13/10/2008

CARTOLA: CENTENÁRIO DE UM POETA POPULAR


Angenor de Oliveira, que já foi pedreiro, tipógrafo, vendedor, lavador de carros emuitos outros, completaria cem anos como o maior compositor da MangueiraEle não se chamava Angenor. Tampouco usava uma cartola. Mas foi como Cartola que seeternizou em verde e rosa Angenor de Oliveira, que faria 100 anos neste dia 11 deoutubro. "Quando eu fui tirar a papelada para meu casamento é que eu percebi quemeteram um 'n' entre o 'a' e o 'g'", contou em sua última entrevista gravada(concedida à rádio Eldorado e transformada no LP "Documento Inédito", 1982)."Para não mexer naquela papelada toda eu deixei ficar Angenor mesmo". E a cartola? Na verdade, o que lhe rendeu o apelido foi um chapéu-coco que osambista usava quando trabalhava de pedreiro, para evitar chegar em casa com acarapinha salpicada de cimento. Durante seus 72 anos, o herói proletário deviolão em riste foi tipógrafo, vendedor, lavador de carros, porteiro, contínuo...E a lista segue.
O compositor com seus inseparáveis óculos escuros É que demorou 65 anos para que alguém se arriscasse a concedê-lo um disco demúsicas próprias. O publicitário, pesquisador e entusiasta da música brasileiraMarcus Pereira (morto em 1982) foi o responsável pela empreitada que resultou em"Cartola" (Discos Marcus Pereira, 1974). Antes disso, Cartola vendeu uma musiquinhaaqui, outra ali, esqueceu várias – "Hoje é fácil; naquela época, não tinhagravador pra lembrar", costumava dizer – e chegou a participar dos long plays"Fala Mangueira", de 1968; e "Raizes da Mangueira", de 1973. A verdade é que Agenor ou Angenor, cartola ou chapéu-coco, tanto faz. O importanteé que o carioca pobre do Catete, com instrução básica, é pai, padrinho, tio,irmão e padrasto de um dos maiores patrimônios do Brasil: o samba. Negro magro dehábitos simples, tal qual o samba, Cartola nasceu em meio a lágrimas ediscriminação. Conforme conta o livro "Todo Tempo Que Eu Viver" de Roberto Moura,a mãe de Cartola, Dona Ada, teve uma eclampsia durante o parto. Uma ambulância foichamada às pressas, mas não apareceu. Mandaram um portador descer até o asfaltopara buscar um médico. O rapaz voltou para dizer que o médico só subiria sobgarantia de que o pessoal poderia pagar a visita. Quando chegou, a paciente jáhavia morrido. Sem trabalho a fazer, restou-lhe tentar cobrar. Desceu o morrocorrendo, sob a ameaça de tomar um pau inesquecível.
O polivalente Cartola ataca de garçom Na infância, Cartola chegou a morar emLaranjeiras, na Zona Sul, mas não se entendeu muito bem por lá. Gostava mesmo erade acompanhar os desfiles do Dia dos Reis e do (proto) bloco carnavalesco do ranchodos Arrepiados. Foi a Mangueira, para onde se mudou aos oito anos de idade, que lheforjou a personalidade. Logo de cara, se juntou com uma meia dúzia a quem seu pai,Sebastião de Oliveira, espiava desconfiadíssimo. Seu Sebastião conhecia amalandragem, conhecia o samba – inclusive ensinou o filho a tocar cavaquinho eviolão –, mas sabia da fama (e da fauna) que passeava pelas rodas. Por isso,quando Cartola e seus amigos criaram uma pequena escola de samba, seu Sebastiãoexpulsou o moleque de casa. A escola se chamava Estação Primeira de Mangueira. Como surgiu o nome? "Muito simples", Cartola contou ao programa Ensaio, em 1974."Tinha uma estação com o nome de Mangueira, com uma árvore com o nome mangueiratambém. Aí, nasceu a Mangueira". Humildemente, o recém-chegado pediu aos colegasque verde e rosa – cores de seus adorados Arrepiados – fossem adotados para oestandarte da escola. Veio a calhar. Carlos Cachaça contou que já tinha havido umrancho em Mangueira chamado "Os Caçadores da Floresta", que usava as mesmas cores.Ficou verde porque lhe queriam rosa.Essas foram as cores da casa onde morou desde que se casou com Eusébia Silva doNascimento, a Dona Zica, em 1964. Os dois viveram juntos – primeiro em Mangueira edepois em Jacarepaguá – até que o sambista morreu, vítima de um câncer que sóele próprio sabia que tinha. Discreto e fechado como sempre, dizia para todo mundoque sofria de úlcera. Foi-se em 30 de novembro de 1981, ao som de seu clássico "AsRosas Não Falam". Sobre seu caixão, o estandarte de outra paixão verde e rosa: oFluminense.
Cartola com seu eterno amor, Dona Zica Encontro com Cartola
No final da década de 70, a então repórter do Jornal da Tarde Maria Amélia RochaLopes passou uma semana na Mangueira, entrevistando os maiores nomes do sambacarioca. Tomou cerveja no bar Buraco Quente onde nasceu, entre outros, o samba "OSol Nascerá" (Cartola/Elton Medeiros). Visitou a famosa casa verde e rosa, palco denoitadas homéricas. E comeu uma feijoada preparada por Dona Zica, em Jacarepaguá,para onde o casal havia se mudado - a pedido dela, para desgosto dele. "Ela diziaque era sempre uma romaria na Mangueira, que Cartola não tinha sossego", ri MariaAmélia.
Maria Amélia Rocha Lopes na Magueira, com Nelson Sargento (esq.) e Carlos Cachaça Não à toa, ela logo reparou que "Cartola estava lá só de corpo presente. Todasas histórias que ele gostava de lembrar estavam ligadas ao morro da Mangueira". Apreferida era a escolha das cores do estandarte da escola. Ele gostava tanto defalar nisso que tinha várias versões. Para Maria Amélia, disse que escolheu overde e o rosa porque "não há no mundo coisa mais bonita do que uma flor, com aspétalas cor de rosas e o cabinho verde". Logo que chegou ao sobrado do casal, Dona Zica e Cartola vieram recebê-la noportão, com um pedido simpático: "Não repare na bagunça". Bagunça que nãotinha. Aliás, era tudo muito organizadinho. O violão, por exemplo, ficava"sentado" em uma cadeira num cantinho da sala. "Era um lugar nobre. Quando tiravadali para sentar, ele colocava em cima da cama, todo arrumadinho. Ele era todocaprichoso com o violão".E Dona Zica era caprichosa com Cartola. Maria Amélia lembra que ela ficava guiandoo marido pela casa: "Ela mandava o tempo todo, mas era uma coisa bonitinha. 'Sentaaqui', 'levanta daí', 'vem comer', sabe? Era o tempo todo cuidando dele". Cartola,turrão, fingia não gostar. Olhava de canto como quem diz: "ela está me enchendo osaco!". "Mas ele gostava! Era aquela relação de amor antigo, tão bonita, tãodelicada".

Nenhum comentário:

Postar um comentário