09/02/2010

Hay Camiños: Movimento Bolivariano e pós neoliberalismo

Bacharel em História
Fernando Viana Costa (Membro do CC do PCB)
Universidade Federal de Goiás
Fviana21@gmail.com

A Venezuela, nos últimos anos, tem estado em evidência nos telejornais, nas revistas escritas de grande circulação, bem como nos debates entre intelectuais e militantes políticos. Seja foco de críticas ou comentários sobre os avanços que estão em curso, nosso vizinho não passa despercebido, já que conflitos abertos e eleições acirradas evidenciaram a luta de classes e a fragilidade do Estado, frente aos graves problemas sociais em que vive o povo venezuelano.
Em 1989 mais de quatrocentas pessoas foram assassinadas em um levante popular que se colocava contra o aumento da passagem de ônibus, do combustível e dos alimentos. Tal movimento ficou conhecido como “caracaço ou sacudon[1]”. Em 1992, uma sublevação militar, que pretendia depor o presidente Andréz Carlos Perez, termina com a prisão de vários militares, dentre eles o tenente Hugo Chávez Frias. Em 1998 este mesmo tenente é eleito presidente da República da Venezuela e, em 2002, com amplo apoio da população, resiste a um golpe de Estado e anuncia a construção do “socialismo do século XXI.” O nosso objetivo neste artigo é contribuir para a reflexão acerca do significado histórico das mudanças e permanências em curso na Venezuela de 1989 a 2002, buscando compreender quais são as sínteses históricas que se abrem nos conflitos. Para tanto analisamos documentos oficiais e jornalísticos, meios pelos quais interpretamos às manifestações concretas da população, dos instrumentos de hegemonia[2] e contra hegemonia.
Com o enfraquecimento do receituário neoliberal, ferida aberta nas sublevações de 1989, entra a Venezuela em um novo ciclo histórico? Está em curso uma revolução socialista? Trata-se apenas de uma mudança de governo, mantendo-se as bases ideológicas e materiais de dominação? Não pretendemos aqui dar respostas a todas estas questões, mas ampliar as possibilidades de interpretação. Para chegarmos ao que estamos denominando de pós-neoliberalismo[3] se faz necessário um breve resgate da História da Venezuela no século XX.
A Venezuela tem sua história marcada pela força dos poderes locais, tendo na economia agro-exportadora sua base mais forte, na manutenção econômica uma espécie de “pacto colonial” pós-independência. Todavia, a descoberta de campos de petróleo, a partir de 1922, traria mudanças profundas à sociedade venezuelana. Com o petróleo, o Estado, por meio da arrecadação de impostos, passa a ser o principal dinamizador da economia e nas relações sociais de trabalho, o assalariamento direciona a contradição capital-trabalho para o centro do ordenamento social. “As fazendas decaíram, passando ao Estado ou aos bancos, e a Venezuela encerrou seu ciclo de país agro-exportador” (Maya, 2006, p.1255).
No processo de modernização, encontramos um importante fator de permanência na base econômica que permeia os conflitos do período que nos debruçamos, qual seja, a descoberta do petróleo e o salto para quinta maior exportadora “do ouro negro” já em 1933. Tal fator aumenta significamente a importância do país no cenário internacional e constitui um condicionador da reestruturação do tecido social, fortalecendo uma “petrocracia”. Altos salários da aristocracia petroleira mantiveram o fluxo do consumo de mercadorias importadas, o que se tornava também vantajoso para todas as empresas que exportavam para a Venezuela, tendo nas empresas norte-americanas, pós 45, as principais fornecedoras de produtos industrializados. Isto levou a uma modernização sem diversificação industrial e a uma desigualdade extremada com abundância de divisas. Em visita à Venezuela em 1957, coordenando uma equipe de trabalho a serviço da CEPAL para levantar dados e dar início a um estudo de caso sobre a economia Venezuelana, recortando o período de 1945 a 1956, Celso Furtado se impressionava com as particularidades da Venezuela. Sua economia não se comparava a nenhum país da América Latina.
A Venezuela é a economia subdesenvolvida de mais alto nível de produto per catipa que existe atualmente no mundo. Seu produto bruto territorial por habitante se aproximou, em 1956, de 800 dólares, isto é, um nível similar a média dos países industrializados da Europa Ocidental. (...) e superior em mais do dobro à média da América Latina. Contudo, a Venezuela apresenta todas as características estruturais de uma economia subdesenvolvida. Pode-se afirmar que essas características são, na economia venezuelana, mais acentuadas que em muitos outros países latino-americanos (Furtado, 2008, p.36)[4].

O Punto Fijo e os 40 anos da “petrocracia”

O fim da ditadura Jimenez (1958) levou a construção de um arco de alianças que só iria ruir em 1989, este é o outro elemento de permanência que consideramos relevante, acerca da história política da Venezuela, “O Punto fijo”. Um acordo de governabilidade e estabilidade dita democrática foi firmado entre a AD[5], a COPEI[6] e a URD (União Republicana Democrática - dissidência do Partido Comunista da Venezuela). A partir daí uma espécie de pacto capital-trabalho foi sendo estabelecido pelas organizações representativas de classe como a FEDECAMARA (Federação de Câmeras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela) e a CTV (Central dos Trabalhadores da Venezuela), forjando a idéia de um consenso político. Foram isolados agrupamentos que mantinham uma postura de contestação da ordem. O Partido Comunista da Venezuela foi posto na clandestinidade e juntamente com o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) lançou-se na guerrilha, se posicionando contra o sistema representativo eleitoral, considerado burguês e corrupto.
A democracia do ponto fixo se estabeleceu tendo como base a institucionalização da luta política e a anulação do conflito, podendo ser destacado no documento pelo menos três pontos que notabilizam esta perspectiva:
1) (...) consolidação da unicidade e da garantia de trégua política, sem prejuízo da autonomia organizativa e ideológica, como expressamente declarado nas atas do alargamento da Junta Patriótica, assinado em 25 de janeiro de 1958 pelos partidos políticos (...)

2) (...) representados pelos partidos em nome das centenas de milhares dos seus militantes, o reconhecimento da existência de amplos setores que constituem um importante fator independente da vida nacional, o apoio das Forças Armadas para o processo de afirmação da República como uma instituição do Estado sob o controle das autoridades constitucionais.

3 (...) o Governo de Unidade Nacional é a forma de canalizar as energias partidária e evitar uma oposição sistemática a enfraquecer o movimento democrático.
Caracas, 31 de octubre de 1958
Por Unión Republicana Democrática, Jovito Villalba. Ignacio Luis ArcayaManuel López Rivas.
Por el Partido Social Cristiano Copei, Rafael Caldera Pedro del Corral. Lorenzo Fernández
Por Acción Democrática Rómulo Betancourt, Raúl Leoni. Raúl Leoni. Gonzalo Barrios. Gonzalo Barrios.
(Punto Fijo, Biblioteca virtual da Venezuela)

A economia petroleira dependente, gerida por um acordo político liberal autoritário, consolidou-se. A partir de 1989 rompe-se o acordo político e são postas em cheque, pelo movimento bolivariano, as desigualdades geradas pela economia petroleira, por excluir os campesinos e a maioria da população das cidades, desempregados e subempregados.

A História aberta
Em 1989 abri-se, uma a crise de legitimidade política do punto fijo, associada a uma crise da economia dependente petroleira, gerando uma ruptura nos elementos de permanência da História Venezuelana. Em meio a esta crise uma nova síntese abre-se na História política da Venezuela, trazendo novas mediações entre a sociedade civil e as instituições, entre o capital e o trabalho, entre pobres e ricos.
Em 1989 é eleito para seu segundo governo Carlos Andrés Pérez, membro da Ação Democrática. Pérez tinha comandado na década de setenta a nacionalização do controle do petróleo e o fortalecimento do Estado como principal dinamizador da economia. Todavia, quando da eleição de 1989 o cenário era diferente. Diante de uma crise da economia mundial e da dependência da produção técnico-cientifica que a Venezuela manteve no seu processo de modernização econômica, o desemprego estrutural e o alto índice de pobreza da população levaram a tensões que o presidente eleito prometera resolver.
O receituário neoliberal, delimitado pelo Consenso de Washington [7], apresentava-se, aos países da América Latina, como a doutrina a ser seguida. Carlos Andréz Pérez deu andamento a um conjunto de modificações econômicas (liberação dos preços, desvalorização da moeda nacional, congelamento dos salários) que provocaram reação da população venezuelana. O aumento dos produtos de primeira necessidade, bem como o aumento do preço da Gasolina chegou a 100%. Tem-se aqui uma guinada na política assistencialista que vigorava durante a década de setenta.
Desde a década de setenta, estimulados pelo alto preço do petróleo, os governos, aprofundaram a dependência das exportações do petróleo. Com arrecadação alta, o primeiro Governo Pérez 1974-1980, garantia programas assistencialistas para maioria da população pobre, bem como mantinha a ortodoxia econômica que manteve os interesses da burguesia comercial associada aos interesses do mercado internacional. Este sistema manteve a credibilidade do governo.
A concentração da riqueza do petróleo nas mãos dos executivos da PDVSA (Petróleo da Venezuela AS), das empresas multinacionais fornecedora de produtos industrializados tinha, portanto, como elemento estratégico, medidas assistencialistas, capazes de conter iniciativas populares nas disputas, ou na constituição de instrumentos contra hegemônicos, por meio da amenização da miséria. Contudo, a queda do preço do petróleo levou a uma ruptura da estratégia, repassando as camadas populares o ônus direto da crise, juntamente com as privatizações, foram medidas com o intuito de evitar a queda nas taxas de lucro.
A reação da população, dentre outras formas, se deu em um movimento desordenado e espontâneo no dia 27 de Fevereiro de 1989. Saques a supermercados e lojas marcaram a explosão popular que pegou o governo de surpresa. “Caracaço”, ou “Sacudón”, como ficou conhecido o movimento, foi reprimido de forma violenta pelo governo e deixou pelo menos quatrocentos mortos e vários feridos. Estava rompida a estabilidade política.
Os militares também se dividiram, sendo que um grupo da baixa patente comandou duas sublevações. Depois de bombardear o Capitólio, onde fica o congresso e o Palácio de Miraflores, os rebeldes conseguem uma transmissão de rádio e televisão por meio de três dos principais canais de televisão. Chaves aparece por várias vezes assumindo a autoria do levante. “Assumo a responsabilidade pela sublevação, me rendo e entrego as armas, por agora, já que os objetivos que nos colocamos não foram atingidos. É tempo de evitar mais derramamento de sangue e refletir sobre o futuro” (Rovai, 2007, P.22). Chaves ganhou neste episódio uma grande simpatia da população.
Perez foi removido do seu cargo por corrupção, malversação de recursos públicos. Assumiu o presidente do Congresso até a eleição de 1993. Rafael Caldera, ex-dirigente da COPEI[8], migrara para o MAS - Movimento Ao Socialismo - organização formada por dissidentes do PCV. Eleito em momento de crise, com abstenção eleitoral de 40%, Caldera não levou a cabo o programa inicial que se propunha a rever os processos de privatizações, mantendo a agenda neoliberal. A Agenda Venezuela, tinha em seus objetivos principais os pressupostos do “Consenso de Washington”, dentre eles: diminuir o gasto interno, incentivar o investimento estrangeiro e reprogramar a dívida externa.

Quinta República e o pós-neoliberalismo na Venezuela.
“a soberania reside intransferivelmente no povo, que a exerce diretamente, pelas formas previstas na Constituição e nas Leis, e da maneira indireta, através do sufrágio universal” (Constitucion de La Republica Bolivariana de Venezuela, Art. 5)

No processo eleitoral de 1998 a disputa se deu entre militantes com panfletos contra a grande mídia, pois na Venezuela, neste período, as emissoras podiam escolher o candidato que iriam apoiar e, portanto, o que teria maior tempo de exposição nos meios de comunicação. Contudo, após a vitória com 56% dos votos, Chaves foi chamado para ser entrevistado nos programas dos principais canais das grandes emissoras, como a RCTV (Rovai, 2007, p. 23 -24).
Eleito presidente da República em 1998, tomando posse em 1º de Janeiro de 1999, Chaves, diante de uma crise econômica de legitimidade política das instituições, dá início ao processo de mudança constitucional que contará inclusive com apoio de setores importantes da oposição[9].
Alterando a correlação de forças no jogo institucional, (dos 139 deputados constituintes 119 eram chavistas) o governo Chaves mobilizou a população durante três meses, reforçando o discurso da participação política, que se materializou no próprio texto constitucional e, segundo o professor-pesquisador da Universidade de Caracas, Edgardo Lander, significou um avanço na ampliação dos princípios de participação e no enfrentamento à “ortodoxia neoliberal” (Lander, 2005, p.196). Contudo, Lander destaca que o processo estava previsto para ocorrer em seis meses e a redução do tempo, bem como os poucos debates públicos, fora dos meios midiáticos, diminuíram o real potencial de participação direta da população.
O texto constitucional caracteriza a ação dos parlamentares como participação indireta dos cidadãos, por meio de seus representantes (artigo 62) e estabelece a assembléia popular, de caráter vinculativo, e o referendo, além de outras, como forma de participação direta. Os artigos de 70 a 74 normatizam estas formas de participação. No caso do referendo, sobre leis a serem aprovadas é garantido poder, desde que solicitado por dez por cento dos eleitores à população de solicitá-lo como obrigação constitucional.
O conflito aberto com a oposição tem início em 2001, a partir da Lei do Hidrocarboneto, que passa para o Estado o controle da atividade petroleira, e da Lei de Terras, que define o latifúndio contrário a justiça social, bem como institui a desapropriação de terras. Uma paralisação no dia 09 de Abril de 2002, puxada pelo empresariado da FEDECAMARAS e dos petroleiros da CTV, propunham a revogação das referidas leis e renúncia do presidente. Na mobilização do dia 11 a estratégia é ainda mais agressiva. As emissoras RCTV, Venevísion e Globovísion transmitem a marcha ao vivo. “Ficaram aproximadamente quatro horas sem fazer chamada comercial, apenas convocando as pessoas a irem se somar à manifestação” relata Maximilien Arvelaiz[10]
O poder midiático[11], por meio de cinco canais de televisão privados, construiu uma realidade onde Chaves aparecia como um comunista louco e isolado em suas ações. Os principais apresentadores dos programas que contavam com alto índice de audiência, passaram a ridicularizar Chaves todos os dias, reivindicando, muitos deles, ao final dos programas a renuncia do presidente.
Às 3 horas da madrugada, depois de reiteradas declarações de oficiais do exército ameaçando tomar o poder e exigindo a renúncia do presidente, inclusive por parte do Comandante Geral do Exército Efraín Velasquez, Chaves deixou o palácio de Miraflores que se encontrava cercado e sobre ameaças de bombardeios. No mesmo dia 12 de Abril de 2002, era empossado o Presidente da República Pedro Carmona, principal líder empresarial da Venezuela[12]. Mesmo com todo o poder militar e midiático, 24 horas depois Chaves estava de volta ao Palácio de Miraflores. Quais os fatores que sustentaram o governo de Chaves? É bem verdade que a influência de Chaves entre os oficiais de baixa patente e os membros da guarda presidencial contribuiu para o fracasso do golpe, contudo foi mais importante a pressão popular que tomou conta da Venezuela na madrugada do dia 12 e durante todo dia 13 de Abril de 2002.
O caos estava instalado em Caracas. A reação já estava por toda a cidade e havia intensos conflitos em muitos cantos do país. Mas as emissoras de TV transmitiam desenhos animados, ente eles Tom e Jerry, e o filme Uma linda Mulher, que tem como atriz principal Julia Roberts no papel de uma prostituta. As rádios só tocam música. Nada era divulgado. (ROVAI 2007, p. 55)

A trajetória da figura pessoal de Hugo Chaves Frias não é o que mais nos interessa e sim o processo de luta social que se abre mediante a crise de hegemonia neoliberal na Venezuela. A revolta popular de 27 de Fevereiro de 1989 não era Chavista, bem como não era a sublevação de 1992. E além do mais, como bem assinalou Marx, ao criticarmos um indivíduo, quando o mais importante é o processo, mais fortalecemos o mito do que damos conta da análise dos acontecimentos.
O processo de crise de estabilidade política que se abriu ainda em 1989 teve como motivador a crise econômica mundial conjugada à crise da economia petroleira venezuelana. Este processo na verdade teve seu início ainda em 1983 quando a medida de desvalorização do Bolívar e os piores índices de desemprego e pobreza do século, marcaram o período. O governo Carlos Pérez tomou medidas liberalizantes ainda mais agressivas, sendo que os maiores atingidos foram os 80% já pobres da população.
A população já era, neste momento, mais de 80% urbana. Em 1983 o índice de desemprego chegou a 23%, e mais de 40% da população trabalhando na informalidade. Nos anos seguintes, o desemprego recuou bastante, talvez o que ainda tenha mantido o pacto AD/COPEI a frente do poder Estatal. Entretanto, as medidas que levaram a dobrar o preço de produtos e serviços básicos, por meio do aumento do combustível, foram estopim da crise. É nas crises que se abrem, de forma mais bem definida, as possibilidades de constituição e avanço de projetos contra hegemônicos.
Que projeto contra hegemônico foi possibilitado mediante o desgaste das políticas neoliberais? Rompia-se qual consenso de dominação e projetava-se qual nova cultura política? Ora, se muitas foram as projeções e intenções políticas dos diversos sujeitos que surgiram na nova coalizão de forças que se formara, talvez uma tenha se consolidado de forma mais clara na cultura política como síntese do processo: o poder constituinte. Esta talvez seja a expressão particular do pós - neoliberalismo venezuelano. Perry Anderson -1995 - demonstrou inquietações quanto às possíveis respostas que se construiriam no bojo do esgotamento das políticas neoliberais, na Venezuela esta resposta está em processo.
Pelos documentos que analisamos e os autores que dialogamos, não encontramos neste projeto contra hegemônico a centralidade na luta de classes, em que pese ser exatamente a luta entre as classes a dinâmica do processo, ela se apresenta de forma discursiva e diversa: povo, nação, república, soberania, desigualdade. Defrontamo-nos com alguns problemas: Os diversos lutadores sociais das favelas e do campo que entraram em rota de colisão com os mandatários neoliberais, fazem parte de uma massa heterogenia que não tem em sua organização a constituição de uma consciência de classe que aponte para um projeto de “tomada de poder”, projeto este que só toma forma no processo constituinte.
A população busca de forma justa e necessária, a melhoria das condições objetivas de vida, como acesso a saúde, a educação, a moradia, transporte, assim como busca dignidade existencial que pode ser suprimida no consumismo, no fetiche da mercadoria, ou emancipada na inquietação, na não alienação, na não entrega cega do seu destino a “outro”. Esta carência de orientação de significado pode, socialmente, se construir de diversas formas e ser supridas em diferentes estruturas simbólico-materiais. Do ponto de vista simbólico, o bolivarianismo e o discurso da participação no enfrentamento ao imperialismo, são marcas do processo político em curso. Contudo Chaves não é Bolívar, trata-se de uma estratégia discursiva que busca reforçar o mito de uma memória coletiva, onde “O libertador”, como ficou estigmatizado o general, conduziu a luta da independência contra o domínio espanhol e, assim, seria Chaves o novo libertador contra o imperialismo. Anacronismo absurdo frente à Venezuela do século XX e XXI, mas que construiu unidade de sentido ideológico para prática política.
Os mais de 40 por cento de trabalhadores informais, difíceis muitas vezes de se separar dos 15% de desempregados, defrontavam-se com a mais violenta extração de mais valia em um tempo de trabalho desregulado, em condições precárias nas quais não há nenhum instrumento de mediação que contivesse a exploração do capital e que possibilitasse a construção de uma consciência de classe para a constituição de um projeto de tomada de poder.
Por outro lado uma burguesia, e suas frações, circulavam em torno do dínamo petroleiro estando prontos para reagir ofensivamente se lhes fossem tiradas a possibilidade de manter o seu alto padrão de consumo. Em suas manifestações carregavam a “bandeira da propriedade” junta com os operários petroleiros e suas bandeiras da Central de Trabalhadores da Venezuela, paradoxalmente, estes últimos, de costas para pobreza das favelas se limitavam a interesses corporativistas. Estes setores faziam o discurso de que construíram o seu patrimônio com muito suor e que “esse povo” não sabe o que é isso.
O poder constituinte se construiu por meio de um discurso heterodoxo para e por uma massa heterogenia e fez surgir um grande poder mediador entre a pobreza e a exploração do capital: a constituição. Foi nela que se agarraram às pessoas para justificar sua indignação contra o golpe de 2002. Nas ruas, nos pequenos mercados, nas favelas, as pessoas passaram a defender a constituição e o direito de participação na vida política, esta mudança na cultura política nos parece a principal particularidade do pós-neoliberalismo venezuelano.Todavia, não trata-se de um caminho já percorrido e delimitado, ao contrário, trata-se de uma travessia onde se cruzam elementos de mudança e permanência. O messianismo redentor do discurso de Chaves e a dependência do petróleo podem ser apontados como elementos que permeia quase toda história da Venezuela. Já a mobilização da sociedade civil e a construção de um projeto político centrado no “direito” e não no “favor”, bem como o espectro da participação, fazem parte de uma história aberta, que resignifica a relação com a institucionalidade, levando a cobrança do cumprimento dos deveres do Estado. Estes são elementos avessos à lógica neoliberal, lógica que naturaliza as desigualdades, historicamente construídas. A sociedade civil na Venezuela entrou em rota de colisão com o receituário e com a ideologia societária imposta pelo neoliberalismo.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
A REVOLUÇÃO NÃO SERÁ TELEVISIONADA: Documentário histórico sobre o golpe contra o governo Chaves organizado pela CIA na Venezuela. Dir. David Power. Power Pictures, Venezuela, 2002.
BARROS, Pedro Silva. Governo Chaves e desenvolvimento: a política econômica e processo, 2007. 167 p. Dissertação (Economia Política) USP. São Paulo.
BARROS, Pedro Silva. Chaves e petróleo: uma análise da nova política econômica da Venezuela. Cadernos PROLAM/USP, São Paulo, ano 5, vol. 2, p. 209 a 237, 2006.
BIANCHETTI, Roberto G. Modelos neoliberais e políticas educacionais. São Paulo, Cortez Editora, 1997. (Col. Questões da nossa época).
CONSTITUCION DE LA REPUBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA. http://www.venezuela-oas.org. Acesso em 24 de novembro de 2008.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Prefácio. In. BIANCHETTI, Roberto G. Modelos neoliberais e políticas educacionais. São Paulo, Cortez Editora, 1997. (Col. Questões da nossa época).
FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. (Col. Nossa América, 2 v).
FURTADO, Celso. Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundancia de divisas, Rio de Janeiro, Contraponto, Centro Internacional Celso Furtado, 2008.
GENTILLI, Pablo. A falsificação do consenso: simulacro e imposição na reforma educacional do neoliberalismo. Petrópolis, RJ, Vozes, 1998.
LANDER, Edgardo. Venezuela: a busca de um projeto contra-hegemônico. In. CENCEÑA, Ana Ester. Hegemonia e emancipação no século XXI. CLACSO: Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais, julho, 2005.
MAYA, Margarita Lópes Venezuela In. SADER, Emir. et al. (cood.). Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo, Boitempo; Rio de Janeiro, Laboratório de Políticas Públicas, UERJ, 2006. p. 1251-1264.
OUALALOU, Lamia. Uma década de Chaves. Carta Capital: política, economia e cultura, São Paulo, 26 de novembro, ano XV, n.523, p.10-15, 2008.
ROVAI, Renato. Midiático Poder: o caso Venezuela e a guerrilha informativa. São Paulo, Plublisher Brasil, 2007.
SADER, Emir; GENTILLI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
SADER, Emir; GENTILLI, Pablo (orgs.). Pós neoliberalismo II: que estado para que democracia? 2. ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 2004.
SADER, Emir. et al. (cood.). Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo, Boitempo; Rio de Janeiro, Laboratório de Políticas Públicas, UERJ, 2006.
ZAVALA, D. F. Maza. História de meio século da Venezuela: 1926-1975. In. CASANOVA, Pablo Gonzáles (org.) América Latina: história de meio século. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1988. 2 v. p. 233-337.
WWW. El-Universal.com. Acesso entre 01 de novembro de 2008 e 25 de novembro de 2008.




[1] Movimento de setores populares, descontentes com as medidas que subiram os preços dos produtos e serviços de primeira necessidade, levando a saques em supermercados no dia 27 de Fevereiro de 1989.
[2] Utilizo aqui o conceito de hegemonia no sentido formulado por Gramsci, no que se refere a construção de consenso como forma de dominação e de ruptura, na construção de culturas políticas. (SADER -org.- 2007 p. 97 a 105.)
[3] O termo pós-neoliberalismo tem sido utilizado nas análises dos pesquisadores ligados à CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) e do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, para designar um possível esgotamento das políticas neoliberais na segunda metade da década de 90. Ver SADER e GENTILLI (1996) e SADER e GENTILLI (2004)


[4] Este texto tem um caráter interessante: é um estudo de economia sobre o período e produzido no período. Sua circulação ficou proibida na época pela ditadura Jimenez e foi arquivado no Ministério do Fomento e nas coisas pessoais de Furtado. Só foi publicado agora em 2008.
[5] Principal partido social democrata da Venezuela, sempre dirigiu a CTV.
[6] Partido Social Cristão de centro direita - formado por uma militância que atuara na política desde a década de trinta contra as ditaduras, mas com um projeto reformista conservador vinculado a igreja católica e pequena burguesia
[7] Expressão utilizada para se referir a um conjunto de políticas articuladas a partir da década de 80, tendo como marco uma reunião relalizada na capital dos Estados Unidos da América em que participaram funcionários do governo dos EUA, do FMI, do BIRD e economistas latino-americanos. As resoluções da reunião apontaram várias diretrizes, dentre elas: desmonte das barreiras tarifárias e pára-tarifárias, para estabelecer políticas comerciais liberais, liberalização dos fluxos de investimentos estrangeiros, privatização das empresas públicas, ampla desregulamentação da economia, proteção à propriedade privada. (Sader, 2006, pág. 345)

[8] Rafael Caldera foi um dos dirigentes da COPEI que assinaram o pacto do Punto Fijo, conforme documento transcrito acima
[9] Ver Jornal El Universal, Caracas, 1º de Janeiro de 1999.
[10] Era um dos assessores para mídia internacional do governo (Rovai 2007 p.34)
[11] Conceito utilizado por Renato Rovai (2007) referente à ação dos meios de comunicação substituindo os espaços públicos de debate e a própria opinião pública.
[12] Jornal El Universal, 12 de Abril de 2002

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