18/02/2009

A crise do estado de confiança

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Por Guilherme Delgado
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O estado de confiança é a base sobre a qual repousa a economia moderna, porque dele depende a expectativa dos detentores da riqueza social relativamente aos ganhos futuros, derivados da posse dos seus ativos. Abalado o estado de confiança, advêm as crises recessivas; rompido de maneira mais radical esse estado, o sistema entra em profunda incerteza sobre o futuro, afetando essencialmente a capacidade empresarial de avaliação dos patrimônios pré-existentes e inibindo a criação de novos pela ação do investimento privado. Provavelmente é esse estado de ruptura radical que ora afeta a economia mundial, especialmente a norte-americana.

Os conceitos de confiança, esperança - da qual a expectativa em relação ao futuro é uma espécie de "derivativo" econômico - e incerteza são todos externos aos chamados fundamentos clássicos e neoclássicos da ciência econômica. É precisamente por isso que nas crises do "estado de confiança", em geral, soçobram os especialistas do pensamento convencional e abrem-se novas janelas para os críticos e heterodoxos. E dentre estes eu incluiria os filósofos e teólogos, que certamente têm algo de importante a refletir sobre as condições da possibilidade de reestruturação do estado de confiança na economia, sem o que não haverá luz no final do túnel.

Em recente artigo na revista "Carta Capital", o ex-ministro Delfim Neto, que sempre foi um heterodoxo em economia, aborda a questão da recuperação do estado de confiança mediante tratamento de choque, pela injeção maciça de recursos públicos e regulação do estado keynesiano, nos marcos pragmáticos da política econômica dos anos do pós-guerra. Aparentemente, na visão do ex-deputado Delfim Neto, o capitalismo (uma classe empresarial protagonista, sob a égide da propriedade privada e de um Estado garantidor dos contratos) seria uma construção histórica para a eternidade, onde as crises intermitentes do estado de confiança, ao fim e ao cabo, implicariam no seu aperfeiçoamento e fortalecimento.

Mas a melhor abordagem sobre a crise, dentre as dezenas de artigos e ensaios diários da mídia, encontrei-a em artigos recentes do filósofo e teólogo Padre Manfredo Oliveira (Boletim Rede, números de novembro de 2008 e janeiro de 2009). Comentando as teses do deputado Delfim Neto e indo mais a fundo, Padre Manfredo nos pergunta sobre a natureza da crise atual: uma ruptura profunda do "estado de confiança", na linguagem dos economistas, ou uma crise de sentido da vida social (na avaliação de Padre Manfredo)?

Em quaisquer dos sentidos que se defina esta crise, o importante é que ela não se resolverá sem que possamos ensaiar novos caminhos "para nos conduzir a outros sentidos para a vida humana, para sua convivência no mundo humano, para seu relacionamento com a natureza, para sua comunhão com o Sagrado" (Boletim Rede nº 199 – janeiro de 2009 – pág.12).

Traduzindo em linguagem de economista heterodoxo esse novo sentido do convívio humano, por exclusiva responsabilidade do autor deste artigo, destaco três aspectos:

l) Atenção aos anseios por igualdade social;
2) Respeito à natureza e às exigências da sustentabilidade do meio ambiente;
3) Atendimento às necessidades humanas básicas, promotoras da liberdade aos pobres do mundo. Sem atenção a esses critérios, não haveria porta de saída duradoura à solução da crise.

Voltando à problemática inicial, não é provável que o "estado de confiança" na economia mundial se restabeleça, para novamente voltarmos a trilhar os mesmos caminhos que o mundo percorreu desde a grande crise dos anos 30. E enquanto não resolvermos ou criarmos condições para um acordo global sobre o futuro da convivência humana, prevalecerá uma longa temporada de incerteza nas relações econômicas internas e internacionais. Esse interregno foi terrível dos anos 30 ao final da Segunda Guerra, impregnado por guerras e devastações, no pior calvário do século XX.

Como isto se resolverá no século XXI é a grande questão que nos está posta pela história contemporânea, que não é predeterminada, para desespero dos fundamentalistas.

Guilherme Costa Delgado, economista do IPEA, é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
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Fonte: Correio da Cidadania

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