10/03/2010

A Difícil volta do Cristão para Casa

Por Mário Maestri em 08/03/2010
Em 1º de março, celebrando os 140 anos do fim da Guerra Grande [1864-70], no Parque Nacional Cerro Corá, onde Francisco Solano López caiu lutando no último ato de resistência, o vice-presidente paraguaio exigiu a devolução do célebre canhão El Cristiano, trazido como botim de guerra ao Brasil, hoje no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.
Federico Franco, na presidência devido à viagem de Lugo ao Uruguai, afirmou que o Paraguai “nunca vai cicatrizar a ferida da epopéia de 1865 a 1870 se o Brasil não devolver o arquivo militar que injustificadamente retém hoje, como também o canhão Cristão [...].” Disse esperar que a “mensagem” chegasse a Lula da Silva, para que as devoluções fossem feitas logo, pois considerava “incrível” que o Brasil mantivesse “troféus da guerra”, quando a Argentina e o Uruguai devolveram as últimas recordações daquele excídio. O pedido já fora feito no ano passado.
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Desde 1810, a pressão expansionista de Buenos Aires forçara o Paraguai, para defender sua independência, a esforço autárquico que manteve e expandiu sua produção artesanal e pequeno-manufatureira, enquanto esses setores eram aniquilados na Argentina, Brasil e Uruguai, pela importação de manufaturados ingleses, de melhor qualidade e preço.
Conscientes da insularidade paraguaia, as autoridades guaranis esforçaram-se em apoiar na medida do possível a defesa do país na produção local de armamentos. Após a morte, em 1840, do dr. José Gaspar Rodriguez de Francia, fundador da nação, o presidente Antônio Carlos López enviara, em 1853-54, o filho à Europa, com, entre outras tarefas, a de contratar técnicos para a modernização do país. Desta modernização fez parte a fundação de siderurgia de El Rozado, em Ybycuí, em 1854, destinada à produção de implementos agrícolas e armamentos. A pequena siderúrgica teria sido levada em 1869 para o Brasil, também como presa de guerra.
Desde o início do confronto, o Paraguai enfrentou a Tríplice Aliança com enorme inferioridade de armamentos. O controle do Plata pela Argentina e pelo Império determinou que os exércitos guaranis lutassem durante quase cinco anos sem receber qualquer armamento do exterior, enquanto sobretudo o Brasil comprava o que havia de melhor na Europa.
Durante a guerra, o Paraguai resistiu galvanizando a produção autóctone. Realizou enorme esforço quanto à fundição de canhões de ferro e bronze que, em parte, funcionavam com granadas lançadas em profusão pela artilharia imperial, já que em boa parte não explodiam.
Como parte deste esforço de guerra, foi fundido em Ybycuí e finalizado no arsenal de Assunção, canhão de doze toneladas, fundido com o cobre de parte dos sinos das igrejas do país, lançando balas esféricas de dez polegadas. O El Cristiano estreou na batalha de Curupaity, em 22 de setembro de 1866, a mais estrondosa derrota da Tríplice Aliança. Mais tarde, com o resto dos sinos e com panelas de cobre, produziu-se outro canhão semelhante, o também famoso El Criollo. Dois outros célebres canhões nascidos da arte paraguaia foram o General Díaz, um fracasso, e o Acã Verá.
El Cristiano foi levado para Humaitá, onde se mostrou, com os demais canhões paraguaios, ineficaz contra os encouraçados imperiais. A fortaleza e duas centenas de canhões, entre eles El Cristiano, foram abandonadas aos inimigos pela guarnição, em inícios de 1868. El Criollo escapou por algum tempo do triste destino do irmão mais velho, sendo capturado com a rendição da defesa de Angostura, em dezembro de 1868.
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No dia 3 de março, Lula da Silva teria determinado o fim do longo seqüestro de El Cristiano. Sobre os importantes papéis mantidos em sigilo, nada foi dito ou decido.
Tramita na Câmara dos Deputados regulamentação do direito de consulta da documentação pública. Em geral, na Europa e nos USA, o governo pode manter documentos sob sigilo por cinqüenta anos. No Brasil, o Estado mantém a tradição majestática colonial de guardar sob chaves indefinidamente os papéis, quando quer. Nessa situação encontram-se documentos sobre a expansão das fronteiras do Brasil, a Guerra do Paraguai, a ditadura militar, os acordos para a construção de Itaipu.
No projeto de lei, o Estado manteria papéis sob sigilo por até setenta e cinco anos! Proposta que determinaria a publicidade imediata dos documentos sobre a Guerra do Paraguai. E empurraria com a barriga, por alguns anos, os sobre a ditadura e Itaipu. Ambos, assuntos candentes, devido aos crimes de Estado de 1964-85 e às condições impostas pela ditadura brasileira à paraguaia, quando daquele acordo, e às denúncias de mortes e torturas de operários durante as obras da usina.
Parece difícil que as feridas abertas pela guerra cicatrizem-se com a devolução do botim e revelação da documentação. Mais do que a perda territorial e a enorme indenização paga pelo Paraguai, a grande chaga na carne daquela população foi a liquidação da forte comunidade camponesa proprietária e arrendatária, que entregou literalmente a vida combatendo o avanço de invasores. Ela sabia ou intuía que eles chegavam para impor a ordem liberal-latifundiária reinante em suas nações.

(*) Mário Maestri, 61, historiador, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Sobre o tema, ver, do autor: “A guerra do Paraguai: história e historiografia” (clique aqui). E-mail: maestri@via-rs.net

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