19/06/2009

Crise, Ideologia e Criminalização dos Movimentos Populares


(Rodrigo Fonseca-Secretário Político do PCB do Rio Grande do Sul)

Estranhem o que não for estranho
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam / de que o abuso é sempre a regra..
(Bertolt Brecht, A exceção e a regra)

O trabalho do intelectual é garimpar as palavras, deslocá-las, construir conceitos, aprofundar as reflexões e abrir novos campos de questões. Desconfiar do trivial, do que parece óbvio. Desafiar o senso comum, praticar o senso crítico. Recusar falsos problemas, evitar debates vazios que não nos levam a lugar algum.
Sendo um intelectual orgânico, comprometendo-se com a organização e preparação da classe trabalhadora para a disputa política, este trabalho deve ser ainda mais cuidadoso, pois diz respeito à vida e ao precioso tempo de milhares de lutadores que colocam a sua energia militante à prova todos os dias, “na ponta da chuteira”, lutadores frente aos quais é preciso reconhecer que sem eles não somos nada.
Agradeço demais ao convite do Professor José Grisa, e parabenizo ao conjunto dos lutadores-organizadores por este importante encontro. Sou um professor universitário recém-chegado a estas bandas do nosso país-continente, e espero poder contribuir com algumas considerações extraídas da reflexão teórica junto ao materialismo histórico e dialético, e da minha própria militância comunista, como membro e dirigente do Partido Comunista Brasileiro, PCB.
Esta crise, como qualquer crise, nos desafia, testando nossas forças e explicitando nossas debilidades. Temos aí diante de nós o péssimo resultado das recentes eleições na Europa: o crescimento da direita européia é um sinal assustador para os interesses das maiorias trabalhadoras, essa classe cada vez mais internacional, mais desterrada e mais proletária.
Não temos, é verdade, o direito de encarar esta como mais uma crise, seria irresponsável. As dimensões dessa crise são inéditas. Mas ao mesmo tempo, é preciso que se diga que corremos sempre o risco de cair na lógica do inimigo de classe, que hegemoniza as idéias, que nos dirige culturalmente, achando que só temos crise quando os ricos têm de colocar o rabo entre as pernas, como agora, desmoralizando-se perante a opinião pública com a queda dos mitos neoliberais.
Para as classes dominantes, as crises não são nenhum presente dos céus, mas podem sim servir de oportunidade para a acentuação de algumas tendências, como as gigantescas fusões e a precarização dos contratos de trabalho, dando chances ao Capital para aumentar ainda mais a extração de mais-valia, a exploração dos trabalhadores.
O aumento do desemprego é um dos sinais mais dramáticos dessa crise. Um milhão de trabalhadores já perderam seus empregos na América Latina desde o estouro da crise. A previsão da CEPAL e da OIT é a de que até o final deste ano outros quatro milhões de postos de trabalhos poderão ser extintos na América Latina. (Em 2008, o subcontinente já registrava QUINZE MILHÕES de desempregados).
Há 51 milhões de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos, sendo que 66% deles estão fora das salas de aula. Apenas 13% deles estão cursando curso superior. A principal causa alegada para não estar estudando, entre os homens é trabalhar para ajudar a família e, no caso das mulheres, a gravidez. Agora o dado do desemprego: 46% dos jovens estão desempregados. E 50% dos outros 54% que estão empregados, trabalham sem carteira assinada, ou seja, do total de jovens, 27% tem emprego com carteira assinada, e portanto direitos trabalhistas e previdenciários. E 31% deles podem ser considerados miseráveis, pois possuem renda per capita inferior a meio salário mí­nimo por mês! E aí o maior dos índices: 70% dos jovens considerados pobres, são negros.
Nós, e sobretudo a nossa juventude, estamos prestes a viver momentos ainda mais difíceis, é verdade. Mas no entanto não podemos nos abalar. Não suportaríamos nem resistiríamos a tudo isso sem as ideologias. Peço licença, porém, para discutitr o sentido de ideologia que quero ressaltar.
Na crítica e na compreensão das ideologias, podemos identificar três vertentes: o cientificismo, o culturalismo e a ideologia enquanto prática e posicionamento cotidiano.
No passado, e até mesmo recentemente, muitos pensaram a ideologia enquanto desconhecimento e fantasia, em oposição à ciência, ao conhecimento. No máximo, a ideologia comportaria a realidade de modo invertido ou mistificado.
Encarar a ideologia desse modo cientificista, opondo categoricamente conhecimento e desconhecimento, ciência e ideologia, é quase um convite para achar que a ciência está livre e acima da luta de classes, é quase achar que os cientistas e instituições pairam sobre a realidade que investigam, que não sofrem coerções e limitações decisivas, que são sujeitos universais lidando com objetos universais.
Através de outra vertente, culturalista, alguns pensam a ideologia enquanto sistema de idéias e posturas que herdamos quase que por osmose, de forma passiva, em oposição às idéias que conscientemente aderimos e defendemos. Seria a ideologia então um fenômeno mais “cultural”, como nossos hábitos, hábitos que trariam como conseqüência o desvio e a diluição de nossas responsabilidades políticas.
Desse modo, tão dicotômico e simplista como a primeira oposição entre conhecimento e desconhecimento, a política vira pura racionalidade e a cultura o seu oposto, pura irracionalidade, ou tradição e folclore. Ao invés de ver a cultura como uma política disseminada, ela é vista como uma “natureza” de determinados sujeitos sociais. É o que vemos de forma muito clara em algumas tentativas de justificar a violência doméstica e o machismo, encarados como problemas apenas culturais, e não políticos.
É verdade, os marxistas, estando aí o próprio Marx – que em certa ocasião afirmou não ser marxista – variam muito na conceituação de ideologia. Em geral, elas se relacionam com estas duas macro-vertentes comentadas, cientificista e culturalista, uma centrada nas formas de DESconhecimento do mundo em sua própria ordem e a outra nas formas de atuação (ou falta de atuação) política sobre ele.
Para não jogar fora o bebê com a água suja do banho, em relação à vertente cientificista podemos sim diferenciar o trabalho da ideologia e a prática científica, não os encarando de forma dicotômica, de forma não dialética, mas como diferentes posturas que se relacionam contraditoriamente.
Pode parecer uma afirmação absurda, mas a postura científica pressupõe certa opção pela imbecilidade, pela ignorância, pelo estranhamento, pelo “nada sei” do filósofo. Como se não soubesse de nada e precisasse olhar de outro lugar e com outros olhos que não aqueles do dia-a-dia, aqueles que tudo ou quase tudo reconhecem e identificam. Assim buscamos desfazer, em alguma medida, os efeitos da ideologia, pelos quais reconhecemos razões e verdades que foram descobertas por outros, em outros tempos e lugares.
Assim, a ideologia não se refere apenas a belas idéias e engenhosas manipulações. A ideologia se refere também (e sobretudo) a práticas e posicionamentos que assumimos no dia-a-dia de nossas vidas. E isso ocorre porque há diferentes formas de ser um empregado, um patrão, um estudante, um militante político, um pai, um filho, etc. Todas estas formas disputam entre si e nos colocam em ação.
Um grande desafio que temos é deslegitimar estas ideologias, não tolerar a menor intolerância contra os lutadores de nosso povo, pois são eles que tornam o nosso ar respirável, que fazem do presente não uma prisão, mas um degrau para o futuro. Como na poesia de Maiakovski, os inimigos começam roubando uma flor do jardim e terminam roubando a nossa voz. Ou como na de Brecht, primeiro eles levam um negro, um judeu, um padre, um comunista, até que em algum momento eles nos levam – e já não podemos fazer nada. Mas eles não têm o direito de fazer isso, são ladrões e seqüestradores, e se nos convencermos de que somos maioria, haveremos de reaver o que é nosso.
Precisamos construir novas legitimidades no tecido social, disseminar novos saberes, culturas e políticas, para chegarmos ao ponto análogo, semelhante àquele em que, em 1955 nos EUA, a prisão de uma negra por se recusar em dar o lugar no ônibus para uma branca gerou uma imensa comoção e vários protestos. Estes protestos contra o racismo geraram líderes e geraram consciência. A possibilidade de tornar um negro chefe dessa nação até ontem extremamente racista, deve muito àqueles protestos, àquela intolerância e sensibilidade contra a criminalização da resistência.
Quando as maiorias se sensibilizarem a este ponto contra a criminalização do comércio ambulante, das lutas pela terra, pelo teto e pelo ensino superior público, dentre outras lutas que são reprimidas com violência, estaremos em outro patamar da luta de classes. E muitos e muitos outros se recusarão a entregar o seu lugar, garantido por direito e por justiça, ao agronegócio, à especulação imobiliária, às redes atacadistas, à mercantilização do ensino.
Enquanto somos criminalizados em nossas demandas e nas ações que realizamos para consegui-las, corremos o sério risco de sairmos dessa sociabilidade atual, regulada pela acumulação de capital, e passarmos ao fim de qualquer sociabilidade – o que seria aprofundar a barbárie e talvez possa nos conduzir a uma nova era feudal, porém muito mais instável, destrutiva, violenta, mistificante e opressora. No lugar dos cavaleiros medievais, exércitos e tecnologias de segurança e repressão muito mais sofisticadas. No lugar do clero ignorante e supersticioso nos preparando para a boa morte, a religião individualista massificada pela mídia, que nos mata em plena vida, sendo que a expectativa de vida hoje é mais que o dobro do que era no período medieval. No lugar da criminalização dos supostos infiéis, hereges e feiticeiras, a brutal criminalização da pobreza e da luta contra ela.
Podemos dizer que o ápice dessa ideologia do trabalho se deu com o fascismo, e aqui no Brasil, bem guardadas as proporções, com o getulismo da época do Estado Novo, que enviou a judia comunista Olga Benário, grávida, de presente para os nazistas: segundo o fascismo, em suas muitas versões, o trabalhador, desde que não crie problemas e se atenha disciplinadamente ao seu ofício, sua arte de trabalhador, deve ser louvado e recompensado. Mussolini, o ditador italiano, gostava de dizer: quem trabalha não suja as mãos!
Isto é assim, meus amigos, em todo este imenso conjunto do pensamento conservador, desde os filósofos gregos: a única virtude reconhecida das classes subalternas, para os conservadores, a virtude possível do povo trabalhador é saber controlar os seus apetites (a sua sede de cachaça?), fazer direito o seu trabalho (sendo prestativo, colaborando,...) e, mais importante, saber manter-se perfeitamente e exclusivamente no seu lugar. Toda uma ciência administrativa foi gerada para garantir a maior extração possível dessas máquinas de trabalhar que somos nós – “que somos”, não, que nos tornamos.
Hoje em dia, com toda a literatura de auto-ajuda e a nova indústria cultural do subemprego, da precarização dos contratos de trabalho, vende-se a idéias de que precisamos amar nossas correntes, amar como ninguém a empresa que nos explora. Querem que sejamos pobres laboriosos, empresários e engenheiros de nós mesmos, eternamente atrás de nossa qualificação e reciclagem para o mercado, como se fôssemos lixo, eternamente sem saber sobre o dia de amanhã.
Se cedermos aos discursos nos quais o problema é a nossa baixa qualificação, nossa preguiça, nossa falta de criatividade, nossa honestidade (!), etc., ficaremos correndo atrás do rabo, reproduzindo a lógica e a saúde do capital. Não faremos mais do que jogar o seu jogo, sofrer as suas dores, gritar gol e comemorar como bobos o seu crescimento.
Em geral, ou na maior parte do tempo, jogamos este jogo. Acontece que os conflitantes não preexistem ao conflito. Os conflitos formam e informam os seus agentes, as suas partes. Por exemplo, as equipes de futebol não surgiram antes do futebol. Não há uma história da burguesia e uma história do proletariado, que um dia se encontraram e onde um pisou no pé do outro, tendo início uma briga dos diabos. Há sim uma história – e muitas histórias – do capitalismo. Mas dizer isso não significa cair num fatalismo estruturalista, onde estaríamos condenados a morrer abraçados aos senhores de nosso tempo. Significa que é preciso mudar de terreno, ampliar o leque de questões, questionar a essência mesma deste conflito maior. É preciso deixar de ser o que querem que sejamos eternamente.
Neste sentido, levamos pânico aos donos do capital, aos agentes do Estado, aos senhores da guerra, quando ao invés de festejar nossa condição e identidade de trabalhadores, nossa condição de escravos modernos que produzem muito mais por menos chibatadas, quando ao invés de valorizarmos nossas misérias, valorizamos nosso potencial.
Será que é verdade que a vida não nos ofereceu mais que a possibilidade de fazermos filhos? – daí o termo romano, extremamente preconceituoso na sua origem, proletário, aquele que só detém a sua incontável prole e nada mais. Se é verdade, então é preciso responder que nossos filhos e tudo o mais que somos capazes de produzir por nós mesmo são o que de mais precioso temos, pois com eles somamos saberes e disposição, experiências de lutas e expectativas de transformações mais radicais, teoria e prática revolucionária.
Podemos derrotar os conservadores e reacionários, desde que recusemos as acusações de crimes que nos querem infligir, desde que entendamos que por trás da criminalização das lutas está uma tentativa desesperada de impedir que a história aconteça, que o presente se descongele, que o mundo mude a nosso favor, que passe a ser um mundo comum em possibilidades de desenvolvimento dos seres comuns. Daí a temos a expressão mundo comunista, de seres comuns, sem hierarquias prévias, sem as camisas de força da divisão social do trabalho entre classes – e não entre aptidões e potencialidades.
É claro, a atual crise afeta muito diretamente a nossa capacidade de dizermos e difundirmos estas verdades, afeta a nossa capacidade de nos conhecermos, de nos reconhecermos e de deslocarmos a roda da história, deslocando-nos do papel subalterno que nos prepararam e do qual se esforçam para provar que é o único papel possível.
Contraditoriamente, em termos globais corremos o risco de ficarmos ideologicamente ainda mais capitalistas e mesquinhos, mais intolerantes com as interrupções do trânsito e da novela, mais resistentes em eleger operários sindicalistas, negros de nome islâmico, mulheres com ou sem marido político ao lado, índios que defendem o plantio ancestral da coca, bispos progressistas, militares antineoliberais. Ainda que a maioria destas vitórias eleitorais tenha sido seguida de azedas frustrações, elas pontuam a movimentação popular na base da sociedade civil e algumas vezes pontuam o desespero das velhas elites políticas obrigadas a aceitar gestores que não saiam diretamente de seu antro fétido e imundo.
Se isso for verdade, se temos no horizonte a trágica perspectiva de um recrudescimento político, isto mostra que nossa luta contra a criminalização dos movimentos populares, que é a luta pela disseminação de uma cultura de tolerância e simpatia com os lutadores do povo, a favor da legitimidade e do direito de protestar e buscar uma vida melhor para a classe trabalhadora em seus muitos segmentos, se for verdade que a chapa vai esquentar ainda mais para o nosso lado, isto mostra que lutar contra a criminalização das lutas populares é muito mais importante do que eleger políticos que supostamente são ou foram de esquerda.

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