08/08/2008

A HEROÍNA DA DIREITA

Por Renato Nucci Junior
A reação das massas populares da América Latina aos efeitos devastadores das políticas neoliberais vem produzindo em muitos países experiências de governos antineoliberais, antioligárquicos e antiimperialistas. Venezuela, Equador, Paraguai e Bolívia são os casos mais emblemáticos. Tais lutas e experiências de governos populares, ao entrarem em choque com os interesses das classes dominantes nacionais inevitavelmente enfrentam o imperialismo, especialmente o norte-americano. Em países onde as forças de esquerda ainda não lograram êxitos eleitorais e políticos, as lutas populares intensificam-se e exigem mudanças econômicas e sociais de conteúdo democrático.
Frente ao avanço das forças populares, as elites locais e o imperialismo reagem com as armas de sempre. Patrocinam golpes militares como na Venezuela, incentivam o movimento autonômico das oligarquias, como na Bolívia, e reprimem a ferro e fogo os movimentos populares. Temendo uma proliferação ainda maior da rebeldia popular, usam e abusam do poder monopólico que possuem sobre os meios de comunicação, para difundir a mentira e o medo. Nos telejornais, âncoras e apresentadores bem pagos e com aparência impoluta, posam de guardiões da moral e dos bons costumes. Desandam a demonizar e estigmatizar líderes de governo como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa e aproveitam a oportunidade para clamar pela criminalização de movimentos populares como o MST.
Na cruzada que empreendem contra as forças populares e os governos, cujo conteúdo programático rompe com a lógica neoliberal e questionam o domínio das oligarquias nacionais, escribas mercenários e comentaristas da imprensa venal ditos imparciais, buscam ícones que representem os ideais conservadores da direita latino-ameri\cana. Os líderes oligárquicos e racistas da Bolívia, bem como os estudantes da elite branca da Venezuela, foram apresentados como símbolos da direita latino-americana em sua luta encarniçada contra os trabalhadores e as massas populares. Porém, suas trajetórias de vida não possuem o tom melodramático requerido para comover milhões por todo mundo. A heroína da direita A direita encontrou, enfim, sua heroína: Ingrid Bettancourt, ex-candidata à presidência da Colômbia, refém das FARC-EP por 6 anos. Resgatada do cativeiro pelo exército colombiano, o que só possível pelo uso ilegal por parte dos militares de helicópteros com emblemas da Cruz Vermelha, Ingrid era apresentada ao mundo, pela direita latino-americana, como um símbolo da resistência, da perseverança e da sobrevivência dos “ideais democráticos”, contra uma luta guerrilheira vista como anacrônica. As negociações para a libertação dos reféns das FARC-EP, no final de 2007 e início de 2008, levadas a cabo pelo presidente Hugo Chávez e pela senadora colombiana Piedad Córdoba, jogaram mais luzes sobre a situação de Ingrid Bettancourt.
Em liberdade, Ingrid imediatamente retribuiu fartamente aos que alçaram-na à condição de heroína da direita mundial. Momentos após seu resgate, metida em uniforme militar, aparentando estar muito bem de saúde (o que contradiz as cartas dramáticas sobre seu estado de saúde precário), agradeceu o exército colombiano e o presidente Álvaro Uribe pelo resgate, chegando a declarar que apoiaria um eventual terceiro mandato. Deu detalhes unilaterais sobre o período do cativeiro. Rapidamente saiu da Colômbia e deu um giro pelo mundo. Na França, recebida pelo presidente Nicolas Sarkozy, o mesmo que acusou os jovens imigrantes do país de escória durante a rebelião juvenil em 2005, foi agraciada com a Ordem da Legião de Honra. Tal honraria fora criada em 1802 por Napoleão Bonaparte para homenagear os que serviam fielmente os interesses do império e da burguesia francesa. Dedicou o prêmio aos seus “colegas de infortúnio” que estão em mãos das FARC-EP.
O status de heroína construído em torno de Ingrid Bettancourt, expõe a unilateralidade com que os grandes meios de comunicação tratam o conflito social colombiano. O destaque mundial dado ao seu seqüestro e cativeiro restringiram o debate em torno apenas dos reféns mantidos em mãos das FARC-EP, como se o sofrimento humano existisse apenas de um lado. E solidária apenas com o infortúnio dos membros de sua classe, a grande imprensa ignorou completamente os mais de 7 mil presos políticos colombianos, em sua maioria dirigentes de movimentos populares e lideranças sindicais acusados de rebelião e crimes conexos. Ignorou, igualmente, os mais de 2 mil trabalhadores sindicalizados mortos por paramilitares a soldo de empresas multinacionais nos últimos 20 anos. Também não citou os constantes massacres perpetrados por bandos paramilitares contra comunidades camponesas. O sofrimento dos trabalhadores colombianos foi ocultado, pois revelá-lo ao mundo com a mesma dramaticidade que o caso de Ingrid Bettancourt, mostraria o verdadeiro caráter do governo Uribe e de suas relações com o narcotráfico e o paramilitarismo. Em sua cruzada anti-popular, a grande imprensa enfocou o drama pessoal apenas de Bettancourt. Nada mais fez do que se solidarizar com uma filha da oligarquia colombiana, cuja mãe foi miss Colômbia e o pai ministro da educação do ditador Gustavo Rojas Pinilla de 1953 a 1957.
Retribuindo a solidariedade prestada pelos de sua classe, Ingrid Bettancourt passou a integrar a luta da oligarquia colombiana em associação ao imperialismo norte-americano contra a insurgência, cujo principal objetivo é o de desmoralizar as FARC-EP, retirando dessa organização seu papel de força beligerante pela acusação simplória de que se trata de uma organização narcoterrorista. Essa estratégia de guerra tem por finalidade impedir uma saída política e pacífica para o grave conflito social colombiano. Caso uma saída política e pacífica se imponha, o processo de mudanças sociais em curso na América Latina pode trazer ao imperialismo uma nova derrota. E o que é pior, em um país cujo governo é o mais fiel aliado dos Estados Unidos na América Latina, o que faria o imperialismo perder sua principal cabeça de ponte na região. Longe do fim Incapazes de impor uma derrota à guerrilha pela via exclusivamente militar, como ficou demonstrado no fracasso dos Planos Colômbia e Patriota, Uribe e Bush buscam derrotá-la pela desmoralização no front interno e externo. Tentam mostrar aos colombianos e ao mundo o despropósito da insurgência, buscando desarmá-la através de uma derrota moral. O resgate de Ingrid Bettancourt do cativeiro e o uso de sua imagem (somados aos assassinatos de Raúl Reyes e do comandante Iván Ríos, além da morte do legendário comandante Manuel Marulanda), é mais uma arma nessa estratégia de guerra. Ela fez abundar pressões dos mais variados atores políticos, clamando para as FARC-EP deixarem as armas e se integrarem à democracia colombiana. Até o presidente venezuelano Hugo Chávez surpreendentemente julgou a guerrilha como démodé e pediu à insurgência que abandone o caminho da luta armada. Justificou seu apelo com o argumento de que a manutenção da luta armada serviria de motivo para o governo dos Estados Unidos intervir militarmente na América do Sul, como se o imperialismo precisasse de razões reais para tomar tais iniciativas. Por seu lado, com o resgate de Bettancourt, a imprensa venal e pró-oligárquica de todo o continente aproveita para estampar manchetes bombásticas sobre um suposto golpe demolidor às FARC-EP, pressagiando o fim iminente da guerrilha. A realidade, porém, desmente tais expectativas. As FARC-EP são uma resposta dos camponeses e demais setores populares colombianos à violência paramilitar e do terrorismo de Estado. Se essa resposta ocorre pela via militar é porque a realidade política colombiana está marcada pela inadmissibilidade, por parte da oligarquia local, em aceitar a participação dos trabalhadores e das forças políticas que representam seus interesses, na vida legal e dentro de regras minimamente democráticas. Sua resposta a tais demandas é a de recorrer permanentemente ao terrorismo de Estado. Tal recurso é uma medida comum na história política do país andino. O principal antecedente foi o assassinato, em 1948, do líder popular Jorge Eliécer Gaitán, que desencadeou uma onda de violência que resultou na morte de 200 mil pessoas em uma década e o aparecimento de guerrilhas camponesas de autodefesa, embriões das FARC-EP, em luta contra as ações dos bandos paramilitares que os massacravam a serviço dos fazendeiros. Outro exemplo, este mais recente, foi a morte, entre 1985 e 1988, de cerca de 5 mil militantes e políticos eleitos pela União Patrótica (UP), braço político das FARC-EP, quando esta aceitou depor as armas e participar da vida política do país. Sem contar o alto índice de dirigentes sindicais assassinados, mais de 400 no mandato de Uribe, tornando a Colômbia um dos países em que mais se viola a liberdade de organização sindical. Esses são os pressupostos da insurgência colombiana. Enquanto a grande imprensa incensa Ingrid Bettancourt como sua heroína, milhares de colombianas e colombianos são vítimas da violência paramilitar e do próprio Estado. Sem, no entanto, conquistarem sequer uma nota de rodapé dos grandes jornais.
Campinas, agosto de 2008.

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