Marcelo Buzetto (*)
De acordo com a nova constituição do país, aprovada por um referendo popular em 28 de setembro de 2008, o Equador é um “Estado constitucional de direito, e justiça, social, democrático, soberano, independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico” (art.1) que “condena toda forma de imperialismo, colonialismo, neocolonialismo, e reconhece o direito dos povos à resistência e libertação de toda forma de opressão” (art.416). Só por estes dois artigos da nova Constituição já é possível perceber que algo de novo acontece neste país.
Desde 21 de janeiro de 2000, quando foi vitoriosa uma grande mobilização social que levou à derrubada do presidente Jamil Mahuad, em Quito, o país vive um processo de ofensiva dos movimentos de massa da classe trabalhadora, que é uma classe profundamente marcada pela questão étnica e pela questão das nacionalidades, pois no país existem 14 nacionalidades e povos (Waorani, Chachi, Tsáchila, Awá, Épera, Kichwa, Cofán, Siona, Andoa, Secoya, Zápara, Shuar, Achuar e Shiwiar, além dos povos afroecuatoriano e montubio).
Desde então diversos movimentos sociais se fortaleceram ou foram criados, e a luta popular deu um salto adiante em termos de organização, mobilização e participação ativa do povo. Essa mobilização de 2000 uniu a Confederação Nacional de Nacionalidades Indígenas – CONAIE, a Confederação de Povos da Nacionalidade Kichwua do Equador – ECUARUNARI e diversos outros movimentos a setores militares do exército organizados pelo Coronel Lúcio Gutierrez, que assumirá a presidência de 2003 a 2005, sendo retirado também pela pressão popular. Hoje várias pessoas e lideranças afirmam que Gutiérrez era um quadro da CIA no Equador, e que participou dos levantamentos populares em 2000 para não deixar que a classe dominante perdesse o controle da situação, impedindo assim uma vitória plena de uma alternativa verdadeiramente popular e independente da classe trabalhadora. O coronel (que agora assina “engenheiro”) criou o Partido Sociedade Patriótica e segue hoje na oposição a Rafael Correa, com grande influência nas Forças Armadas, segundo dizem muitos dirigentes populares do Equador. Esse processo de ofensiva, de reorganização popular com amplas lutas de massa foi criando condições favoráveis para a construção de uma unidade entre diversas organizações, o que resultou na candidatura de Rafael Correa pelo Movimento Aliança País, partido criado para a disputa eleitoral de 2006, que recebeu o apoio do Partido Socialista do Equador-PSE, da Confederação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras - FENOCIN e da Confederación Única Nacional de Afiliados al Seguro Social Campesino CONFEUNASCC, duas organizações da CLOC/VIA CAMPESINA no Equador. Outros setores de esquerda também lançaram candidatos, como o Movimento Popular Democrático-MPD (que é o braço público-legal do Partido Comunista Marxista-Leninista/PCML e tem o controle da União Nacional dos Educadores (UNE) e o Movimento Plurinacional Pachakutik-Novo País (MPP-NP). No segundo turno de 2006 esses movimentos apoiaram Rafael Correa.
Este governo me parece (em algumas coisas, não na maioria das coisas) algo como o que teria sido o Brasil se Lula tivesse vencido as eleições de 1989, ou seja, depois de alguns anos de retomada das lutas sociais e populares, com ofensiva do movimento de massas, conquistas democráticas e reorganização popular, surgem movimentos, organizações e partidos de esquerda que conseguem fazer uma candidatura democrática e popular ganhar as eleições, tem uma nova constituição bastante avançada em muitos temas, o novo governo tem políticas públicas e programas sociais inovadores para os mais pobres, a participação popular cresce, enfim, as condições tornaram-se mais favoráveis para o avanço de um projeto democrático, popular e antiimperialista. Tudo isso acontecendo com todas as possibilidades e todas as contradições possíveis e imagináveis. Todo tipo de oportunismo, reformismo/governismo, divisionismo/sectarismo se desenvolvendo no interior das organizações populares e partidos de esquerda. Várias formas de luta e de organização surgindo e se desenvolvendo. Conflito permanente entre os novos e velhos dirigentes. Concentração de poder X luta pela construção de uma direção mais coletiva para os movimentos. Todo tipo de sedução/cooptação por parte do governo. Luta para manter a independência e a autonomia do movimento social diante do governo. Diversas e distintas situações, para o bem e/ou para o mal. É um governo nacional-desenvolvimentista, de centro-esquerda (talvez com mais conteúdo de esquerda do que de centro), com pessoas ligadas à movimentos sociais em cargos importantes, com posições bastante progressistas em relação a diversos temas, com uma base social popular, principalmente indígena, camponesa e de setores médios (pequena e média burguesia urbana, intelectuais).
É o momento do nacional-desenvolvimentismo equatoriano, onde “governar é construir estradas”, impulsionar grandes obras de infra-estrutura, facilitar o transporte de pessoas e mercadorias por todo o território nacional, com preocupação ambiental e social, como sempre manifesta Correa em suas intervenções. Os direitos democráticos mais elementares para os povos e nacionalidades indígenas estão chegando agora, é algo novo, conquistado coma as lutas massivas dos últimos anos, que resultaram em leis e numa nova constituição. A democratização dos meios de comunicação é outro desafio, e o governo contra-ataca indo para cima dos monopólios com uma campanha “Liberdade de Expressão, Sim! Liberdade de Difamação, Não!”, “Liberdade de Expressão, Sim! Liberdade de Distorção, Não!”. Uma coisa é certa: o nível de consciência política das massas se elevou nesses últimos 10 anos, também sua capacidade de organização e de mobilização, mas tudo isso ainda é muito insuficiente para os desafios que a classe trabalhadora equatoriana tem pela frente. Os que apóiam o governo dizem que há uma “Revolução Cidadã” em curso. Eu diria: não há revolução alguma, nem situação revolucionária, nem mesmo situação pré-revolucionária. Existe um processo de mobilização de massas que pode avançar para uma situação pré-revolucionária ou não, depende de uma série de fatores, das condições objetivas e subjetivas do próximo período.
Os meios de produção continuam nas mãos dos mesmos, antes e depois de Correa. Quem apóia o governo caracteriza o mesmo como sendo um governo em disputa (FENOCIN, CONFEUNASCC, etc, e me pareceu a caracterização da maioria dos movimentos sociais). A diferença é que existem movimentos e organizações dentro desse campo mais submissos ao governo e movimentos/organizações com mais capacidade de análise crítica, autonomia e independência, indo num apoio mais crítico (caso da FENOCIN). Todos reconhecem a existência de setores conservadores e até mesmo de direita dentro do próprio governo. Mas reconhecem que as condições para a esquerda acumular forças são mais favoráveis na atualidade. Quem se coloca na oposição “de esquerda” ao governo caracteriza o mesmo como um governo de direita (o que considero um equívoco), como é o caso da ECUARUNARI. Também o MPD/PCML afirma que o governo está num caminho de direitização.
Os que se opõem a esta tese dizem que CONAIE/ECUARUNARI/PACHAKUTIK partiram para a oposição pois não tiveram êxito na tentativa de chantagear o governo, ou seja (segundo lideranças do governo e de vários movimentos sociais), chegaram com uma lista de cargos com nomes já indicados de suas organizações, dizendo que se o governo não aceitasse o acordo, de trocar cargos por apoio político, iriam para a oposição.
Outra crítica que muitos movimentos sociais fazem a esta “oposição de esquerda” é que tem uma visão muito corporativista, sempre o mais importante é a minha organização, a minha reivindicação, a luta dos povos indígenas, desprezando/menosprezando outras lutas e outros setores da classe trabalhadora. Já as três organizações citadas criticam FENOCIN/CONFEUNSCC e outros afirmando que estes foram cooptados e agora estão recebendo os cargos do governo como prêmio por sua obediência a Correa.No caso do MPD/PCML um dos motivos de sua crescente oposição a Correa, segundo nos disseram algumas lideranças camponesas e indígenas, foi a nova lei da educação superior, que criou novas regras para as eleições de reitor e assim criou condições para retirar das mãos do MPD/PCML o controle da Universidade Andina Simon Bolívar, pois a base de atuação desse partido são as universidades.
Uma preocupação presente no dia-a-dia das lutas sociais no Equador é a possibilidade de uma nova contra-ofensiva vitoriosa por parte da direita, que tenta hoje se reorganizar aproveitando-se da situação de divisão entre as forças populares e antiimperialistas. A forma como as divergências (dentro da esquerda) estão se apresentando pode levar a um distanciamento tão grande entre as várias organizações que o diálogo e o debate sobre qual é o projeto estratégico poderá ficar prejudicado, encerrando assim a possibilidade de um acordo programático mínimo entre o que lutam para colocar o país nos rumos de uma transição com caráter anticapitalista.
Nosso desejo é que os trabalhadores e trabalhadoras do Equador possam fazer valer a consigna “Nenhum passo atrás!”, pois já perdemos em Honduras, continuamos perdendo na Colômbia e a vitória eleitoral da direita na Chile também foi mais um sinal de que devemos nos preparar melhor para os embates do próximo período.
(*) Marcelo Buzetto-Setor de Relações Internacionais do MST. Esteve recentemente no Equador participando do Primeiro Encontro Nacional de Organizações e Movimentos Sociais, na cidade de Baños, 14 e 15/01/10.
De acordo com a nova constituição do país, aprovada por um referendo popular em 28 de setembro de 2008, o Equador é um “Estado constitucional de direito, e justiça, social, democrático, soberano, independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico” (art.1) que “condena toda forma de imperialismo, colonialismo, neocolonialismo, e reconhece o direito dos povos à resistência e libertação de toda forma de opressão” (art.416). Só por estes dois artigos da nova Constituição já é possível perceber que algo de novo acontece neste país.
Desde 21 de janeiro de 2000, quando foi vitoriosa uma grande mobilização social que levou à derrubada do presidente Jamil Mahuad, em Quito, o país vive um processo de ofensiva dos movimentos de massa da classe trabalhadora, que é uma classe profundamente marcada pela questão étnica e pela questão das nacionalidades, pois no país existem 14 nacionalidades e povos (Waorani, Chachi, Tsáchila, Awá, Épera, Kichwa, Cofán, Siona, Andoa, Secoya, Zápara, Shuar, Achuar e Shiwiar, além dos povos afroecuatoriano e montubio).
Desde então diversos movimentos sociais se fortaleceram ou foram criados, e a luta popular deu um salto adiante em termos de organização, mobilização e participação ativa do povo. Essa mobilização de 2000 uniu a Confederação Nacional de Nacionalidades Indígenas – CONAIE, a Confederação de Povos da Nacionalidade Kichwua do Equador – ECUARUNARI e diversos outros movimentos a setores militares do exército organizados pelo Coronel Lúcio Gutierrez, que assumirá a presidência de 2003 a 2005, sendo retirado também pela pressão popular. Hoje várias pessoas e lideranças afirmam que Gutiérrez era um quadro da CIA no Equador, e que participou dos levantamentos populares em 2000 para não deixar que a classe dominante perdesse o controle da situação, impedindo assim uma vitória plena de uma alternativa verdadeiramente popular e independente da classe trabalhadora. O coronel (que agora assina “engenheiro”) criou o Partido Sociedade Patriótica e segue hoje na oposição a Rafael Correa, com grande influência nas Forças Armadas, segundo dizem muitos dirigentes populares do Equador. Esse processo de ofensiva, de reorganização popular com amplas lutas de massa foi criando condições favoráveis para a construção de uma unidade entre diversas organizações, o que resultou na candidatura de Rafael Correa pelo Movimento Aliança País, partido criado para a disputa eleitoral de 2006, que recebeu o apoio do Partido Socialista do Equador-PSE, da Confederação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras - FENOCIN e da Confederación Única Nacional de Afiliados al Seguro Social Campesino CONFEUNASCC, duas organizações da CLOC/VIA CAMPESINA no Equador. Outros setores de esquerda também lançaram candidatos, como o Movimento Popular Democrático-MPD (que é o braço público-legal do Partido Comunista Marxista-Leninista/PCML e tem o controle da União Nacional dos Educadores (UNE) e o Movimento Plurinacional Pachakutik-Novo País (MPP-NP). No segundo turno de 2006 esses movimentos apoiaram Rafael Correa.
Este governo me parece (em algumas coisas, não na maioria das coisas) algo como o que teria sido o Brasil se Lula tivesse vencido as eleições de 1989, ou seja, depois de alguns anos de retomada das lutas sociais e populares, com ofensiva do movimento de massas, conquistas democráticas e reorganização popular, surgem movimentos, organizações e partidos de esquerda que conseguem fazer uma candidatura democrática e popular ganhar as eleições, tem uma nova constituição bastante avançada em muitos temas, o novo governo tem políticas públicas e programas sociais inovadores para os mais pobres, a participação popular cresce, enfim, as condições tornaram-se mais favoráveis para o avanço de um projeto democrático, popular e antiimperialista. Tudo isso acontecendo com todas as possibilidades e todas as contradições possíveis e imagináveis. Todo tipo de oportunismo, reformismo/governismo, divisionismo/sectarismo se desenvolvendo no interior das organizações populares e partidos de esquerda. Várias formas de luta e de organização surgindo e se desenvolvendo. Conflito permanente entre os novos e velhos dirigentes. Concentração de poder X luta pela construção de uma direção mais coletiva para os movimentos. Todo tipo de sedução/cooptação por parte do governo. Luta para manter a independência e a autonomia do movimento social diante do governo. Diversas e distintas situações, para o bem e/ou para o mal. É um governo nacional-desenvolvimentista, de centro-esquerda (talvez com mais conteúdo de esquerda do que de centro), com pessoas ligadas à movimentos sociais em cargos importantes, com posições bastante progressistas em relação a diversos temas, com uma base social popular, principalmente indígena, camponesa e de setores médios (pequena e média burguesia urbana, intelectuais).
É o momento do nacional-desenvolvimentismo equatoriano, onde “governar é construir estradas”, impulsionar grandes obras de infra-estrutura, facilitar o transporte de pessoas e mercadorias por todo o território nacional, com preocupação ambiental e social, como sempre manifesta Correa em suas intervenções. Os direitos democráticos mais elementares para os povos e nacionalidades indígenas estão chegando agora, é algo novo, conquistado coma as lutas massivas dos últimos anos, que resultaram em leis e numa nova constituição. A democratização dos meios de comunicação é outro desafio, e o governo contra-ataca indo para cima dos monopólios com uma campanha “Liberdade de Expressão, Sim! Liberdade de Difamação, Não!”, “Liberdade de Expressão, Sim! Liberdade de Distorção, Não!”. Uma coisa é certa: o nível de consciência política das massas se elevou nesses últimos 10 anos, também sua capacidade de organização e de mobilização, mas tudo isso ainda é muito insuficiente para os desafios que a classe trabalhadora equatoriana tem pela frente. Os que apóiam o governo dizem que há uma “Revolução Cidadã” em curso. Eu diria: não há revolução alguma, nem situação revolucionária, nem mesmo situação pré-revolucionária. Existe um processo de mobilização de massas que pode avançar para uma situação pré-revolucionária ou não, depende de uma série de fatores, das condições objetivas e subjetivas do próximo período.
Os meios de produção continuam nas mãos dos mesmos, antes e depois de Correa. Quem apóia o governo caracteriza o mesmo como sendo um governo em disputa (FENOCIN, CONFEUNASCC, etc, e me pareceu a caracterização da maioria dos movimentos sociais). A diferença é que existem movimentos e organizações dentro desse campo mais submissos ao governo e movimentos/organizações com mais capacidade de análise crítica, autonomia e independência, indo num apoio mais crítico (caso da FENOCIN). Todos reconhecem a existência de setores conservadores e até mesmo de direita dentro do próprio governo. Mas reconhecem que as condições para a esquerda acumular forças são mais favoráveis na atualidade. Quem se coloca na oposição “de esquerda” ao governo caracteriza o mesmo como um governo de direita (o que considero um equívoco), como é o caso da ECUARUNARI. Também o MPD/PCML afirma que o governo está num caminho de direitização.
Os que se opõem a esta tese dizem que CONAIE/ECUARUNARI/PACHAKUTIK partiram para a oposição pois não tiveram êxito na tentativa de chantagear o governo, ou seja (segundo lideranças do governo e de vários movimentos sociais), chegaram com uma lista de cargos com nomes já indicados de suas organizações, dizendo que se o governo não aceitasse o acordo, de trocar cargos por apoio político, iriam para a oposição.
Outra crítica que muitos movimentos sociais fazem a esta “oposição de esquerda” é que tem uma visão muito corporativista, sempre o mais importante é a minha organização, a minha reivindicação, a luta dos povos indígenas, desprezando/menosprezando outras lutas e outros setores da classe trabalhadora. Já as três organizações citadas criticam FENOCIN/CONFEUNSCC e outros afirmando que estes foram cooptados e agora estão recebendo os cargos do governo como prêmio por sua obediência a Correa.No caso do MPD/PCML um dos motivos de sua crescente oposição a Correa, segundo nos disseram algumas lideranças camponesas e indígenas, foi a nova lei da educação superior, que criou novas regras para as eleições de reitor e assim criou condições para retirar das mãos do MPD/PCML o controle da Universidade Andina Simon Bolívar, pois a base de atuação desse partido são as universidades.
Uma preocupação presente no dia-a-dia das lutas sociais no Equador é a possibilidade de uma nova contra-ofensiva vitoriosa por parte da direita, que tenta hoje se reorganizar aproveitando-se da situação de divisão entre as forças populares e antiimperialistas. A forma como as divergências (dentro da esquerda) estão se apresentando pode levar a um distanciamento tão grande entre as várias organizações que o diálogo e o debate sobre qual é o projeto estratégico poderá ficar prejudicado, encerrando assim a possibilidade de um acordo programático mínimo entre o que lutam para colocar o país nos rumos de uma transição com caráter anticapitalista.
Nosso desejo é que os trabalhadores e trabalhadoras do Equador possam fazer valer a consigna “Nenhum passo atrás!”, pois já perdemos em Honduras, continuamos perdendo na Colômbia e a vitória eleitoral da direita na Chile também foi mais um sinal de que devemos nos preparar melhor para os embates do próximo período.
(*) Marcelo Buzetto-Setor de Relações Internacionais do MST. Esteve recentemente no Equador participando do Primeiro Encontro Nacional de Organizações e Movimentos Sociais, na cidade de Baños, 14 e 15/01/10.
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