04/08/2010

Nizan Guanaes, Aldo Rebelo e os sonhos com a língua portuguesa

Rodrigo de Oliveira Fonseca*

As posições dominantes em uma sociedade são contraditórias, como os sonhos. Nutrem-se ao mesmo tempo de verdades profundas e de ignorâncias, de bom senso e preconceitos. Às vezes estas posições vêm imbuídas de bons valores iluministas, em prol de um olhar mais racional e totalizante, superando velhos hábitos cristalizados na cultura e portando projetos de futuro. Outras vezes, trazem os nobres valores do romantismo, com palavras de luta, resgate e defesa do que somos e pelo quê somos.
Abaixo, duas intervenções públicas em defesa da língua portuguesa, a de um publicitário e a de um político. O quanto elas são diferentes? Onde elas convergem?
Tempo de cuidar das palavras
Nesta terça-feira, 27 de julho, Nizan Guanaes, famoso publicitário e presidente do grupo ABC de marketing – o 20º maior do mundo –, publicou no caderno Mercado da FSP um curioso artigo intitulado Vamos falar português. Com uma incrível e saudável crueza, disse o que muitos gramáticos e estudiosos da língua titubeiam em afirmar: “está provado: a força da língua está ligada à força da economia”. É pra nenhum materialista botar defeito!
O texto de Nizan reflete sobre um passado em que “nossa maneira de desqualificar as pessoas era dizer: ele só fala português”. Já aí temos uma mostra da maravilha que é o universo da língua, o baú de contradições e conflitos que ela trabalha: no uso desse pronome possessivo na primeira pessoa do plural (em “nossa maneira”), pretensamente inclusivo, não nos incluímos eu e milhões de brasileiros que jamais falaríamos um disparate como esse para desqualificar alguém. Não esqueçamos, entretanto, o veículo e o caderno (o público) para o qual foi escrito Vamos falar português.
No Brasil de hoje, segue o articulista, os números da economia finalmente são bons e o país encontrou o seu desenho político, fazendo com que tenhamos “tempo, foco e motivação para cuidar das palavras”. Nizan, considerado um dos embaixadores do Brasil no cenário internacional dos negócios, defende que se espalhe o português pelo mundo, e diz que nessa notável missão podemos contar também com Angola e Moçambique, que devem crescer os mesmos 6% ou 7% que o Brasil em 2010.
Nova inserção do Brasil no mundo
Acontece que estes nossos irmãos, com quem compartilhamos um mesmo espaço e projeto econômico e social ao longo de muitos e muitos anos de exploração colonial escravista (sobretudo os angolanos, na maior transferência forçada de gentes da história), estabelecem hoje “conosco” outras relações. Nós “temos”, por exemplo, algo que eles não têm: Votorantim, Camargo Correa, Odebrecht, todas com seus cimentos e tapumes em diversas partes do globo; nós “temos” uma mineradora como a Vale, doada na Era FHC com financiamento do BNDES a despeito de mais de cem ações na justiça, hoje a maior empresa do mundo em produção de minério de ferro.
Vamos então falar o bom português: a Votorantim, a partir da recente aquisição de parte de uma cimenteira portuguesa, começou a entrar na África (como na Europa e na Ásia) e já está em vinte países. A Camargo Correa, a despeito das investigações de lavagem de dinheiro no exterior e de ser a empresa que mais levou ouro com o Panamericano no Rio e com as obras do PAC, atua em mais de vinte países, e dentre eles, Angola. A Vale tem presença nos cinco continentes, e é mais uma das multis brasileiras instaladas em Angola e Moçambique. A Odebrecht, por sua vez, é hoje, nada mais nada menos, que a maior empregadora dos angolanos, in loco...
Nizan tem ou não tem motivos para dizer que o Brasil mudou? Com base nisso, ele sonha uma nova relação do empresariado brasileiro com a língua portuguesa, um “sonho que não é um sonho”, como ele diz, e que novamente define de forma crua e certeira: este sonho é “uma ação econômica, industrial, diplomática, política, desportiva, militar”. Se tem uma coisa que todo bom publicitário entende é de sonhos que não são sonhos. O que esperar desse? Talvez a reforma ortográfica, que tantos protestos gerou em Portugal, seja apenas um sinal desse sonho do empresariado brasileiro em afirmar-se no mercado internacional, no caso, com as grandes editoras de cá.
O Brasil tem hoje 127 empresas com faturamento maior que 500 milhões de dólares ao ano, e quase um terço delas atua no exterior (Exame, 09/09/2009). No período colonial, o que mais saía da América portuguesa para a África portuguesa era cachaça e tabaco. Em troca, “recebemos” aqui cerca de 4 milhões de africanos escravizados vivos (não esqueçamos todo o “desperdício” que havia no caminho), dentre outras commodities da época como marfim, cobre e ouro – como afirma o historiador Luiz Felipe Alencastro em O trato dos viventes (Companhia das Letras). Hoje, ainda que mantenhamos uma elevadíssima exportação de mercadorias de baixo valor agregado, como aquelas do agrobusiness, exporta-se capital como nunca antes na história desse país, que já é crescidinho o bastante para não manter um atrelamento isento de pequenas dissensões com o Tio Sam e assim poder fazer dinheiro até mesmo nos países malquistos pelo Tio, como Equador, Venezuela, Bolívia e Cuba. As empreiteiras brasileiras estão aí com toda a força e sede. Esse novo Brasil, afinal, precisa de empresários como Nizan, que possam exportar, sem pudores, e custando o que custar, o capital, as palavras e os sonhos de alguns brasileiros – que não são sonhos para todos.
Outro sonho na mesma língua
Por falar em agrobusiness, esta é uma excelente oportunidade de lembrarmos outro grande defensor da última flor do Lácio, o deputado Aldo Rebelo, que este ano se destacou pelo empenho patriótico na dura luta contra “as ações que contrariam os interesses do Brasil em favor dos interesses externos”, enquadrando o discurso ecológico como alienígena. Além desse surpreendente feito para quem o crê (ainda) comunista, lembro ainda de outro, também gravíssimo, de 2004, quando ele ostentava o pomposo título de “Secretário de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República”, e foi responsável por costurar um pacto entre governo e militares para restringir as investigações sobre os desaparecidos políticos do regime de 1964. “As feridas históricas precisam ser fechadas”, justificou no programa Roda Viva.
É de fato um sonhador, o deputado, que em 1999 também se comportou a favor de fechamentos, esquecimentos e silêncio, ainda que de outra forma. Aparecendo nacionalmente como grande defensor da língua portuguesa, no sonho de uma língua fechada a estrangeirismos, acabava nos pedindo para esquecer que todo o nosso léxico português é fruto de trocas e empréstimos, assim como nos pedia silêncio em relação a novas trocas e empréstimos, querendo frear o desenvolvimento da nossa língua usando uma versão chinfrim do discurso anti-imperialista.
Quanto às polpudas doações de campanha que recebeu das exportadoras de capitais Vale, CSN, Camargo Correa e Votorantim, o deputado não é contra. Doações estas que também podem ser consideradas trocas e empréstimos, dada a forma como a política brasileira funciona...
O sonho de Aldo com a língua portuguesa materializou-se no projeto de lei 1676/99, que declarava lesivo ao patrimônio cultural brasileiro “todo e qualquer uso de palavra ou expressão em língua estrangeira” (art. 4º) e determinava a sua substituição em 90 dias da publicação da lei (art. 5º).
O deputado ignorou os vários apelos da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), da Associação de Linguistica Aplicada do Brasil (ALAB), assim como os que vinham da Academia Brasileira de Letras e de diversos escritores que usaram os espaços da mídia para tentar fazer um debate com as propostas do parlamentar. O que quase todos falavam é que por trás das (quem sabe?) boas intenções do seu patriotismo contra os abusos do emprego de estrangeirismos, encontrava-se uma ignorância muito grande quanto à vida real da língua. Uma excelente fonte de consulta às objeções colocadas pelos estudiosos da linguagem é o livro Estrangeirismos, guerras em torno da língua, organizado por Carlos Alberto Faraco (Parábola Editorial), mas podemos também lembrar aqui, mais uma vez, a maior contribuição de Nizan Guanaes em seu recente artigo: “está provado: a força da língua está ligada à força da economia”.
Aliás, a razão pela qual eu escrevo agrobusiness, e não “agronegócio”, em português, é econômica, visto que este filão é, em grande parte, pertencente a bancos estrangeiros. É melhor chamar as coisas pelo seu nome mais apropriado, o que acaba mostrando o furo ideológico da patriotada de Aldo Agrobusiness Rebelo.
Aldo, um novo Policarpo Quaresma?
Será possível imaginar que língua falaríamos se não tivéssemos trocas econômicas, políticas e culturais? Ou melhor, quem seríamos nós? De onde vem, afinal, o idioma oficial do país? O que nossa formação social colonial e escravista fez com ele? O que o poder econômico de São Paulo e Rio de Janeiro – herdeiro do velho papel da corte na unificação política das regiões americanas colonizadas por Portugal – faz com as várias línguas faladas e distintas formas de falar a língua oficial em todo o país? Todos os dias, todas as horas, a língua em seus usos é cenário de conflitos encarniçados, nos quais os detentores dos meios e seus repetidores adoram dizer que o brasileiro não sabe falar direito... E aí, Nizan, aquela sua antiga maneira de desqualificar as pessoas, aparece aqui de modo mais corriqueiro e mais duro, afirmando que o brasileiro não fala bem o português, uma “língua muito difícil”!
Dentre as dificuldades do português, aquelas que certamente mais afetam o povo não são as que impedem uma boa leitura de Camões e Machado de Assis. A desgraça mesmo está na nossa dificuldade em lidar com a língua dos médicos, dos advogados, da produção acadêmica, dos ministros da fazenda, dos projetos de lei e dos políticos em geral. Estas sim línguas bem estrangeiras, muitas vezes utilizadas de má fé, abusando das nossas deficiências de formação escolar.
Uma infinidade de palavras estrangeiras aportaram por aqui, sobretudo, pela força econômica, das modas e das tecnologias, mas aqui elas foram transformadas pela criatividade espontânea do seu uso cotidiano. A vida na periferia seria melhor caso tivéssemos menos acesso às palavras dos povos que hoje são, tecnológica e economicamente, mais poderosos?
O deputado do PCdoB paulista, caso siga com essas patriotadas, pode acabar tendo o triste fim de Policarpo Quaresma. Não podemos negar o idealismo do personagem de Lima Barreto. O que é preciso ver é o quanto que ideais deste tipo quase sempre se prestam a nada, a simples exotismos, a diversionismos, e algumas vezes, acabam se prestando ao oposto do que parecem enunciar.
Por exemplo, o governo fascista do Estado Novo (1937-45) tentou “depurar” o país das culturas e idiomas não oficiais, e quis impor palavras como ludopédio ao povo, criação de laboratório baseada na dissecação do cadáver do latim, em substituição a um estrangeirismo então muito popular, football. O que aconteceu, afinal? Hoje somos “o país do futebol” – o que certamente não deve escapar da estratégia de Nizan Guanaes para avançarmos sobre o mundo.
Mesmo preocupado com o real excesso do uso de palavras do inglês pelas empresas, que exploram o capital simbólico da suposta distinção e sofisticação de quem usa este vocabulário – atraindo consumidores assim influenciáveis –, e muitas vezes abusam das lacunas de nossa formação escolar, Aldo se mostra despreocupado com formas de presença muito mais efetivas e sérias do imperialismo no país. Um exemplo foi o seu notável empenho na aprovação da Lei de Biossegurança, em 2005, que facilitou a vida das multinacionais dos transgênicos no Brasil (leia-se Bayer, Syngenta e Monsanto). Há que se ver também o quanto Aldo, quando ocupou nada mais nada menos que a presidência da Câmara, não se notabilizou como defensor da educação pública ou defensor das línguas indígenas que o país deixa morrer a cada dia. Ao invés de promover o conhecimento das 180 línguas autóctones que resistem a duras penas, Aldo se preocupa com o que para ele não deveríamos falar ou usar tanto.
Sonhos de falar mais português lá fora e não falar tanto inglês aqui
Entre o empresário materialista que diz claramente o que pensa e o político idealista que se finge de louco – mas não rasga dinheiro – pessoalmente prefiro o primeiro, ainda que não embarque em nenhum dos dois “sonhos”. Eles, em sua superfície, podem até ser a narração de boas intenções, de afirmação cultural, mas carregam uma violência simbólica projetável no exterior e no território nacional, a ser imposta aos povos em suas diversidades.
O sonho que não é sonho de Nizan Guanaes assim se apresenta no final do artigo Vamos falar português: “nós somos brasileiros, não é nossa natureza colonizar ninguém. Mas, em vez de subjugá-los com nossa língua, podemos iluminá-los”. O objeto indireto referido na última sentença, os seres a quem podemos iluminar, são principalmente os falantes de espanhol, e em seguida os de italiano e francês, primos de língua. A publicidade das agências de Guanaes pode ser um exemplo do que entende por iluminação, e a expansão progressiva dos capitais de alguns brasileiros no mundo deve abrir mercado para estas luzes de neon. Sim, os discursos imperialistas estão sempre carregados de belas justificativas civilizatórias.
O sonho que não é sonho de Aldo Rebelo, é por sua vez uma política 100% reacionária. Ignora o internacionalismo que caracteriza historicamente os comunistas mais sérios. E ignora a forma como Marx entendeu a linguagem: consciência prática dos homens, que se desenvolve e se realiza nos intercâmbios, na necessidade fundamental de intercâmbios entre os seres.
Este sonho de Aldo é mais um exemplo de sua reiterada loucura em querer (ou fingir que quer) unificar diferenças muitas vezes antagônicas, como as que opõem os pequenos produtores da agricultura familiar e o agrobusiness, os torturados e os torturadores, a esquerda e a direita, na base de pressupostos sempre equivocados e resultados que, no caso de terem chances de se concretizar, apontam mesmo para propósitos mal-intencionados.
Ao invés de “defender a língua” do processo de globalização capitalista, deveria preocupar-se o deputado com alguns drásticos efeitos deste processo sobre “os falantes” brasileiros, exatamente o que não fez quando facilitou o ingresso das multinacionais dos transgênicos no país. As invasões dos anglicismos são tão perigosas como o foram os galicismos há cem anos atrás, os empréstimos do francês que nos ofereceram sutiãs, maiôs e abajures!
Outro sonho: educação e respeito
O que nos dignificará enquanto povo é a possibilidade de, num futuro próximo, afirmarmos e assegurarmos, com todas as letras – sejam as do português, do inglês ou do nheengatu –, nossa aversão às guerras, à devastação ambiental, às contaminações e à exploração dos trabalhadores, no território nacional e no mundo. Isso fará de nós um povo melhor, um povo não tutelado pelos projetos e pela língua dos brasileiros que nos dirigem na economia e na política, e que com isso não se contentam, querendo também nos dirigir na língua.
Chega de imposições e tutela. Com mais educação e respeito saberemos lidar de forma mais humana e generosa com os povos os quais já estivemos em condições de maior igualdade, como os da América hispânica e, sobretudo, os da África – que hoje os nossos empresários tentam recolonizar. Com educação e respeito lidaremos melhor tanto com as luzes de neon da publicidade, como com o abuso de estrangeirismos nos produtos comerciais, mas também, e principalmente, com os abusos feitos no nosso próprio idioma. Educação para o consumo, para a política, para ter poder sobre a própria língua, na qual todos somos poliglotas, visto que sempre negociamos entre o que dizemos aqui e o que dizemos ali, não com base em cursinhos privados, mas na nossa sensibilidade e vontade de acertar.
Que possamos falar o que quisermos, do jeito que quisermos, nas línguas que pudermos. E que possamos estudar o máximo, para saber direitinho todas as línguas do poder, de modo a podermos nos expressar com dignidade e inteligência, sem ceder às luzes que ofuscam interesses de uns poucos, nem às trevas que nos imobilizam e amedrontam diante de falsas ameaças, no instante mesmo em que as reais passeiam livremente em meio à nossa cegueira súbita.
Línguas artificiais, interesses concretos
Nizan e Aldo demonstram uma concepção de língua bastante artificial, tal como é a língua dos publicitários e a língua dos gramáticos. De um lado, uma língua que fala demais (diz muito mais do que diz, jogando com nossos desejos e preconceitos), de outro, uma língua que fala de menos (mero formalismo, inculcando uma culpa por não sabemos “falar direito”).
Mas vamos terminar com isso falando um português mais claro, num arroubo de bom materialismo. O que une estes dois sonhos com a língua portuguesa são os vultosos capitais das empreiteiras e demais empresas que lá fora abrem mercados e aqui dentro reproduzem mandatos. Enquanto o publicitário e o político discutem as palavras, os donos da Votorantim, Camargo Correa & Cia fazem as festas que quiserem. E pagam bem, sem reclamar.
*Rodrigo de Oliveira Fonseca é membro do Comitê Central do PCB

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