que precipitou decisões radicais, algumas irreversíveis.
Terceira paulada: a queda das receitas publicitários, que está apenas no começo , devendo perdurar pelo tempo das grandes recessões, em geral três a cinco anos.
Os grandes jornais já vinham sofrendo há muito tempo a erosão de suas funções editoriais principais, apontaram nessa mesma sessão do Fórum os jornalistas Pascual Serrano do site Rebellion, e Luiz Navarro, do La Jornada. Na invasão do Iraque, por exemplo, a grande mídia americana tornou-se uma disseminadora de mentiras geradas pelo governo. Com isso, negou sua função jornalística principal de asseverar verdades.
Também perdeu sua função mediadora, na medida em que abandou a mediação dos grandes problemas que efetivamente interessam à população .E mais; perdeu legitimidade, perdeu autenticidade. Conclusão: mais empresas e grupos midiáticos devem fechar jornais nos próximos meses. O novo príncipe, como Octavio Ianni definiu o poder midiáticos dos nossos tempos, está em crise existencial.Bom para a democracia? Talvez não. Ruim com os grandes jornais, pior sem eles.
A democracia de massa precisa meios de comunicação de massa para funções de mediação e agendamento do debate nacional e mundial, que a mídia pequena ou alternativa não tem escala para exercer.O que interessa à democracia é que esse espaço, o da comunicação de massa seja habitado por uma mídia mais plural, mais comprometida com os valores humanos e menos com os ditames do capitalismo. Vários participantes desse debate apontaram para a necessidade do campo popular disputar a hegemonia da grande imprensa, com projetos de mesmo porte.
Também foram cobradas políticas publicas mais audazes de democratização do espaço midiático por parte dos novos governos da América do Sul. E mais empenho das entidades mais poderosas da sociedade civil na ocupação desse espaço. A hora é agora, quando a crise jogou os tycoons da comunicação na defensiva, e as novas tecnologias favorecem o pluralismo no espectro eletromagnético e barateiam a produção dos meios impressos.

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

28/01/2009

Das consequências do revisionismo

KIM IL SUNG
Em julho passado encontrei-me com uma delegação de veteranos de guerra da Federação Russa, que estava de visita em nosso país para participar no ato de comemoração do 40° aniversário da Vitória na Guerra de Libertação da Pátria. Seu chefe era um herói da ex-União Soviética, que esteve no nosso país depois da libertação. Tinha amizade comigo e com a companheira Kim Jong Suk. Naquela oportunidade, dei-lhe de presente um relógio de bolso e tirei uma fotografia com ele. Em sua visita recente trouxe aquela foto. Mantive uma conversa com ele depois de muito tempo sem nos ver, e perguntei-lhe como devia chamá-lo agora: camarada ou Sua Excelência. Ele pediu que continuasse chamando-o de camarada. Disse-lhe, então, que deveria ter o carnê do partido para ser digno desse tratamento e respondeu que ainda o conservava. Inquiri por que a União Soviética se desintegrou quando tinha 18 milhões de membros do Partido Comunista; respondeu que deveu-se ao fato do partido não ter realizado a educação ideológica.
A causa pela qual a União Soviética e outros países da Europa Oriental capitularam perante a estratégia de “transição pacífica” do imperialismo norte-americano é principalmente que esses países não promoveram de forma adequada a luta pela conquista da fortaleza político-ideológica, persistindo só no propósito de atingir a fortaleza material. A União Soviética foi um país poderoso que derrotou a Alemanha fascista na Segunda Guerra Mundial. Seu poderio se deveu à acertada direção de Stalin e à união do partido e do povo em torno de seu líder. Durante a Segunda Guerra Mundial, Stalin dirigiu o exército e o povo permanecendo em Moscou, inclusive quando as tropas da Alemanha estavam nas proximidades dessa cidade, e organizou até os desfiles militares pela comemoração do aniversário da vitória da Revolução Socialista de Outubro. Superando a situação difícil da guerra, organizou uma contra-ofensiva, assestou golpes demolidores aos inimigos, e garantiu uma vitória histórica da União Soviética.
Isto evidencia que Stalin foi um grande dirigente. Depois de seu falecimento, Nikita Krushov tomou o poder urdindo intrigas e aplicou uma política revisionista. Com o pretexto de se opor ao “culto à personalidade” desacreditou Stalin, debilitou de modo sistemático o partido e não realizou a educação ideológica dos militantes e demais trabalhadores, o que debilitou seu espírito. Depois de Krushov tampouco se realizou devidamente o labor ideológico do partido. Como conseqüência, a vontade de fazer a revolução cedeu lugar às idéias burguesas e revisionistas. As pessoas passaram a pensar só no dinheiro, na casa de campo e no carro, e na sociedade prevaleceu um modo de vida propenso à corrupção e degeneração. Como não se promoveu a educação revolucionária, não se pôde desenvolver a edificação econômica.

Trecho extraído do discurso “Sobre a direção imediata da construção econômica socialista”, pronunciado no XXI Pleno do Sexto Período do Comitê Central do Partido do Trabalho da Coréia, em 8 de dezembro de 1993. Publicado no volume 44 das Obras Completas.

27/01/2009

Constituição significa refundação da Bolívia

O presidente boliviano Evo Morales saudou a vitória no referendo sobre a nova Constituição boliviana como o fim do Estado colonial, do colonialismo interno e externo. "Hoje é a refundação da Bolívia", comemorou. Algumas das principais propostas aprovadas: tamanho máximo das propriedades rurais será de 5 mil hectares; povos indígenas passam a ter a propriedade dos recursos florestais e direitos sobre a terra e recursos hídricos; empresas estrangeiras serão obrigadas a reinvestir seus lucros na Bolívia.

O Sim ganhou o referendo sobre a nova Constituição da Bolívia com cerca de 60% dos votos. Nos quatro departamentos onde a oposição ao presidente Evo Morales detém o poder o "Não" ganhou. Na pergunta sobre o tamanho máximo de uma propriedade agrícola (10.000 ou 5.000 hectares), a opção 5.000 ganhou por 78%, tendo triunfado mesmo nos departamentos da chamda "meia lua" (reduto da oposição).
O presidente Evo Morales declarou, no discurso que fez após ser conhecida a vitória: "Hoje é a refundação da Bolívia (...) é o fim do Estado colonial, termina o colonialismo interno e externo". O resultado do referendo, acrescentou, é "o fim da grande propriedade e dos grandes proprietários". No referendo à Constituição os resultados foram os seguintes, segundo o jornal boliviano La Prensa: Nos departamentos do Ocidente (La Paz, Cochabamba, Oruro e Potosi) o "Sim" obteve 72% e o "Não" 28%. Nos quatro departamentos da "meia lua" (Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando) 63% dos votantes disseram "Não" e 38% "Sim".
No departamento de Chuquisaca, 51% dos votantes apoiaram o "Sim" e 49% o "Não". De salientar que no departamento de La Paz, a capital, o "Sim" ganhou com 76%. Além do referendo à Constituição, os bolivianos votaram também sobre o tamanho máximo que uma propriedade rural pode ter. O artigo 398 da nova Constituição proíbe o latifúndio e o referendo punha duas alternativas como limite máximo da propriedade rural: 10.000 ou 5.000 hectares. A opção 5.000 venceu em todos os departamentos, mesmo nos da "meia lua", com uma percentagem de 78% no global do país, contra 22% para a opção 10.000 hectares. Constituição amplia direitos dos povos indígenas.
O novo texto amplia os direitos sociais e econômicos dos povos indígenas, num país em que 80% da população é formada por indígenas e mestiços que nunca se viram representados pelos governos de elite branca.Mais de 80 dos 411 artigos da nova Constituição abordam a questão indígena no país mais pobre da América Latina. Pelo texto, os 36 "povos originários" passam a dispor de uma quota obrigatória em todos os níveis de eleição, a ter propriedade exclusiva dos recursos florestais e direitos sobre a terra e os recursos hídricos.
Num dos pontos mais polêmicos, é estabelecida a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país, autorizando tribos a julgarem e punirem suspeitos de crimes segundo os seus costumes tradicionais, e não de acordo com os preceitos jurídicos herdados da colonização espanhola.A nova Constituição prevê também uma representação indígena no Tribunal Constitucional e o direito à autodeterminação dos povos indígenas em terras comunitárias."Esta bela terra nos pertence: aimarás, quéchuas, guaranis, chiquitanos... Os direitos dos que nasceram nesta terra são reconhecidos na nova Constituição", disse Morales durante a campanha do referendo... "Esse processo de mudança não tem volta, a Bolívia não retornará ao neoliberalismo", acrescentou o presidente boliviano.
Outras medidas importantes votadas no referendo foram: o cultivo da coca passa a ter proteção estatal, "como patrimônio cultural, recurso natural renovável e factor de coesão social": e a ampliação do controleo do Estado sobre a economia que vai exigir às empresas estrangeiras que reinvistam os seus lucros na Bolívia.
Fonte: Agência Carta Maior

26/01/2009

SOLIDARIEDADE A CESARE BATTISTI

(Nota Política do PCB)


O Partido Comunista Brasileiro (PCB) se solidariza com o cidadão italiano Cesare Battisti, diante da tentativa do governo neofascista de Berlusconi, mesmo sem qualquer prova, de usá-lo como um símbolo de uma campanha midiática supostamente "contra o terrorismo" que, em verdade, tem como objetivo satanizar e criminalizar as lutas populares de resistência anticapitalistas e antiimperialistas.

Temos chamado atenção para o fato de que, diante da crise sistêmica do capitalismo, a burguesia, em âmbito mundial, não hesitará em atentar contra as liberdades democráticas e em reprimir movimentos sociais e partidos do campo popular, para procurar saquear os patrimônios públicos, suprimir empregos e retirar direitos trabalhistas e sociais. Na Itália de Berlusconi, o neofascismo criminaliza e persegue imigrantes e ciganos; as forças armadas estão nas ruas, intimidando a população.

Cesare Battisti pode contar com o PCB em que tudo que estiver ao nosso alcance para libertá-lo da prisão a que foi submetido em Brasília e permanecer no Brasil, no país que o acolheu generosamente.

Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer a firmeza com que, até o momento, se tem conduzido neste episódio o governo federal, não só respeitando a tradição brasileira de concessão do asilo político, como também não se curvando às inadmissíveis ingerências do governo italiano, em desrespeito à nossa soberania nacional.

Exigimos do Supremo Tribunal Federal que sequer entre no mérito da questão que lhe foi submetida, reconhecendo preliminarmente a competência do governo federal para tratar de assuntos inerentes às relações internacionais.

Partido Comunista Brasileiro
Comissão Política Nacional
Janeiro de 2009


O próximo passo

Gideon Levy, 23/1/2009, Haaretz, Telavive
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A vasta maioria festejou aos gritos, uma minoria muito pequena gritou em silêncio, como um assovio na escuridão. A imensamente dominante maioria só queria mais e mais, a minoria muito pequena só queria que aquilo parasse. A absoluta maioria gargalhou, encomendou pizzas e filmes com cenas dos bombardeios, e muitos subiram aos telhados próximos à fronteira de Gaza, com os filhos, para assistir ao massacre com seus próprios olhos. Uma mínima maioria tentou protestar, encolhida de vergonha e de culpa, a cada nova imagem que chegava de Gaza.Nunca antes, desde o verão de 1967, viu-se tão eficaz lavagem cerebral, e tal coro tão uniformemente manipulado – e voltou então o coro nacionalista bestial, insensível, cego. Mas agora, a poeira baixou nas ruínas, e não há bandagem suficiente para cobrir todas as chagas; os cemitérios cheios, os hospitais lotados; os feridos, os quebrados, os incapacitados, os amputados, os aleijados, os traumatizados, os enlutados, os milhares de feridos e as dezenas de milhares de novos desabrigados e sem-teto tentam reabiitar o que possam. Agora, é tempo de elaborar sobre alguma alternativa à guerra mais brutal e mais cruel de toda a história de Israel, e a mais completamente desnecessária.Primeiro, há caminho que Israel jamais quis trilhar.
Nem Oslo nem a retirada de 2005 foram suficientes. Sendo a guerra sempre o meio preferido e a violência sem freio, Israel praticamente sempre falou pela força, só a violência, como única linguagem. Pela força e por golpes, Israel fez a guerra, mais uma guerra. A força veio do exército; os golpes, da imprensa. Qualquer via alternativa foi sempre condenada.Segundo, nunca é possível reconstruir, seja o que for, a partir só do que se ouve num determinado instante. Temos de lembrar o contexto, e o contexto sempre foi distorcido, a ponto de ter-se tornado irreconhecível.O cessar-fogo com o Hamas foi firmado dia 19/6/2008. Foi recebido com frieza em Israel e com o azedume com que se recebem movimentos políticos.
Ehud Olmert disse que seria "frágil e de curto-prazo", como profecia feita para se autocumprir. Nos meses seguintes, Israel foi intoxicada pelos mais aterrorizantes relatórios e análises dos serviços de segurança, sobre o quanto o Hamas se estaria armando, sobre os danos causados pelo cessar-fogo, pelos perigos que ameaçavam os israelenses por causa do cessar-fogo e sobre o quanto o Hamas, só o Hamas, beneficiava-se com o cessar-fogo. Apagou-se do mundo o fato de que os moradores do sul de Israel viveram tempos de sossego, praticamente sem nenhum Qassam. As centenas de túneis em Rafah, a maiorias dos quais traziam oxigênio para Gaza sitiada – à qual, mesmo quando se abriam os postos de fronteira, Israel sempre proibiu a chegada dos bens indispensáveis à vida, cadernos para as crianças, cimento para construir – foram descritos em Israel como se existissem exclusivamente para o contrabando de armas: túneis demoníacos, pelos quais teria passado tudo que, de algum modo, se assemelhasse a armas nucleares.
A nua verdade sobre o que estava sendo contrabandeado pelos túneis só foi conhecida na guerra: pouca, parca, fraca munição.O acordo de cessar-fogo, é preciso lembrar, incluía que Israel abriria os postos de fronteira. Depois de assinado o acordo, Israel decidiu que os postos de fronteira permaneceriam fechados, porque a passagem de Karni seria "inadequada".Depois, começou o método "zipper": fechavam-se os postos de passagem depois de cada rojão Qassam, o velho método do chicote-e-cenoura. Sim, claro que houve Qassams e morteiros – poucos, desnecessários, improdutivos, errados, estéreis – que deveriam ter sido relevados com sabedoria.
A cada evento, uma nova e maior violação do acordo de cessar-fogo, por Israel, que incluiu invasão por terra, dia 4/11/2008, para explodir uma casa e um túnel e para assassinar seis homens do Hamas – e que foi completamente ato de guerra de Israel a Gaza.Depois disso, tudo se deteriorou muito rapidamente, como Israel previa, como Israel aparentemente quis que acontecesse.Ainda que não se incluísse na discussão uma única palavra sobre o contexto amplo, histórico – os refugiados que vivem em Gaza desde 1948, o que os torna refugiados de guerra e os 40 anos de ocupação em Gaza, desde 1967 – o contexto a ser considerado hoje tem de incluir, necessariamente, o sítio e o boicote que Israel e a comunidade internacional impuseram (i) ao Hamas, partido que chegou ao poder mediante eleições perfeitamente democráticas, em janeiro de 2006; e (ii) também contra o governo palestino de unidade nacional estabelecido em março de 2007.Tudo isso aconteceu antes de o Hamas assumir o controle de Gaza, pela força, por golpe, depois de não conseguir instituir-se como poder democrático, nascido de eleições democráticas, pelo tipo de oposição que lhe fez o partido Fatah. Todo esse curso de eventos teria de ter sido conduzido de outro modo, mas, então, o leite e o sangue já estavam derramados.Nem o Hamas deveria ter sido boicotado, nem Gaza deveria ter sido sitiada. Israel nada ganhou nem com o boicote nem com o bloqueio.
O resultado está aí, a vista de todos: estamos olhando para ele.Desde a questão com a OLP (Organização de Libertação da Palestina), há anos, o rejeicionismo israelense nada trouxe de bom; só trouxe mais e mais violência, novos ciclos de violência e de radicalização, tanto dos palestinos quanto dos israelenses.Hoje, o Hamas é mais forte do que era antes da guerra; a guerra sempre fortalece os extremismos, de todos os lados, o deles e o nosso. Depois a OLP converteu-se em Hamas e hoje é Jihad Mundial. Gaza não se tornou "moderada", como interessaria a Israel; está sangrando, devastada, e Israel nada lhe ofereceu, até hoje.O sítio de Gaza fracassou, o bloqueio só trouxe danos, mesmo que se ignorem todos os seus aspectos ilegais e imorais. Agora, em vez de bloqueio – que a legislação internacional define como "castigo coletivo" e considera crime –, Israel está obrigada a abrir todas as passagens de fronteira. Abri-las, não fechá-las. Abri-las para a passagem de artigos de primeira necessidade, é claro, sim, e abri-las para a passagem de pessoas. Hoje.
Abertura controlada, como em todas as fronteiras do mundo, mas abri-las.Gaza precisa de uma passagem para o mundo, e essa passagem tem de passar por Israel. Israel não pode continuar a fingir que não ocupa Gaza há 40 anos, como se a ocupação não tivesse jamais existido e, agora, 'entregar' Gaza aos egípcios. O destino de Gaza é responsabilidade de Israel.Passagens de fronteira desimpedidas e uma via livre de acesso aos territórios ocupados da Cisjordânia e com o mundo é um dos direitos básicos dos habitantes de Gaza.Hoje, o primeiro-ministro de Israel, qualquer primeiro-ministro, todos os primeiros-ministros, têm de abrir diálogo com a Palestina, com toda a nação palestinense. Não apenas mais um diálogo, diálogo por diálogo, como o escritor David Grossman sugeriu essa semana no Haaretz – Israel já consumiu sua quota de falsos diálogos – mas negociações práticas, com objetivo, determinadas, com o claro e declarado objetivo de pôr fim à ocupação. Assim se demonstraria o "poder de contenção", a mais importante de todas as promessas e de todas as soluções.As negociações, agora, têm de visar ao estabelecimento de um Estado Palestino, nas fronteiras de 1967, que são as máximas fronteiras legais de Israel e as fronteiras mínimas, legais, da Palestina. Deve parar hoje a construção de qualquer colônia. Devem-se tomar as medidas necessárias para evacuar todas as colônias da face da terra.Basta de conversas rasas e ocas sobre se Israel estaria "preparada" para a Solução dos Dois Estados. Basta de exibir pesquisas que mostram que isto ou aquilo seria "o que a maioria dos israelenses" deseja ou não deseja. Basta de repetir o que tantos políticos e diplomatas teriam algum dia dito, contra ou a favor do Estado da Palestina.
É hora de fazer acontecer o Estado da Palestina.De nada adianta falar com o presidente Máhmude Abbas (Abu Mazen) e, ao mesmo tempo, prosseguir a construção de mais uma colônia em Modi'in Ilit. É impossível continuar a falar só com Máhmude Abbas, porque ele é ontem, é o homem de ontem para os palestinos e só representa uma pequena parte dos palestinos.Hoje, Israel tem de falar com o Hamas. Imediatamente. Pelo menos, tem de tentar falar com o Hamas.Também no Hamas há homens prontos a por de lado sonhos de ontem e visões do futuro, em nome de construir um presente melhor.É hora de libertar os prisioneiros, as centenas de prisioneiros, uns prisioneiros políticos, outros prisioneiros de guerra.
Eles também têm de poder manifestar suas esperanças nacionais, hoje.E também, imediatamente, Israel tem de dizer "Sim" à Síria, imediatamente, antes de que também esse momento propício seja desperdiçado: a paz, em troca das colinas de Golan. Hoje. É possível fazer a paz com a Síria, mediante negociações.Ao mundo árabe, Israel tem de dizer: queremos discutir a iniciativa saudita.À comunidade internacional e aos próprios israelenses, Israel deve declarar: erramos; cometemos o pecado de matar, por arrogância, nessa guerra; e pedimos perdão, do fundo do coração. Mas nem isso adiantará, se Israel não mudar, radicalmente, a direção do seu modo de pensar e de operar no mundo.Precisamente a partir dessa guerra horrenda, Israel pode começar a mudar. A partir do luto, das ruínas, dos feridos. Basta.Israel já provou seu prodigioso – talvez prodigioso demais – poder militar, inúmeras vezes, prodígio sobre prodígio, e o quanto Israel não tem nenhum poder de autocontenção.Israel já provou que "o meu é maior", mais violento, mais mortífero. É possível mudar de direção agora, depois dessa guerra terrível, horrenda, tanto quanto, depois da Guerra do Yom Kippur foi possível fazer a paz com o Egito (paz que também poderia ter sido alcançada sem guerra).
Mas Israel sempre se repete: concessões, se alguma, só depois de banhos de sangue.Levantar o sítio de Gaza, pôr fim ao bloqueio, dialogar com o Hamas, paz com a Síria, aceitar a iniciativa árabe – esses são passos práticos.Mas, antes disso, tem de acontecer uma mudança de fundo, em Israel. Depois de décadas de demonização e desumanização dos árabes, é tempo, hoje, de reconhecer que são como nós, exatamente como nós, iguais a nós. Têm sentimentos, sonhos e direitos. Essa consciência humana basal é que foi apagada em Israel. Sem ela, Israel fracassará; com ela, tudo voltará a ser muito mais alcançável.Por anos, a direita israelense banqueteou-se de palavras ocas e nada respondeu à mais simples das perguntas: Então, o que fazer? Como estarão as coisas daqui a 20, 30 ou 50 anos? Então, os palestinos já serão maioria "entre o rio e o mar".E a direita de Israel nada tem a dizer ou fazer. Nada, nenhuma resposta que não seja a guerra.A esquerda tem resposta – que aqui escrevi. E os israelenses da "opinião pública" voltarão a condenar a esquerda ao ostracismo, ridícula esquerda, vão ignorá-la, vão acusá-la de ser "ingênua" ou acusarão a esquerda de "traição".Que pelo menos ninguém diga que a esquerda de Israel não sabe o que propor, que não vê caminho e que não tenha posto o pé na rua, no caminho que vê – o caminho da paz, não da guerra – completa e sinceramente.