15/05/2008

Grandezas e misérias do conflito

Fonte: Brasil de Fato
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Por Adolfo Pérez Esquivel
As grandes empresas de soja, nacionais e internacionais, estão manipulando e pressionando uma quebra de braços com o governo para que sejam revistos os aumentos de impostos. Ganham milhões, mas não se conformam. Querem mais, mais e mais. Não lhes interessam o dano ambiental, as conseqüências da monocultura e a redução dos bosques naturais, o uso indiscriminado dos agrotóxicos, para a saúde e a alimentação da população.
O governo em tudo isto foi permissivo, ambicioso em conseguir mais retenções do agronegócio. Ambos são sócios em gerar a desgraça alheia e hoje se confrontam para ver quem fica com o maior pedaço da torta.
Não há um projeto de país que permita regular os recursos naturais e prever políticas de curto, médio e longo prazo, em um desenvolvimento sustentável e de respeito à Mãe Natureza. Estão vendendo o país ao menor concorrente com total impunidade. Confundem desenvolvimento com exploração e são como os cupins, devoram todos os que encontram no caminho.
Se o que eu digo é mentira, gostaria que me desmentissem com feitos concretos e não com discursos de conteúdo vazio. Basta ver como estão sendo reduzidas as áreas de cultivo para alimentar o povo e como 95% da soja é exportada e enche seus bolsos. Estão fechando os armazéns e as áreas de cultivos para alimentos, que diminuem dia a dia.
Camponeses aliados às transnacionais
Outros atores, neste cenário conflitivo, são os pequenos e médios produtores rurais que integram a Federação Agrária Argentina (FAA), a quem sempre temos acompanhado solidariamente, porque são camponeses que põem o ombro e a alma no trabalho do campo. Mas nos preocupa que hoje estejam aliados dos proprietários de terra e das grandes empresas transnacionais, que destroem o meio ambiente e transforma-nos em um país de soja cuja ambição dessas corporações vai deixando um território devastado pela especulação financeira.
Neste triste cenário, quem sofre as bofetadas é o povo argentino, sujeito aos vaivéns do conflito e às conseqüências do desabastecimento, do aumento do preço dos produtos, das tensões sociais.
Arturo Jauretche (pensador argentino) já falava daqueles que “sobem ao cavalo pela esquerda e descem pela direita”. Quantas verdades disse dom Arturo! Há camaleões no país que trocam de cor por convivência, como dirigentes de partidos políticos, sindicalistas, movimentos agropecuários. Agora aparecem juntos e revoltos como um omelete queimado.
Nesta levada estão os que querem aproveitar cada espaço para atacar o governo e desestabilizá-lo. Alguns perdidos provocam a queimada dos campos, mortes, acidentes e grandes problemas à população. Estão de volta os “cara-pintadas e personagens da ditadura militar”, como dona Cecilia Pando. Apareceram em meio ao conflito com panelaços de aço inoxidável e colheres de prata, na esperança de expulsar a presidente da Casa Rosada (Cristina Kirchner), de vê-la saindo com um helicóptero, ao estilo de De La Rúa. Mas estão equivocados e estão tendo que engolir sua própria ira.
Nesta bagunça as extremas esquerdas (nunca soube o que querem e aonde vão) são funcionais ao sistema de dominação. Na prática, os extremos se juntam. Me lembram daquele deputado que entrava na Câmara e dizia: “Não sei do que falam, mas me oponho”. Esses setores são incapazes de terem criatividade e valores para compartilhar a vida do povo. Mas estão em todas, em cada manifestação, em cada problema, em cada nova confusão. Como fazem, não sei. É quase um milagre do século XXI, algum dia descobriremos o truque e adeus milagre.
O governo se equivocou ao ser agressivo e não reconhece seus erros. É a soberba do poder, se sentem infalíveis, autoritários, no “Olimpo da idiotice”. Essa postura coloca o povo do campo em uma situação de desgaste. Eles não têm os recursos das grandes empresas – essas, sim, podem resistir por um longo tempo de confrontação com o governo – e são jogados pelo governo em um conflito onde o problema dos impostos passou para segundo plano. O que está em questão é uma disputa política sobre o modelo do país que querem construir, à imagem e semelhança de seus interesses.
Se os campesinos, médios e pequenos produtores não trabalham, não comem. Outros estão neste jogo porque querem demolir o governo, não lhes importa o “como”, disseminam a intriga. E os grandes meios de comunicação colaboram com seu veneno diário de desgaste e de mentiras.
Diálogo de surdos
Não é novo, a história se repete uma e outra vez. Vão ficando ao descoberto em sua hipocrisia. Do campo ao descampado, mostrando sua grandeza e sua miséria. O governo mira em seu umbigo em um diálogo de surdos. O povo assiste à novela entre o campo e o governo, a telenovela continua todos os dias, com cortes de direção, declarações; almoços com a dama rica que fala dos pobres.
Até que chega o dia que saímos à rua para fazer as compras, à hora marcada, e perguntamos sobre os preços do leite, dos ovos, do quilo da carne, da verdura, da mensalidade do colégio das crianças, da névoa, da temperatura, do mau-cheiro e descobrimos que não partem os aviões, pararam os trens, o metrô. Estamos encrencados na vida.
Parem homens e mulheres. Os argentinos de pé e todos os que habitam este país surrealista, estamos cansados que nos tratem como marionetes e estamos recebendo as bofetadas de todos os lados. Até quando? Não tivemos dores suficientes e não se aprendeu nada? Nos roubaram, destruíram e ainda assim seguimos confrontados.
Há que recuperar a memória e somar vontades. Os argentinos não aprendemos ainda as operações matemáticas básicas. Somar e multiplicar. Só aprendemos a subtrair e dividir. Queridos companheiros. A estudar que há muito que fazer e a não se deixar ganhar pelos que sempre querem dividir e subtrair. Há que resistir na Esperança, construindo o país que queremos para todos.
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Adolfo Pérez Esquivel é escritor argentino e prêmio nobel da Paz

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