18/06/2009

Lula, Sarney: "pessoas não-comuns", acima da lei?

Por Duarte Pereira
De lá mesmo do Casaquistão, no outro lado do planeta, o presidente Lula fez questão de sair em defesa do presidente do Senado, José Sarney. Questionou a veracidade das denúncias sobre a criação de cargos e a nomeação e desnomeação de servidores do Senado por atos administrativos secretos, quando já se sabe da existência de cerca de 650 desses atos mantidos sob sigilo e responsáveis, entre outras ilegalidades, pela nomeação e desnomeação clandestinas de vários parentes do senador José Sarney. Não satisfeito de pôr em dúvida as denúncias, o presidente Lula, ecoando o discurso do próprio acusado, foi mais longe. Repetiu o gravíssimo argumento de que “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

O político conservador José Sarney tem história, é verdade. Foi governador do Maranhão durante a ditadura militar. Foi presidente da Arena, o partido de sustentação política dos generais golpistas. Foi presidente do Senado por mais de uma vez. E, com sua família, mantém há várias décadas o controle político e administrativo do estado do Maranhão, sendo patentes os frutos desastrosos desse controle, dos pontos de vista democrático e social. É verdade também que, no ocaso da ditadura militar, bandeou-se com uma parcela expressiva de políticos da Arena para a articulação que resultou na eleição indireta de uma chapa oposicionista, formada por Tancredo Neves como presidente e ele como vice-presidente. Por um desses imprevistos da vida, acabou na presidência após a morte inesperada de Tancredo. Do governo que realizou, sobretudo na fase final, com o apoio da articulação de direita que ficou conhecida como “Centrão”, servem de provas a oposição ferrenha do PT na época e até a cisão do PMDB que levou à fundação do PSDB. Essa “história” o dispensa de prestar contas de seus atos como veterano senador e presidente do Senado em mais de uma oportunidade?

Ainda mais grave, porém, é que o presidente Lula acolha o argumento de que o senador José Sarney, por não ser uma “pessoa comum”, não pode ser denunciado, nem julgado como os demais cidadãos. É uma alegação profundamente antidemocrática, que infelizmente já foi invocada, até por setores de esquerda e movimentos sociais, para resguardar o próprio presidente Lula durante as denúncias do “mensalão”. Não existe, porém, argumento mais deseducativo e contrário a qualquer modalidade de democracia. O princípio básico dos regimes democráticos, sob hegemonia burguesa, ou sob hegemonia operário-popular, é o da igualdade de todos perante a lei. Não cabe, portanto, nenhuma distinção entre “pessoas comuns” e “pessoas não-comuns”, supostamente acima da lei, inimputáveis, que não possam ser denunciadas, investigadas e julgadas. Em vários países europeus, capitalistas, mas relativamente democráticos, ainda existem monarquias e nobrezas, com “pessoas não-comuns” desfrutando de privilégios legais, como o direito a processos especiais, ou o de assumirem por herança familiar a chefia dos Estados. Mas essas desigualdades não representam traços positivos desses regimes, mas sobrevivências medievais, que demonstram as limitações, mesmo jurídicas, dessas democracias burguesas européias, marcadas ainda mais seriamente por profundas desigualdades econômico-sociais. É espantoso que se queira invocar a existência de “pessoas não-comuns”, com direitos especiais, num regime republicano e democrático como o nosso.

Como as “pessoas comuns” podem elevar sua consciência democrática e sua disposição participativa se um líder operário influente como o presidente Lula se encarrega de propagar um princípio tão visceralmente contrário à igualdade de todos perante a lei, característica básica dos regimes democráticos?

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