01/09/2008

Direitos Humanos e Sociabilidade Burguesa

Antonio Carlos Mazzeo *

"Toda emancipação é a recondução do mundo
humano, das relações, ao próprio homem."
(Karl Marx)

A questão dos Direitos Humanos, mais do que nunca, está na pauta das sociedades civis contemporâneas, no contexto de um mundo em constante mudança e permanente tensão. De fato, esse problema ganha dimensão já em finais do XVII e, principalmente, no XVIII século, com a Revolução Francesa ou melhor dizendo, é posta pelos ideólogos da Grande Revolução, os philosophes franceses, não por mera intencionalidade, mas como necessidade mesma da sociabilidade burguesa, quando a construção de relações sociais objetivadas pelo trabalho livre determinam uma regulação racional dessa nova forma de compra e venda da força de trabalho.
Mas o fundamental, aqui, é que façamos uma primeira definição do conceito, isto é, o princípio básico delineador dos Direitos Humanos são os direitos dos homens vivendo em sociedade, quer dizer, a regulação das relações sociais. Como não podemos falar em direito sem um conceito de ética, há também um ponto de essência que solda a relação entre ética e direitos. Mas esses elementos, por sua vez, constituem princípios e normas produzidas numa determinada sociabilidade, quer dizer, não ocorrem abstratamente, mas são expressões de um tempo histórico. As regulações jurídicas sempre estiveram estreitamente vinculadas à forma da sociabilidade, ao caráter da propriedade e à divisão social do trabalho. Daí encontrarmos, por exemplo, os códigos de comportamento moral e legal, "ditados pelos deuses", nas sociedades palaciais, como o "Código" de Hammurabi ou os Dez Mandamentos judaicos que estabeleciam regras nas relações entre os homens livres, em geral self-sustaining peasents, na definição de Marx, e desses com seus escravos, etc. A laicização das leis, com origem na Grécia Antiga, e a ética, resultante de um longo processo da construção da consciência filosófica, materializada na filosofia jônica, propiciaram que as leis fossem encaradas como produto dos homens, mesmo que elaboradas em consonância com uma justiça alicerçada numa ética virtuosa de inspiração divina, como evocavam Sócrates e Platão.
Mas a própria noção de ética vincula-se à determinadas normas e conceitos desenvolvidos no escopo de um determinado "tipo histórico" de sociabilidade. No Mundo Antigo e no período mercantilista, por exemplo, não havia restrições éticas para a escravidão.
Mas é na sociedade civil resultante das relações sociais capitalistas – a sociedade civil burguesa (bürgerliche Gesellschaft) (1) – que temos a plena laicização das relações jurídicas e políticas, resultante da revolução democrático-burguesa, na Inglaterra e principalmente na França. Nessa forma de sociabilidade a questão dos direitos ganha dimensão concreta. Dados os limites desse artigo, não poderemos entrar a fundo na discussão sobre a complexidade da definição do caráter dos direitos.(2) Mas podemos dizer que há um elemento mínimo definidor dos direitos posto exatamente pela revolução democrática, como o direito à liberdade e o direito à justiça, que atingem o estatuto de valor universal, ainda que de forma abstrata.
Por isso, Bobbio realça a dificuldade em se definir direitos como liberdade e justiça, argumentando que a própria idéia fundamental de direito, baseada na noção dos "direitos naturais" avocados pelos jusnaturalistas é problemática e dificulta a adoção de princípios universalistas.(3) Mesmo a tese do "Estado democrático de direito", como um lócus de manutenção de direitos pode ser posta em xeque, se partirmos da conceituação marxiana que as idéias dominantes numa sociedade são as da classe que a domina e de que o conjunto da estrutura jurídico-legal que organiza a bürgerliche Gesellschaft, o "Estado democrático de direito", ao limite, regula as relações de propriedade e as formas de divisão do trabalho da sociabilidade capitalista.
Efetivamente, esbarra-se na contradição existente entre a vida na comunidade política e a vida na sociedade civil, quer dizer, entre a vida pública do citoyen e a vida privada do bourgeois,(4) no igualitarismo formal determinado pela política que, di per se, constitui o lado pragmático da regulação da desigualdade real posta pelo liberalismo e que por isso mesmo, traz em si o aspecto onto-negativo de uma pseudo-emancipação da sociabilidade humana.(5)
A Revolução Burguesa construtora da noção de Direitos Humanos, por seus limites intrínsecos, não consubstanciou esses direitos na perspectiva de uma emancipação concreta que transcenda a negatividade do formal ou da regulação racional e pragmática da desigualdade posta pela onto-negatividade da política. Somente com a eliminação dos entraves inerentes à bürgerliche Gesellschaft daremos o passo em direção à concreção de uma real sociedade dos Direitos, porque humanamente emancipada.
(1) Adotamos aqui, a conceituação de sociedade civil desenvolvida por K.Marx in A Questão Judaica, RJ, Achiamé, s/d
(2) Veja-se a problematização feita por N. Bobbio no já clássico L'Età dei Diritti, Milão, Einaudi, 1990
(3) idem
(4) Na definição do jovem Marx: "O Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do homem, em oposição à sua vida material [...] Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ser coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como particular; considera outros homens como meios, degrada-se a si próprio como meio e converte-se em joguete de poderes estranhos." K. Marx, op. cit., pág. 20
(5) Utilizo o conceito cunhado por J.Chasin de onto-negatividade da política, desenvolvido em seu texto Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, posfácio do livro de F.J. Teixeira, Pensando com Marx - Uma Leitura Crítico-Comentada de O Capital, SP, Ensaio, 1995. Chasin retoma as teses de Marx sobre a contradição entre Estado e sociedade civil, onde o aparelho estatal burguês controla a sociedade real - civil - a partir do contexto alienado de relações sociais que engendram uma igualdade formal do qual ele é a expressão ideológica. Nesse sentido, a política é a materialização pragmática dessa alienação. Ver pág.354 e segts.

* Antonio Carlos Mazzeo - Professor Livre-Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP

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