Escrito por Otto Filgueiras*
26-Out-2010
A crise econômica que atingiu os Estados Unidos em 2008 e se irradiou ao resto do mundo, inclusive ao Brasil, não acabou. Trata-se de uma crise de super-acumulação de capital, que se manifesta, ao mesmo tempo, em superprodução, subconsumo e desproporção setoriais, sendo nessa dimensão semelhante às grandes crises do capitalismo, a exemplo daquela de 1929.
Segundo o economista Luiz Filgueiras, professor-pesquisador da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Economia pela Universidade de Campinas (UNICAMP), com pós-doutorado pela Universidade Paris XIII, na França, autor do livro "História do Plano Real" e co-autor, juntamente com o professor Reinaldo Gonçalves, do livro "Economia Política do Governo Lula", as causas da atual crise estão relacionadas ao novo padrão de desenvolvimento capitalista no mundo, construído desde os anos 1970, que deslocou a hegemonia da acumulação para a dimensão financeira, o que, segundo diz, "implicou uma radicalização da instabilidade que é intrínseca à estrutura e dinâmica desse modo de produção".
De acordo com Luiz Filgueiras, "a saída implica um processo de desvalorização e destruição da riqueza existente, realizada pela própria crise e arbitrada pelos Estados capitalistas, por meio de empréstimos, aquisições (nacionalizações de empresas) e associações". Mas a atuação estatal, socorrendo o grande capital, implicou um enorme endividamento dos governos. Assim, os atuais acontecimentos na Europa, "com governos propondo e efetivando cortes de despesas, demissão de funcionários, redução de salários, reformas das previdências, são a continuação da crise, agora atingindo, em cheio, o Estado e, como conseqüência, os seus trabalhadores". O capítulo seguinte, diz o economista, deverá ser uma recessão nesses países, com o aprofundamento do desemprego.
No caso de a crise se aprofundar no Brasil, Luiz Filgueiras diz que não haverá diferenças na forma de enfrentá-la por um governo do PT ou do PSDB. Segundo ele, um governo dos tucanos, provavelmente, trataria a crise da mesma forma como o governo Lula a enfrentou, isto é, com políticas fiscais e monetárias expansionistas.
Ele também descarta que a crise do capitalismo nos Estados Unidos e no mundo precise de alternativas de extrema-direita como saída. Segundo ele, na campanha presidencial no Brasil, a maior visibilidade da extrema direita, por meio da candidatura de José Serra, não tem relação direta com a crise. "A questão fundamental, que levou à adoção dessa estratégia (religiosa, conservadora e moralista) por parte de Serra se deve à existência de uma grande área de identidade entre as duas candidaturas, do PT e PSDB. Em especial, há concordância na política macroeconômica que vem sendo adotada desde o início do segundo governo FHC, com metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante". E esta política, diz Filgueiras, reflete um modelo econômico que foi construído no início dos anos 1990 e que sofreu uma inflexão no segundo governo Lula, com aumento da importância do grande capital da indústria de commodities articulado com o Estado, que, por meio do BNDES, vem financiando e patrocinando o fortalecimento e a internacionalização de grandes grupos econômicos nacionais.
"É como se o governo Lula estivesse reconstruindo o tripé da época do modelo de substituição de importações: capital internacional, capital estatal e capital privado nacional. Só que, agora, sob a hegemonia do capital financeiro e não, como anteriormente, do capital industrial. Veja a seguir a íntegra da entrevista.
A crise do capitalismo nos Estados Unidos e no mundo acabou?
A crise mundial não é um ponto no tempo; ela é um processo, que se desenvolve de forma desigual e combinada, no tempo e no espaço. O seu centro originário se localizou nos países centrais, em particular nos EUA, mas, como não poderia deixar de ser, afetou também, e duramente, a periferia. A sua natureza já é bastante conhecida, tendo causas determinantes gerais e particulares. As primeiras apontam para uma crise de super-acumulação de capital, que se manifesta, ao mesmo tempo, em superprodução, subconsumo e desproporção setoriais. Nessa dimensão ela é semelhante às grandes crises do capitalismo, como a de 1929. As causas particulares dizem respeito ao novo padrão de desenvolvimento capitalista construído desde os anos 1970, que deslocou a hegemonia da acumulação para a dimensão financeira, o que implicou uma radicalização da instabilidade, que é intrínseca à estrutura e à dinâmica desse modo de produção.
A solução da crise, portanto, tem que se dar nessas duas dimensões. Com relação aos determinantes gerais, a saída da crise implica um processo de desvalorização e destruição da riqueza existente, realizada pela própria crise e arbitrada pelos Estados capitalistas, mediante empréstimos, aquisições (nacionalizações de empresas) e associações. A contrapartida dessa atuação estatal, em socorro do grande capital, implicou um enorme endividamento dos governos. E isto ocorreu em todos os países, mas mais acentuadamente nos países desenvolvidos. Os atuais acontecimentos na Europa, com os diversos governos propondo e efetivando cortes de despesas, demissão de funcionários, redução de salários, reformas das previdências etc., são a continuação da crise, agora atingindo, em cheio, o Estado e, como conseqüência, os seus trabalhadores. O capítulo seguinte deverá ser uma recessão nesses países, com o aprofundamento do desemprego.
Todas essas medidas, no entanto, não resolverão os determinantes estruturais relacionados ao atual padrão de desenvolvimento. Portanto, a tendência é de manutenção da instabilidade intrínseca a esse padrão. Isto significa que a crise não terá solução em curto espaço de tempo. Não há qualquer pressão mais significativa, por parte dos setores populares, que leve o capital a redefinir o atual padrão de desenvolvimento. Na crise de 1929 havia uma conjuntura política – existência da URSS e a ameaça do socialismo, a força dos sindicatos e dos partidos socialistas e comunistas e mobilização de massas - que obrigou e levou à redefinição do padrão de desenvolvimento, quando se instaurou o compromisso social-democrata, o Estado de Bem-Estar Social e as políticas anticíclicas keynesianas. Agora não há essa circunstância, e isto é decisivo no modo como a crise está sendo tratada. Em suma, a tendência é de um período prolongado de estagnação, com momentos curtos de retomada de crescimento e reiteração dos problemas estruturais do atual padrão de desenvolvimento.
A recuperação das economias capitalistas é, portanto, apenas superficial e resultado da grande quantidade de recursos públicos injetados nas empresas pelo Estado, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos, Europa e mesmo no Brasil, onde o governo Lula injetou dinheiro público nos bancos privados e na construção civil?
Como dissemos anteriormente, os Estados foram chamados a socializar as perdas e a arbitrar o processo de desvalorização/destruição da riqueza existente. Daí o grande volume de recursos públicos injetados. Isto resolve momentaneamente, dando o mínimo de ordem e controle ao processo e recuperando a demanda efetiva para que ocorra uma retomada do crescimento. No entanto, isto é insuficiente como solução cabal da crise, pois não altera as características fundamentais do padrão de acumulação que levaram à crise e que podem ser resumidos na total liberdade de movimento do capital, em particular do capital financeiro – processo esse consolidado pela quase total desregulação e liberalização financeira estimuladas e implementadas sob a égide do neoliberalismo, que radicalizaram a instabilidade do modo de produção capitalista.
Por que a moeda brasileira está supervalorizada em relação ao dólar e quais as conseqüências para o país?
Isto está acontecendo por motivos externos e internos. Externamente, em razão da política americana, à qual interessa a desvalorização do dólar em relação a todas as moedas, como forma de recuperação da competitividade de suas exportações e inibição de importações; o que facilitaria a retomada do crescimento. O alvo principal são os países da periferia e, em particular, a China. Internamente, no Brasil, o problema é a elevada taxa de juros, que atrai capitais especulativos e desvaloriza o dólar frente ao real. Mais recentemente, o lançamento de ações da Petrobras no mercado internacional também contribuiu para este fenômeno.
As conseqüências no curto prazo são o maior controle da inflação e uma perda relativa de competitividade das exportações brasileiras e o estímulo às importações, o que complica o balanço de pagamentos do país e aumenta, por conseqüência, a vulnerabilidade externa conjuntural da economia brasileira. No longo prazo, inibe o desenvolvimento de setores industriais de alta tecnologia, condição fundamental para superarmos a dependência tecnológica própria dos países da periferia do capitalismo, levando o país a uma especialização regressiva em commodities. É o fenômeno conhecido como a "doença holandesa", que afetou a Holanda nos anos sessenta e que implicou sua desindustrialização.
A China está com a sua moeda subvalorizada, tem sofrido pressões do governo dos Estados Unido para valorizar o yuan, mas o governo chinês já disse que não vai fazer isso, porque implicaria quebrar muitas empresas, gerar desemprego e instabilidade econômica, social e política, que pode trazer o caos a esse grande país da Ásia. Isso significa desdobramento mais grave da crise, mundialmente?
A China vem sofrendo pressões para valorizar sua moeda há muitos anos. Mas ela não fará isso, porque tem o controle de seu espaço nacional e se situa numa posição privilegiada no cenário e na divisão internacional do trabalho. É o principal credor dos EUA, tem o maior montante de reservas do mundo e atua internacionalmente em todos os tipos de mercado, exportando produtos de baixa, média e alta tecnologia. As próprias empresas dos EUA que estão sediadas na China não têm nenhum interesse na valorização, que implicaria perda de competitividade de suas exportações.
O yuan desvalorizado é parte fundamental da estratégia chinesa de desenvolvimento; não seria realista imaginar que a China venha a aceitar, unilateralmente, sem nenhuma compensação, mudar essa estratégia. No entanto, caso ocorresse, haveria impacto negativo nas suas exportações, o que exigiria uma maior participação de seu mercado interno para a manutenção das atuais taxas elevadíssimas de crescimento do PIB – o que, por sua vez, implicaria uma redefinição da distribuição de renda na sociedade chinesa.
Por outro lado, com a valorização do yuan, as importações serão estimuladas mais ainda, com fortes impactos positivos para as economias de todos os países, principalmente aqueles, como o Brasil, que exportam commodities importantes para o desenvolvimento chinês. Mas tudo isso, se ocorresse, levaria a uma deterioração do balanço de pagamentos da China, que não pode se dar a este luxo, pois sua moeda não é conversível. Por fim, o interesse dos EUA na valorização do yuan se relaciona diretamente à necessidade de retomar o crescimento, reduzir seus déficits fiscais e do balanço de pagamentos (aumentando exportações e reduzindo importações) e também diminuir sua dívida pública.
Antes da eclosão da crise, a extrema direita conquistou governos de países ocidentais, a exemplo da Itália, com Berlusconi; mas, no ápice da crise nos Estados Unidos, o eleito foi Obama. Agora, nas eleições parlamentares, Obama enfrenta dificuldades; a extrema direita do Partido Republicano faz uma campanha acusando Obama até de comunista, que evidentemente não é. O capitalismo está entrando numa crise que precisa de alternativas de extrema-direita para sair dela?
Acredito que qualquer tentativa de saída mais à direita da crise, como estamos assistindo na Europa, não terá sucesso no médio e longo prazos; apenas expressa a recusa em redefinir o padrão de acumulação financeirizado - que tornou o capitalismo mais crítico ainda, pois radicalizou suas tendências a super-acumulação, em particular acentuando sua dimensão fictícia (descolada da produção), e a sua natureza regressiva do ponto de vista social e político. Com isso, a crise econômica se transforma em crise política e não se ataca a questão fundamental para a retomada do crescimento de forma menos instável, qual seja, a forma como vem funcionando o capitalismo há 30 anos. Mas, como disse anteriormente, na atual conjuntura não há ainda um movimento internacional dos trabalhadores e dos setores populares que leve o grande capital a recuar. Portanto, o horizonte é de crise política e social, sem resolução da crise econômica.
No Brasil, a polarização na campanha presidencial esquentou no segundo turno, no qual a extrema-direita encontrou espaço para defender seu ideário retrógrado e de intolerância. Isso está acontecendo por conta da crise capitalista que poderá bater com força aqui no ano que vem?
Acredito que a maior visibilidade da extrema-direita, por meio da candidatura do Serra, não tem relação direta com a crise. A questão fundamental, que levou à adoção dessa estratégia (religiosa, conservadora e moralista) por parte de Serra, se deve à existência de uma grande área de identidade das duas candidaturas (Dilma e Serra). Em especial, há concordância na política macroeconômica, que vem sendo adotada desde o início do segundo governo FHC: metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante.
E esta política reflete um modelo econômico que foi construído a partir do início dos anos 1990, com o Collor, Itamar, FHC e Lula. Esse modelo sofreu uma inflexão a partir do segundo governo Lula, com aumento da importância do grande capital da indústria de commodities articulado com o Estado que, por meio do BNDES, vem financiando e patrocinando o fortalecimento e a internacionalização de grandes grupos econômicos nacionais. Isto redefiniu, parcialmente, o bloco de poder político dominante, com o aumento da importância desses segmentos.
É como se o governo Lula estivesse reconstruindo o tripé da época do modelo de substituição de importações: capital internacional, capital estatal e capital privado nacional. Só que, agora, sob a hegemonia do capital financeiro e não, como anteriormente, do capital industrial. É isto que reverbera no debate sobre as privatizações, ou quem é mais privatista; na verdade, aqui há uma diferença na ênfase que se dá à maior ou menor importância do Estado e dos grandes grupos nacionais no modelo de desenvolvimento, que segue, em qualquer caso, sob a hegemonia do capital financeiro.
Embora a direita esteja presente no campo de alianças do PT, no governo Lula e na candidatura Dilma, mantendo e desenvolvendo o modelo econômico, e sem pretender alterá-lo, os tucanos e a candidatura Serra fizeram uma campanha mais de direita e abriram espaços para porta-vozes da extrema direita. Isso acontece como um prenúncio de que a crise permanece e pretende soluções que implicam menos democracia no Brasil? Ou a radicalização, com intolerância, é só eleitoreira?
Acho que há o uso eleitoral da extrema-direita pela campanha do Serra. Como há dificuldades de diferenciação entre as candidaturas, a questão moral e religiosa – na verdade uma falsa questão – apareceu como a única estratégia possível para a oposição de direita. O governo Lula e a Dilma responderam, por sua vez, com a questão das privatizações – entendida, de forma restrita, como sendo apenas a venda de empresas estatais, como lhes interessa. Também é a única distinção relevante que pode ser explicitada do ponto de vista de propaganda de massa. Em suma, Serra faz uso eleitoral do ideário da extrema-direita e Dilma se utiliza do fantasma das privatizações. Tanto num caso, como no outro, as diferenças são bem menores do que aparentam.
Os partidários da candidatura Dilma sustentam que, apesar de sua moderação, da política econômica conservadora e das alianças à direita, o governo Lula teria trazido avanços para a qualidade de vida da população. E que a política externa brasileira teria sido decisiva na derrota da ALCA e no apoio a países como a Venezuela e a Bolívia, contra as pressões dos Estados Unidos. Dizem que as privatizações foram interrompidas e que o poder público se fortaleceu no Banco do Brasil, Petrobrás e em outros setores. E que o governo Lula manteve a demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, apesar das pressões dos militares e do agronegócio. Essas são diferenças importantes em relação aos governos tucanos, na medida em que o modelo econômico da era FHC foi mantido e desenvolvido?
O primeiro governo Lula foi, fundamentalmente, semelhante ao segundo governo FHC: manteve o mesmo modelo econômico e a mesma política econômica, mas ampliando o escopo da política social focalizada com a implantação do Bolsa Família. A partir do final desse governo e início do segundo, o modelo sofreu a inflexão explicada anteriormente, por meio de uma estratégia de articulação de grandes grupos econômicos nacionais por dentro do e com o Estado. O capital estatal e nacional se fortaleceu relativamente ao capital internacional no bloco de poder, mas esse é um preço que o capital financeiro internacional tem que pagar para poder ter os dólares necessários para remeter para o circuito internacional da acumulação.
Porém, a questão decisiva foi a seguinte: com a mesma política econômica, no período Lula, a economia brasileira obteve um desempenho melhor do que no período FHC, em razão do grande crescimento da economia mundial nesse período e que acabou desembocando na crise geral do capitalismo. Nesse período, com a grande melhora do balanço de pagamentos do país, a política econômica pôde ser flexibilizada quantitativamente: menores taxas de juros e mais crédito ao consumidor (inclusive o consignado), menores superávits fiscais primários e mais gastos do governo, permitindo aumentos reais do salário mínimo e dos benefícios da Previdência Social.
Portanto, maior crescimento e menores taxas de desemprego. Isto, sem dúvida, melhorou o nível de consumo dos segmentos de menor renda. Mas isso não deve ser identificado com a ampliação da classe média brasileira, como o governo Lula propagandeia, a partir de um conceito estatístico, não sociológico, de classes sociais utilizado pelos institutos de pesquisa (classes A, B, C, D e E). De fato, o que ocorreu foi uma melhora na distribuição dos rendimentos do trabalho e uma quase manutenção da distribuição funcional da renda (entre capital e trabalho). E tudo isso porque houve um período de maior crescimento, quando pôde haver uma melhora relativa da distribuição sem transferir renda de um segmento social para outro, ou seja, sem maiores atritos. O pagamento de elevadíssimo montante de juros da dívida pública para o capital financeiro pôde ser compatibilizado, momentaneamente, com a ampliação do Bolsa Família e com o aumento real do salário mínimo e dos rendimentos da Previdência Social.
Quanto à política externa, ela de fato se diferenciou, mas acredito que não foi decisiva para enterrar a ALCA; esta tinha fortíssimas resistências dentro dos EUA, nos segmentos do agronegócio de lá – que perderiam com a criação da área de livre comércio; o contrário aconteceria com o agronegócio do Brasil. As privatizações, por sua vez, caminharam em outras direções: parcerias público-privadas e articulação do BNDES com grandes grupos econômicos; a linha de privatizar empresas estatais perdeu espaço. Em suma, estamos assistindo a um movimento contraditório: o capitalismo está se fortalecendo no Brasil e, ao mesmo tempo, a economia está se especializando, cada vez mais, na produção de commodities agrícolas e industriais. O preço disso tudo tem sido a desmobilização dos movimentos sociais e a despolitização da política, com o ideário socialista cada vez mais distante da luta política.
A reforma da Previdência do funcionalismo e a transposição do rio São Francisco, por exemplo, não são exigências do projeto neoliberal no país?
Todas essas ações do governo Lula estão no contexto do modelo liberal periférico. A reforma da Previdência do funcionalismo foi uma medida política para serenar os ânimos do capital financeiro, quando do início do primeiro governo Lula. A obra citada faz parte da lógica do PAC, que é a de melhorar a infra-estrutura do país, por meio da articulação do Estado e de grandes grupos nacionais, com o objetivo de fortalecer o padrão de desenvolvimento capitalista que se está consolidando no país, qual seja, caracterizado por uma especialização na produção e exportação de commodities. O Pré-Sal, provavelmente, reforçará fortemente essa tendência.
A manutenção da política de juros altos, a não suspensão do pagamento da dívida pública e a não realização da reforma agrária não são mais importantes para os capitalistas nacionais e internacionais?
A política de juros altos depende de cada conjuntura; os ganhos financeiros podem vir tanto dos títulos públicos quanto do financiamento do consumo, moradia etc. A reforma agrária não é do interesse, em hipótese alguma, do grande capital. A terra é um ativo financeiro, como outro qualquer, passível de ganhos especulativos; além disso, uma reforma agrária massiva (em grandes proporções) traria sérios problemas para a obtenção de mão-de-obra por parte do agronegócio. Com o boom das exportações brasileiras e o acúmulo de reservas, a dívida externa pública líquida tornou-se negativa e a dívida externa privada vai sendo administrada. Enquanto existirem fluxos abundantes de capitais no mercado internacional, esta não se coloca como um problema imediato.
No caso de a crise se aprofundar nos Estados Unidos e no mundo, é possível uma saída à esquerda?
Só é possível uma saída à esquerda (no sentido amplo, isto é, "social-democrata"), se houver movimento de massa e pressão política, que levariam o grande capital e os Estados capitalistas a redefinirem a forma de funcionamento do capitalismo, como na crise de 1929. Mas esse é um processo muito complexo, que envolve um conjunto enorme de circunstâncias que impedem um prognóstico minimamente seguro. No entanto, as mobilizações recentes na Europa evidenciam que a ascensão dos movimentos sociais não pode ser descartada.
Se a crise se aprofundar ainda mais no Brasil, haverá diferenças na forma de enfrentá-la por um governo do PT ou dos tucanos?
Um governo dos tucanos, provavelmente, trataria a crise da mesma forma como o governo Lula a enfrentou, isto é, com políticas (fiscal e monetária) expansionistas, contrarrestando a tendência à desaceleração econômica. Isto foi feito no mundo todo, em todos os países e em todas as economias. Não havia alternativa dentro das circunstâncias. Quanto a uma retomada da crise, futuramente, não dá para fazer prognósticos com relação à diferenciação entre tucanos e petistas. Dependeria muito da forma como a crise se expressasse.
Otto Filgueiras é jornalista.
26-Out-2010
A crise econômica que atingiu os Estados Unidos em 2008 e se irradiou ao resto do mundo, inclusive ao Brasil, não acabou. Trata-se de uma crise de super-acumulação de capital, que se manifesta, ao mesmo tempo, em superprodução, subconsumo e desproporção setoriais, sendo nessa dimensão semelhante às grandes crises do capitalismo, a exemplo daquela de 1929.
Segundo o economista Luiz Filgueiras, professor-pesquisador da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Economia pela Universidade de Campinas (UNICAMP), com pós-doutorado pela Universidade Paris XIII, na França, autor do livro "História do Plano Real" e co-autor, juntamente com o professor Reinaldo Gonçalves, do livro "Economia Política do Governo Lula", as causas da atual crise estão relacionadas ao novo padrão de desenvolvimento capitalista no mundo, construído desde os anos 1970, que deslocou a hegemonia da acumulação para a dimensão financeira, o que, segundo diz, "implicou uma radicalização da instabilidade que é intrínseca à estrutura e dinâmica desse modo de produção".
De acordo com Luiz Filgueiras, "a saída implica um processo de desvalorização e destruição da riqueza existente, realizada pela própria crise e arbitrada pelos Estados capitalistas, por meio de empréstimos, aquisições (nacionalizações de empresas) e associações". Mas a atuação estatal, socorrendo o grande capital, implicou um enorme endividamento dos governos. Assim, os atuais acontecimentos na Europa, "com governos propondo e efetivando cortes de despesas, demissão de funcionários, redução de salários, reformas das previdências, são a continuação da crise, agora atingindo, em cheio, o Estado e, como conseqüência, os seus trabalhadores". O capítulo seguinte, diz o economista, deverá ser uma recessão nesses países, com o aprofundamento do desemprego.
No caso de a crise se aprofundar no Brasil, Luiz Filgueiras diz que não haverá diferenças na forma de enfrentá-la por um governo do PT ou do PSDB. Segundo ele, um governo dos tucanos, provavelmente, trataria a crise da mesma forma como o governo Lula a enfrentou, isto é, com políticas fiscais e monetárias expansionistas.
Ele também descarta que a crise do capitalismo nos Estados Unidos e no mundo precise de alternativas de extrema-direita como saída. Segundo ele, na campanha presidencial no Brasil, a maior visibilidade da extrema direita, por meio da candidatura de José Serra, não tem relação direta com a crise. "A questão fundamental, que levou à adoção dessa estratégia (religiosa, conservadora e moralista) por parte de Serra se deve à existência de uma grande área de identidade entre as duas candidaturas, do PT e PSDB. Em especial, há concordância na política macroeconômica que vem sendo adotada desde o início do segundo governo FHC, com metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante". E esta política, diz Filgueiras, reflete um modelo econômico que foi construído no início dos anos 1990 e que sofreu uma inflexão no segundo governo Lula, com aumento da importância do grande capital da indústria de commodities articulado com o Estado, que, por meio do BNDES, vem financiando e patrocinando o fortalecimento e a internacionalização de grandes grupos econômicos nacionais.
"É como se o governo Lula estivesse reconstruindo o tripé da época do modelo de substituição de importações: capital internacional, capital estatal e capital privado nacional. Só que, agora, sob a hegemonia do capital financeiro e não, como anteriormente, do capital industrial. Veja a seguir a íntegra da entrevista.
A crise do capitalismo nos Estados Unidos e no mundo acabou?
A crise mundial não é um ponto no tempo; ela é um processo, que se desenvolve de forma desigual e combinada, no tempo e no espaço. O seu centro originário se localizou nos países centrais, em particular nos EUA, mas, como não poderia deixar de ser, afetou também, e duramente, a periferia. A sua natureza já é bastante conhecida, tendo causas determinantes gerais e particulares. As primeiras apontam para uma crise de super-acumulação de capital, que se manifesta, ao mesmo tempo, em superprodução, subconsumo e desproporção setoriais. Nessa dimensão ela é semelhante às grandes crises do capitalismo, como a de 1929. As causas particulares dizem respeito ao novo padrão de desenvolvimento capitalista construído desde os anos 1970, que deslocou a hegemonia da acumulação para a dimensão financeira, o que implicou uma radicalização da instabilidade, que é intrínseca à estrutura e à dinâmica desse modo de produção.
A solução da crise, portanto, tem que se dar nessas duas dimensões. Com relação aos determinantes gerais, a saída da crise implica um processo de desvalorização e destruição da riqueza existente, realizada pela própria crise e arbitrada pelos Estados capitalistas, mediante empréstimos, aquisições (nacionalizações de empresas) e associações. A contrapartida dessa atuação estatal, em socorro do grande capital, implicou um enorme endividamento dos governos. E isto ocorreu em todos os países, mas mais acentuadamente nos países desenvolvidos. Os atuais acontecimentos na Europa, com os diversos governos propondo e efetivando cortes de despesas, demissão de funcionários, redução de salários, reformas das previdências etc., são a continuação da crise, agora atingindo, em cheio, o Estado e, como conseqüência, os seus trabalhadores. O capítulo seguinte deverá ser uma recessão nesses países, com o aprofundamento do desemprego.
Todas essas medidas, no entanto, não resolverão os determinantes estruturais relacionados ao atual padrão de desenvolvimento. Portanto, a tendência é de manutenção da instabilidade intrínseca a esse padrão. Isto significa que a crise não terá solução em curto espaço de tempo. Não há qualquer pressão mais significativa, por parte dos setores populares, que leve o capital a redefinir o atual padrão de desenvolvimento. Na crise de 1929 havia uma conjuntura política – existência da URSS e a ameaça do socialismo, a força dos sindicatos e dos partidos socialistas e comunistas e mobilização de massas - que obrigou e levou à redefinição do padrão de desenvolvimento, quando se instaurou o compromisso social-democrata, o Estado de Bem-Estar Social e as políticas anticíclicas keynesianas. Agora não há essa circunstância, e isto é decisivo no modo como a crise está sendo tratada. Em suma, a tendência é de um período prolongado de estagnação, com momentos curtos de retomada de crescimento e reiteração dos problemas estruturais do atual padrão de desenvolvimento.
A recuperação das economias capitalistas é, portanto, apenas superficial e resultado da grande quantidade de recursos públicos injetados nas empresas pelo Estado, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos, Europa e mesmo no Brasil, onde o governo Lula injetou dinheiro público nos bancos privados e na construção civil?
Como dissemos anteriormente, os Estados foram chamados a socializar as perdas e a arbitrar o processo de desvalorização/destruição da riqueza existente. Daí o grande volume de recursos públicos injetados. Isto resolve momentaneamente, dando o mínimo de ordem e controle ao processo e recuperando a demanda efetiva para que ocorra uma retomada do crescimento. No entanto, isto é insuficiente como solução cabal da crise, pois não altera as características fundamentais do padrão de acumulação que levaram à crise e que podem ser resumidos na total liberdade de movimento do capital, em particular do capital financeiro – processo esse consolidado pela quase total desregulação e liberalização financeira estimuladas e implementadas sob a égide do neoliberalismo, que radicalizaram a instabilidade do modo de produção capitalista.
Por que a moeda brasileira está supervalorizada em relação ao dólar e quais as conseqüências para o país?
Isto está acontecendo por motivos externos e internos. Externamente, em razão da política americana, à qual interessa a desvalorização do dólar em relação a todas as moedas, como forma de recuperação da competitividade de suas exportações e inibição de importações; o que facilitaria a retomada do crescimento. O alvo principal são os países da periferia e, em particular, a China. Internamente, no Brasil, o problema é a elevada taxa de juros, que atrai capitais especulativos e desvaloriza o dólar frente ao real. Mais recentemente, o lançamento de ações da Petrobras no mercado internacional também contribuiu para este fenômeno.
As conseqüências no curto prazo são o maior controle da inflação e uma perda relativa de competitividade das exportações brasileiras e o estímulo às importações, o que complica o balanço de pagamentos do país e aumenta, por conseqüência, a vulnerabilidade externa conjuntural da economia brasileira. No longo prazo, inibe o desenvolvimento de setores industriais de alta tecnologia, condição fundamental para superarmos a dependência tecnológica própria dos países da periferia do capitalismo, levando o país a uma especialização regressiva em commodities. É o fenômeno conhecido como a "doença holandesa", que afetou a Holanda nos anos sessenta e que implicou sua desindustrialização.
A China está com a sua moeda subvalorizada, tem sofrido pressões do governo dos Estados Unido para valorizar o yuan, mas o governo chinês já disse que não vai fazer isso, porque implicaria quebrar muitas empresas, gerar desemprego e instabilidade econômica, social e política, que pode trazer o caos a esse grande país da Ásia. Isso significa desdobramento mais grave da crise, mundialmente?
A China vem sofrendo pressões para valorizar sua moeda há muitos anos. Mas ela não fará isso, porque tem o controle de seu espaço nacional e se situa numa posição privilegiada no cenário e na divisão internacional do trabalho. É o principal credor dos EUA, tem o maior montante de reservas do mundo e atua internacionalmente em todos os tipos de mercado, exportando produtos de baixa, média e alta tecnologia. As próprias empresas dos EUA que estão sediadas na China não têm nenhum interesse na valorização, que implicaria perda de competitividade de suas exportações.
O yuan desvalorizado é parte fundamental da estratégia chinesa de desenvolvimento; não seria realista imaginar que a China venha a aceitar, unilateralmente, sem nenhuma compensação, mudar essa estratégia. No entanto, caso ocorresse, haveria impacto negativo nas suas exportações, o que exigiria uma maior participação de seu mercado interno para a manutenção das atuais taxas elevadíssimas de crescimento do PIB – o que, por sua vez, implicaria uma redefinição da distribuição de renda na sociedade chinesa.
Por outro lado, com a valorização do yuan, as importações serão estimuladas mais ainda, com fortes impactos positivos para as economias de todos os países, principalmente aqueles, como o Brasil, que exportam commodities importantes para o desenvolvimento chinês. Mas tudo isso, se ocorresse, levaria a uma deterioração do balanço de pagamentos da China, que não pode se dar a este luxo, pois sua moeda não é conversível. Por fim, o interesse dos EUA na valorização do yuan se relaciona diretamente à necessidade de retomar o crescimento, reduzir seus déficits fiscais e do balanço de pagamentos (aumentando exportações e reduzindo importações) e também diminuir sua dívida pública.
Antes da eclosão da crise, a extrema direita conquistou governos de países ocidentais, a exemplo da Itália, com Berlusconi; mas, no ápice da crise nos Estados Unidos, o eleito foi Obama. Agora, nas eleições parlamentares, Obama enfrenta dificuldades; a extrema direita do Partido Republicano faz uma campanha acusando Obama até de comunista, que evidentemente não é. O capitalismo está entrando numa crise que precisa de alternativas de extrema-direita para sair dela?
Acredito que qualquer tentativa de saída mais à direita da crise, como estamos assistindo na Europa, não terá sucesso no médio e longo prazos; apenas expressa a recusa em redefinir o padrão de acumulação financeirizado - que tornou o capitalismo mais crítico ainda, pois radicalizou suas tendências a super-acumulação, em particular acentuando sua dimensão fictícia (descolada da produção), e a sua natureza regressiva do ponto de vista social e político. Com isso, a crise econômica se transforma em crise política e não se ataca a questão fundamental para a retomada do crescimento de forma menos instável, qual seja, a forma como vem funcionando o capitalismo há 30 anos. Mas, como disse anteriormente, na atual conjuntura não há ainda um movimento internacional dos trabalhadores e dos setores populares que leve o grande capital a recuar. Portanto, o horizonte é de crise política e social, sem resolução da crise econômica.
No Brasil, a polarização na campanha presidencial esquentou no segundo turno, no qual a extrema-direita encontrou espaço para defender seu ideário retrógrado e de intolerância. Isso está acontecendo por conta da crise capitalista que poderá bater com força aqui no ano que vem?
Acredito que a maior visibilidade da extrema-direita, por meio da candidatura do Serra, não tem relação direta com a crise. A questão fundamental, que levou à adoção dessa estratégia (religiosa, conservadora e moralista) por parte de Serra, se deve à existência de uma grande área de identidade das duas candidaturas (Dilma e Serra). Em especial, há concordância na política macroeconômica, que vem sendo adotada desde o início do segundo governo FHC: metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante.
E esta política reflete um modelo econômico que foi construído a partir do início dos anos 1990, com o Collor, Itamar, FHC e Lula. Esse modelo sofreu uma inflexão a partir do segundo governo Lula, com aumento da importância do grande capital da indústria de commodities articulado com o Estado que, por meio do BNDES, vem financiando e patrocinando o fortalecimento e a internacionalização de grandes grupos econômicos nacionais. Isto redefiniu, parcialmente, o bloco de poder político dominante, com o aumento da importância desses segmentos.
É como se o governo Lula estivesse reconstruindo o tripé da época do modelo de substituição de importações: capital internacional, capital estatal e capital privado nacional. Só que, agora, sob a hegemonia do capital financeiro e não, como anteriormente, do capital industrial. É isto que reverbera no debate sobre as privatizações, ou quem é mais privatista; na verdade, aqui há uma diferença na ênfase que se dá à maior ou menor importância do Estado e dos grandes grupos nacionais no modelo de desenvolvimento, que segue, em qualquer caso, sob a hegemonia do capital financeiro.
Embora a direita esteja presente no campo de alianças do PT, no governo Lula e na candidatura Dilma, mantendo e desenvolvendo o modelo econômico, e sem pretender alterá-lo, os tucanos e a candidatura Serra fizeram uma campanha mais de direita e abriram espaços para porta-vozes da extrema direita. Isso acontece como um prenúncio de que a crise permanece e pretende soluções que implicam menos democracia no Brasil? Ou a radicalização, com intolerância, é só eleitoreira?
Acho que há o uso eleitoral da extrema-direita pela campanha do Serra. Como há dificuldades de diferenciação entre as candidaturas, a questão moral e religiosa – na verdade uma falsa questão – apareceu como a única estratégia possível para a oposição de direita. O governo Lula e a Dilma responderam, por sua vez, com a questão das privatizações – entendida, de forma restrita, como sendo apenas a venda de empresas estatais, como lhes interessa. Também é a única distinção relevante que pode ser explicitada do ponto de vista de propaganda de massa. Em suma, Serra faz uso eleitoral do ideário da extrema-direita e Dilma se utiliza do fantasma das privatizações. Tanto num caso, como no outro, as diferenças são bem menores do que aparentam.
Os partidários da candidatura Dilma sustentam que, apesar de sua moderação, da política econômica conservadora e das alianças à direita, o governo Lula teria trazido avanços para a qualidade de vida da população. E que a política externa brasileira teria sido decisiva na derrota da ALCA e no apoio a países como a Venezuela e a Bolívia, contra as pressões dos Estados Unidos. Dizem que as privatizações foram interrompidas e que o poder público se fortaleceu no Banco do Brasil, Petrobrás e em outros setores. E que o governo Lula manteve a demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, apesar das pressões dos militares e do agronegócio. Essas são diferenças importantes em relação aos governos tucanos, na medida em que o modelo econômico da era FHC foi mantido e desenvolvido?
O primeiro governo Lula foi, fundamentalmente, semelhante ao segundo governo FHC: manteve o mesmo modelo econômico e a mesma política econômica, mas ampliando o escopo da política social focalizada com a implantação do Bolsa Família. A partir do final desse governo e início do segundo, o modelo sofreu a inflexão explicada anteriormente, por meio de uma estratégia de articulação de grandes grupos econômicos nacionais por dentro do e com o Estado. O capital estatal e nacional se fortaleceu relativamente ao capital internacional no bloco de poder, mas esse é um preço que o capital financeiro internacional tem que pagar para poder ter os dólares necessários para remeter para o circuito internacional da acumulação.
Porém, a questão decisiva foi a seguinte: com a mesma política econômica, no período Lula, a economia brasileira obteve um desempenho melhor do que no período FHC, em razão do grande crescimento da economia mundial nesse período e que acabou desembocando na crise geral do capitalismo. Nesse período, com a grande melhora do balanço de pagamentos do país, a política econômica pôde ser flexibilizada quantitativamente: menores taxas de juros e mais crédito ao consumidor (inclusive o consignado), menores superávits fiscais primários e mais gastos do governo, permitindo aumentos reais do salário mínimo e dos benefícios da Previdência Social.
Portanto, maior crescimento e menores taxas de desemprego. Isto, sem dúvida, melhorou o nível de consumo dos segmentos de menor renda. Mas isso não deve ser identificado com a ampliação da classe média brasileira, como o governo Lula propagandeia, a partir de um conceito estatístico, não sociológico, de classes sociais utilizado pelos institutos de pesquisa (classes A, B, C, D e E). De fato, o que ocorreu foi uma melhora na distribuição dos rendimentos do trabalho e uma quase manutenção da distribuição funcional da renda (entre capital e trabalho). E tudo isso porque houve um período de maior crescimento, quando pôde haver uma melhora relativa da distribuição sem transferir renda de um segmento social para outro, ou seja, sem maiores atritos. O pagamento de elevadíssimo montante de juros da dívida pública para o capital financeiro pôde ser compatibilizado, momentaneamente, com a ampliação do Bolsa Família e com o aumento real do salário mínimo e dos rendimentos da Previdência Social.
Quanto à política externa, ela de fato se diferenciou, mas acredito que não foi decisiva para enterrar a ALCA; esta tinha fortíssimas resistências dentro dos EUA, nos segmentos do agronegócio de lá – que perderiam com a criação da área de livre comércio; o contrário aconteceria com o agronegócio do Brasil. As privatizações, por sua vez, caminharam em outras direções: parcerias público-privadas e articulação do BNDES com grandes grupos econômicos; a linha de privatizar empresas estatais perdeu espaço. Em suma, estamos assistindo a um movimento contraditório: o capitalismo está se fortalecendo no Brasil e, ao mesmo tempo, a economia está se especializando, cada vez mais, na produção de commodities agrícolas e industriais. O preço disso tudo tem sido a desmobilização dos movimentos sociais e a despolitização da política, com o ideário socialista cada vez mais distante da luta política.
A reforma da Previdência do funcionalismo e a transposição do rio São Francisco, por exemplo, não são exigências do projeto neoliberal no país?
Todas essas ações do governo Lula estão no contexto do modelo liberal periférico. A reforma da Previdência do funcionalismo foi uma medida política para serenar os ânimos do capital financeiro, quando do início do primeiro governo Lula. A obra citada faz parte da lógica do PAC, que é a de melhorar a infra-estrutura do país, por meio da articulação do Estado e de grandes grupos nacionais, com o objetivo de fortalecer o padrão de desenvolvimento capitalista que se está consolidando no país, qual seja, caracterizado por uma especialização na produção e exportação de commodities. O Pré-Sal, provavelmente, reforçará fortemente essa tendência.
A manutenção da política de juros altos, a não suspensão do pagamento da dívida pública e a não realização da reforma agrária não são mais importantes para os capitalistas nacionais e internacionais?
A política de juros altos depende de cada conjuntura; os ganhos financeiros podem vir tanto dos títulos públicos quanto do financiamento do consumo, moradia etc. A reforma agrária não é do interesse, em hipótese alguma, do grande capital. A terra é um ativo financeiro, como outro qualquer, passível de ganhos especulativos; além disso, uma reforma agrária massiva (em grandes proporções) traria sérios problemas para a obtenção de mão-de-obra por parte do agronegócio. Com o boom das exportações brasileiras e o acúmulo de reservas, a dívida externa pública líquida tornou-se negativa e a dívida externa privada vai sendo administrada. Enquanto existirem fluxos abundantes de capitais no mercado internacional, esta não se coloca como um problema imediato.
No caso de a crise se aprofundar nos Estados Unidos e no mundo, é possível uma saída à esquerda?
Só é possível uma saída à esquerda (no sentido amplo, isto é, "social-democrata"), se houver movimento de massa e pressão política, que levariam o grande capital e os Estados capitalistas a redefinirem a forma de funcionamento do capitalismo, como na crise de 1929. Mas esse é um processo muito complexo, que envolve um conjunto enorme de circunstâncias que impedem um prognóstico minimamente seguro. No entanto, as mobilizações recentes na Europa evidenciam que a ascensão dos movimentos sociais não pode ser descartada.
Se a crise se aprofundar ainda mais no Brasil, haverá diferenças na forma de enfrentá-la por um governo do PT ou dos tucanos?
Um governo dos tucanos, provavelmente, trataria a crise da mesma forma como o governo Lula a enfrentou, isto é, com políticas (fiscal e monetária) expansionistas, contrarrestando a tendência à desaceleração econômica. Isto foi feito no mundo todo, em todos os países e em todas as economias. Não havia alternativa dentro das circunstâncias. Quanto a uma retomada da crise, futuramente, não dá para fazer prognósticos com relação à diferenciação entre tucanos e petistas. Dependeria muito da forma como a crise se expressasse.
Otto Filgueiras é jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário