11/08/2010

A crise da social-democracia na Europa

Vicenç Navarro
Este artigo analisa a queda da social-democracia (tanto em apoio eleitoral como no número de membros) na União Europeia, questionando algumas das razões que foram dadas para explicar tal queda. O artigo mostra que, nos casos mais evidentes, esta queda deve-se à substituição do ideário socialista pelo social-liberalismo responsável por políticas impopulares entre as bases eleitorais de tais partidos.
A social-democracia na Europa está imersa numa crise profunda. Passou de governar na maioria dos países na União Europeia a estar numa minoria muito pequena. A sua crise reflecte-se, não apenas em derrotas eleitorais, mas também em quedas muito acentuadas dos seus filiados: todos os maiores partidos social-democratas europeus experimentaram uma enorme queda dos membros em tais partidos. Uma das explicações que os dirigentes de tais partidos deram para esta queda (além da suposta falta de comunicação – argumento sempre utilizado por tais dirigentes) foi o êxito das suas políticas. Assume-se que o grande bem-estar que a social-democracia trouxe à Europa transformou as suas bases eleitorais – a classe trabalhadora – em classes médias, que se foram tornando mais conservadoras. Alguns destes dirigentes chegam inclusive a postular que as classes trabalhadoras estão a desaparecer, substituídas pelas classes médias, que se transformaram nos setores sociais para os quais tais partidos orientam as suas ofertas eleitorais. Na realidade, muitos destes partidos abandonaram uma narrativa que inclua o conceito de classe social no seu discurso, excepto na sua referência às sempre presentes classes médias, e dentro de uma estrutura social que se redefine, limitando-se a falar de ricos, classe média e pobres, ou classe alta, média e baixa.
Este argumento ignora, no entanto, vários fatos. Um deles é que na maioria dos países da UE há mais pessoas que se definem como pertencentes à classe trabalhadora que à classe média, sendo nos países nórdicos escandinavos (que têm o maior nível de riqueza da Europa) onde tais percentagens são maiores. Quanto maior a cultura social-democrata num país (tal como ocorre na maioria dos países escandinavos), maior é a propensão da população para definir-se como membro da classe trabalhadora. E, pelo contrário, quanto maior a cultura conservadora e/ou liberal num país, maior é a percepção de que as classes perderam o seu valor definitório, considerando-se a classe média como a classe maioritária por antonomásia naquele país. O caso dos EUA e do Sul da Europa são exemplos disso. As causas da queda da social-democracia não podem atribuir-se, pois, ao seu sucesso, ou a mudanças da estrutura social dos seus países. Há que procurar as causas em outras áreas e territórios de análises, incluindo as mudanças muito substanciais que seguiram na sua cultura política e no desenvolvimento das suas políticas públicas.
A necessidade de uma inexistente autocrítica por parte de muitos partidos social-democratas europeus
O êxito da social-democracia na Europa foi a sua identificação com o estabelecimento do estado de bem-estar (baseado na universalização dos direitos sociais e laborais, financiado com políticas fiscais progressistas), e um aumento da capacidade aquisitiva da população, através de um aumento dos rendimentos do trabalho como motor de políticas expansivas de carácter keynesiano, que exigiam um intervencionismo público não só em gasto, mas também na regulação (e/ou a nacionalização) de atividades chaves para o labor econômico, a fim de garantir a existência e acessibilidade de recursos básicos (tais como o crédito). A época dourada do capitalismo (1900 -1980) baseou-se nestas políticas, que foram e continuam a ser enormemente populares, não só entre as bases tradicionais de tais partidos – a classe trabalhadora –, mas em outros setores das classes populares (incluindo a classe média). Esta aliança de classes – classe trabalhadora com classe média – foi central no desenvolvimento do estado de bem-estar.
Este tinha que ser de elevada qualidade para responder às expectativas da classe média, o que requeria uma carga fiscal elevada mediante uma fiscalidade progressiva, cujo objetivo era (além de conseguir fundos para o estado) a correção das desigualdades sociais. O declive da social-democracia baseou-se primordialmente no distanciamento e/ou renúncia de muitos partidos social-democratas a estas políticas. Foi a partir dos anos 1970 e 1980 que grande número de tais partidos se foram afastando de tais políticas, adaptando-se aos princípios do neoliberalismo, que se transformou na ideologia dominante na construção da União Europeia.
O argumento mais utilizado por aqueles partidos políticos, na justificativa do seu abandono das políticas social-democratas, foi que a globalização impossibilitava o desenvolvimento de tais políticas. Anthony Giddens, entre outros, repetiu esta argumentação em todos os seus trabalhos. Tal globalização – era-nos dito – tornava impossível a continuação daquelas políticas social-democratas. O keynesianismo, por exemplo, era já impossível. Os estados perdiam poder face à globalização e não podiam ser seguidas políticas expansivas. Este argumento, que encontrou grandes caixas de ressonância nos meios de comunicação próximos do capital financeiro e do mundo empresarial, ignorava que os países onde a tradição social-democrata estava mais desenvolvida eram os países escandinavos, países profundamente globalizados, pois, ao serem pequenos, a soma das suas importações e exportações representava a percentagem do PIB mais alta da UE. Os dados mostravam que um país podia estar muito globalizado e, ao mesmo tempo, continuar a desenvolver políticas social-democratas.
A origem do social-liberalismo: a administração Clinton
O social-liberalismo (a incorporação do neoliberalismo nos partidos progressistas e social-democratas) iniciou-se nos EUA. A derrota do presidente Carter, consequência do seu conservadorismo e neoliberalismo, criou uma rebelião nas bases do Partido Democrata, liderada por Jesse Jackson, cuja candidatura conseguiu 40% de todos os delegados do Congresso do Partido Democrata no Congresso de tal Partido em Atlanta em 1988 (no final do processo das primárias naquele partido). O programa de Jesse Jackson era o mais progressista que o Partido Democrata tinha proposto desde o New Deal. Alarmou o aparelho de tal Partido, que não fez seu tal programa. Mas, em 1992, o candidato Clinton – que se tinha oposto a Jesse Jackson – adotou parte daquelas propostas, apresentando-se com um programa que o Financial Times (um tanto preocupado) definiu como inspirado na social-democracia sueca. O seu programa incluía as promessas de universalizar o acesso à previdência naquele país e desenvolver políticas expansivas de despesa pública, acrescentando medidas protecionistas ao tratado de livre comércio, Nafta (inicialmente proposto pela Administração Bush pai), tais como exigir o estabelecimento de normas laborais e ambientais nos países participantes em tal tratado: EUA, Canadá e México.
Uma vez ganhas as eleições, o presidente Clinton não cumpriu nenhuma destas promessas. Tornando-se no presidente do Partido Democrata mais próximo do capital financeiro que existiu nos EUA (tal como indicou o seu Ministro do Trabalho Robert Reich), pôs os interesses do capital financeiro no centro das suas políticas públicas, reduzindo a despesa pública e favorecendo o capital financeiro, chegando a eliminar a Lei Glass Steagall (que, aprovada pelo presidente Roosevelt em 1933, tinha proibido que os bancos comerciais pudessem também ser de investimento), abrindo assim a porta à especulação e à crise financeira atual. A derrota do Partido Democrata nas eleições para o Senado e para o Congresso em 1994, resultado do enfado e da abstenção da classe trabalhadora, deu o controle do Congresso ao Partido Republicano, vitória que impossibilitou levar a cabo o programa expansionista de Clinton. Daí que, a partir de então, Clinton falasse da Terceira Via, a via entre o New Deal do Partido Democrata e o neoliberalismo selvagem do Partido Republicano, liderado pelo ultradireitista Gingrich. A vitória de Clinton em 1996 foi resultado do temor do eleitorado democrata (que se tinha abstido nas eleições de 1994 para o Congresso) à vitória da ultradireita, e mobilizou-se para travar o Partido Republicano.
O social-liberalismo na Europa: a terceira via
O Partido Trabalhista britânico adotou esta terminologia e a Terceira Via passou a ser a via entre o trabalhismo expansionista, baseado no aumento da procura interna como estímulo econômico (representada pela esquerda do Partido Trabalhista) e a via neoliberal de austeridade social do governo Thatcher. Mas, uma vez no governo, Blair foi inclusive mais além do que Thatcher em alguns tópicos, como a desregulação da banca. Foi Harold Brown, Ministro das Finanças do governo Blair, quem deu plena independência ao Banco de Inglaterra, desregulando, além do mais, o mercado financeiro, tornando-se a City (o centro financeiro do Reino Unido) no maior centro de hedge funds no mundo. Na verdade, a sua escassíssima regulação mereceu o título de “Wall Street Guantânamo” à City, indicando com isso que se permitiam na City práticas irregulares não permitidas em Wall Street. Estas políticas favoreceram o capital financeiro, que passou a representar 32% do PIB, crescimento que teve lugar à custa do setor industrial, que passou de representar 20% do PIB no princípio do New Labour (1978), a 12% (2010). Esta redução do setor industrial provocou uma diminuição do salário médio, diminuição para a qual contribuiu a grande desregulação dos mercados laborais, "um dos mercados mais desregulados existentes no mundo desenvolvido», tal como anunciava o governo de Blair na sua promoção externa. Diminuiu também o intervencionismo do estado sob o argumento de que o estímulo keynesiano com base no estímulo da procura interna era impossível de realizar, além de ser desnecessário (tal como afirmava Anthony Giddens).
Estas políticas foram muito impopulares entre as suas bases eleitorais, o que explica a grande queda do seu apoio eleitoral. Passou de obter 33% do total do eleitorado em 1997 a 25% em 2001 e 22% em 2005. Se o Reino Unido tivesse tido um sistema eleitoral proporcional, teria perdido a maioria já na segunda convocatória eleitoral desde que ganhou pela primeira vez em 1997. O enviesamento eleitoral britânico, que favorece o bipartidarismo, ocultou este descalabro de modo que, apesar desta queda tão acentuada, o New Labour manteve a maioria no Parlamento até à última eleição, a de 2010. Isso explica o seu longo mandato, que não se deve à sua popularidade – como erroneamente é apresentado por Giddens –, mas ao enviesamento do sistema eleitoral e à crise tão profunda do Partido Conservador. As políticas neoliberais do New Labour desanimaram as bases do partido, que perdeu mais de metade dos seus filiados durante o governo Blair.
O Partido Social-Democrata Alemão
O outro partido social-democrata que virou para o neoliberalismo foi o Partido Social-democrata alemão, o qual, com o seu chamado programa 2010 antagonizou a sua militância e as suas bases eleitorais. O programa 2010, liderado pelo chanceler Schroeder, iniciou as políticas neoliberais na Alemanha (incluindo as políticas de austeridade pública mais acentuadas até então), apoiando o capital financeiro e o mundo empresarial exportador, à custa do nível de vida da classe trabalhadora alemã. As suas políticas, continuadas pelo governo Merkel, significaram uma redução dos rendimentos do trabalho, contribuindo para a estagnação da economia alemã como consequência da diminuição da procura interna que tal redução determinou [2]. Foi Oskar Lafontaine, então Ministro de Economia do Governo Schroeder, e os sindicatos que propuseram um aumento da procura interna, que teria estimulado a economia alemã e, portanto, a economia europeia. Perderam aquela batalha e Oskar Lafontaine demitiu-se (e abandonou o Partido Social-democrata alemão, acusando a direção de tal Partido de estar excessivamente próxima da banca e do mundo empresarial exportador), ajudando a estabelecer um partido – A Esquerda, Die Linke – que denunciou tal social-liberalismo. É o partido que está a crescer mais naquele país.
O social-liberalismo na construção da União Europeia
A influência da banca alemã configurou, em grande medida, a arquitectura institucional europeia, baseada num Pacto de Estabilidade, que travou o crescimento da despesa pública, e num Banco Central Europeu, que mais que banco central era um lóbi da banca, que impôs juros elevados. A maioria dos partidos social-democratas na UE contribuíram para a construção deste marco neoliberal, que resultou numa grande queda dos rendimentos do trabalho na maioria dos países da UE, causa do enorme problema de procura existente na UE. As pessoas nomeadas por proposta dos partidos social-democratas (e eles mesmos simpatizantes e/ou membros do Partido Socialista Espanhol) na Comissão Europeia, foram Pedro Solbes e Joaquín Almunia, que se transformaram nos guardiães da ortodoxia neoliberal por meio da Comissão Econômica e de Assuntos Monetários. O próprio Claude Trichet, Governador do Banco Central Europeu, tinha sido membro do Partido Socialista francês (próximo de Pièrre Mendès-France), do qual continua a ser membro o presidente do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, responsável pela aplicação de políticas neoliberais de austeridade que estão a provocar um enorme dano às classes populares nos países onde o FMI as impõe. Paradoxalmente, Strauss-Kahn aparece como o melhor candidato dentro do Partido Socialista francês para competir com Sarkozy. O fato de que tal profissional seja o candidato preferido pelo Partido Socialista francês é um indicador do grau de confusão existente entre amplos setores da social-democracia francesa.
O caso da social-democracia espanhola
A social-democracia espanhola seguiu políticas de clara tradição social-democrata no período 1982-1993, facilitadas pela pressão popular e pelos partidos à sua esquerda. A agitação social no final da década dos anos oitenta jogou também um papel chave na expansão da despesa pública social por habitante, corrigindo, em parte, o enorme déficit de despesa pública social entre Espanha e a média da UE-15. Espanha tinha sido, em 1982, quando iniciou o período social-democrata, o país com um estado de bem-estar menos desenvolvido da UE.
Ora bem, em 1993 (quando o déficit de despesa pública social já tinha sido reduzido para metade) houve uma mudança política muito importante, com consequências nas políticas públicas, tanto econômicas como sociais. O PSOE perdeu a maioria nas Cortes e aliou-se com a direita catalã, CIU, desenvolvendo políticas neoliberais (que implicaram uma espectacular queda da despesa pública social por habitante), políticas que foram continuadas pelo governo Aznar até 2004. A aliança do PSOE com a CIU inaugurou uma estratégia que incluía a marginalização das esquerdas, tanto dentro do PSOE como fora, o que criou uma reação entre as suas bases, de protesto contra a direção, que levou à eleição do candidato à presidência por parte do PSOE Josep Borrell, que era de clara orientação keynesiana e que criou enormes resistências tanto dentro como fora do aparelho do partido. Tal resistência levou à sua demissão e substituição, e mais tarde à derrota do PSOE, configurando-se posteriormente três sensibilidades diferentes dentro do PSOE. Uma, a do aparelho do partido, que apoiou o candidato conservador, José Bono; outra, de sensibilidade keynesiana, liderada por Matilde Fernández; e outra, que em teoria era a de compromisso, por José Luis Rodríguez Zapatero, e que ganhou devido ao apoio da esquerda. José Luis Rodríguez Zapatero ganhou e, com a excepção de Cristina Narbona, excluiu completamente a esquerda do seu governo, nomeando Solbes (que tinha iniciado as políticas neoliberais em 1993 e tinha sido o guardião da ortodoxia liberal na Comissão Europeia) e uma equipe ultraliberal dirigida por David Taguas (procedente da Banca e que tinha proposto, antes de se integrar em La Moncloa, a total privatização da Segurança Social, tal como tinha feito o General Pinochet no Chile) [4], como diretor da sua equipe econômica. Estas nomeações tinham como objetivo tranquilizar a Banca (que é o poder de fato mais importante em Espanha), nomeando como governador do Banco de Espanha outro ultraliberal, Miguel Fernández Ordóñez. A dimensão social-democrata do PSOE apareceu claramente nas áreas sociais, que estiveram limitadas contudo nas suas iniciativas (algumas de claro corte social-democrata, como a Lei de Dependência) por uma austeridade de despesa pública. Solbes tinha expressado que a política da qual ele estava mais orgulhoso, durante o período 2004-2008, foi a de não ter aumentado a despesa pública, isto dito no país da UE que tem uma despesa pública (incluindo a social) mais baixa da UE-15. A sua aliança em 2004 com partidos à sua esquerda, IU-ICV-EA, ERC e BNG, forçou, no entanto, uma maior sensibilidade social, que se traduziu numa redução do enorme déficit de despesa pública social que Espanha tem com a UE-15.No seu segundo mandato, iniciado em 2008, o governo Zapatero virou à direita, procurando o apoio da direita nacionalista catalã, sempre afim à equipe econômica do governo, que continuou a ser neoliberal. Tal equipe desenvolveu uma resposta à crise atual que reduz substancialmente os direitos trabalhistas e sociais no país, motivo de um protesto que levou à convocação de uma greve geral. A continuar estas políticas, a social-democracia espanhola sofrerá uma queda eleitoral profunda, tal como aconteceu à maioria dos partidos social-liberais na UE.

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