29/10/2008

AS ELEIÇÕES DE 2008 E AS ALTERNATIVAS DA ESQUERDA SOCIALISTA NO BRASIL

Por Ivan Pinheiro*

As eleições municipais deste ano, apesar de absolutamente despolitizadas, acabaram por armar o cenário em que se dará a batalha eleitoral de 2010. Se a esquerda socialista não aprender com os resultados de 2008, vai continuar assistindo o jogo institucional de fora do campo, pela televisão, uma briga de cachorro grande entre dois projetos, cada vez mais parecidos, ambos se apresentando como a melhor alternativa para destravar e alavancar o capitalismo: o campo majoritário do PT e o PSDB. O centro do debate serão números macro-econômicos, ou seja, a comparação entre os governos FHC e Lula do ponto de vista do "risco Brasil", do preço do dólar, da balança comercial, das reservas internacionais, de quem criou mais (e piores) empregos e captou mais investimentos estrangeiros. Para usar uma expressão dos comentaristas econômicos burgueses, "quem fez melhor o dever de casa", leia-se, quem mais favoreceu o capital, que continua, no governo Lula, a aumentar sua participação na riqueza nacional, em detrimento do trabalho.

E o pior é que, se a esquerda socialista e os movimentos populares não criarem uma alternativa, quem vai decidir o jogo será o PMDB, o partido que sai mais fortalecido dessas eleições e que já começa a falar grosso, querendo as Presidências do Senado e da Câmara, ameaçando candidatura própria em 2010, para negociar mais espaço de poder, além dos seis ministérios que já ocupa. E é bom lembrar que o PMDB só tem compromisso com Lula até 2010 e assim mesmo se o partido continuar confortável em seu governo.

Aliás, esse jogo pode ser resolvido antes de começar o primeiro tempo. Alguns fatores podem levar a um consenso burguês que imponha, em 2010, uma solução de "união nacional", em torno de alguém como Aécio Neves, que se apresenta "acima das classes e dos partidos", reencarnando seu avô, Tancredo Neves, a julgar pela experiência piloto vitoriosa em Belo Horizonte, onde haverá um governo de "coabitação" PT/PSDB, na barriga de aluguel da legenda do PSB. Se este governo for um sucesso, a burguesia pode forçar a edição nacional dessa experiência. Afinal, os dois partidos fizeram aliança em mais de 1.000 municípios nestas eleições.

O fator com mais potencial para pressionar uma solução desse tipo é a imprevisível crise mundial do capitalismo, que já "atravessou o Atlântico" e começa a trazer turbulências para a economia brasileira. O agravamento da crise e o risco de Lula ficar refém do PMDB podem levar o governo federal para posições mais conservadoras.

Até porque a força do PMDB fica maior ainda, quando se verifica que a disputa pelo segundo lugar, nestas eleições, entre PTxPSDB, não teve vencedor. Não havendo uma segunda força incontestável, a primeira paira acima das duas. Ambos saem destas eleições mais ou menos do mesmo tamanho, em número de prefeitos e vereadores. Serra teve uma vitória em São Paulo, mas com um candidato "terceirizado", filiado ao DEM, partido derrotado nacionalmente, condenado a sublegenda do PSDB, que consolidou sua hegemonia na oposição de direita, que inclui (quem diria!) o PPS.

O PT ficou do mesmo tamanho, mas perdeu qualidade, saindo das capitais mais importantes para a periferia. Perdeu três segundos turnos em capitais para o PMDB. Não se pode dizer que Lula foi derrotado nestas eleições, mas saiu com menos peso político. A falácia da transferência de votos se esfarelou, praticamente tirando do páreo a candidata a "poste", Dilma Russef, gerente principal do "choque de capitalismo". Outro potencial candidato da base do governo, o indefectível Cyro Gomes, pilotou um terceiro lugar na campanha em Fortaleza, que considerava seu quintal. E como deu trabalho para Lula eleger Luiz Marinho, em São Bernardo, onde o Presidente mora, vota e tem seu berço político: foram necessários dois turnos e a campanha mais cara de todo o país, na relação custo/eleitor! A situação do PT em 2010 pode não ser confortável. Pela primeira vez, Lula não será candidato a Presidente e até agora não apareceu o "candidato natural" do Partido.

Diante deste quadro, deve saltar aos olhos de quem se considera de esquerda a necessidade de se tentar criar uma alternativa à bipolaridade conservadora ou ao consenso burguês. A primeira coisa é abandonar a ilusão de uma candidatura "de esquerda" do PT à sucessão de Lula (que nem é "de esquerda"), até porque qualquer candidatura do PT só terá alguma possibilidade se aprovada pelo PMDB. Aliás, pode acontecer de o PMDB oferecer a Vice ao PT em 2010, pois, com a crise econômica, a tendência é que Lula, na ocasião, já não desfrute mais do atual índice de popularidade.

A segunda questão é reconhecer que a frente de esquerda formada em 2006 é absolutamente insuficiente para se auto-proclamar alternativa de poder. Não se trata aqui de analisar a questão somente pelo resultado eleitoral dos três partidos que a compuseram (PCB, PSOL e PSTU), que foi abaixo da expectativa, sobretudo no caso do PSOL, partido-frente, herdeiro de uma tradição eleitoral da antiga esquerda do PT, portador de quatro mandatos no Congresso Nacional. Os resultados matemáticos desses partidos foram fracos, principalmente pela desigualdade de condições frente aos partidos burgueses e reformistas, que dispõem de recursos fabulosos dos setores do capital que os financiam. Mas o fato é que esses três partidos, mesmo juntos, não se tem apresentado como uma real alternativa de poder.

Tanto é que a frente de esquerda não se reproduziu nacionalmente nestas eleições exatamente porque em 2006 não passou de uma coligação eleitoral, sem sequer um programa, sem continuidade, sem se transformar numa FRENTE POLÍTICA real, permanente. Uma frente de esquerda tem que apresentar um projeto político alternativo, para além das eleições, e não ser um mero expediente para eleger parlamentares e dar musculatura a máquinas partidárias.

A criação de uma alternativa real de poder em 2010 não pode ser apenas um ato de vontade da esquerda. Se o movimento de massas não se reanimar, a reedição de uma frente de partidos com registro em 2010 (PCB, PSOL e PSTU) será apenas um gesto burocrático, mais uma coligação eleitoral, fadada novamente à derrota. O que precisamos, além de apostar no movimento de massas, é constituir uma FRENTE POLÍTICA, baseada num programa comum e na unidade de ação, uma frente muito mais ampla do que esses três partidos citados e que incorpore outras organizações populares, movimentos sociais, personalidades e correntes de esquerda não registradas no TSE, até para enfrentar as conseqüências da crise do capitalismo, que certamente recairão nas costas dos trabalhadores e do povo em geral.

Mas não pode ser uma frente política apenas para disputar eleições, mas para unir, organizar e mobilizar os setores populares num bloco histórico para lutar por uma alternativa de esquerda para o país, capaz de galvanizar os trabalhadores pelas transformações econômicas, sociais e políticas, na construção de uma sociedade fraterna e solidária. As experiências recentes na América Latina mostram que a esquerda socialista só tem possibilidade de se tornar alternativa de poder e de realizar mudanças a partir de eleições, se a vitória eleitoral for produto do avanço do movimento de massas e se vier a enfrentar os inimigos de classe e romper os limites da legalidade burguesa.

(*) Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB (Partido Comunista Brasileiro)

28/10/2008

"O MST recriou a escola" (entrevista).

Paulo Eduardo Arantes

Sistema de educação paralelo, como se costuma definir as escolas itinerantes do MST, é um modo de dizer diante da "falta de melhor denominação para a concepção sistêmica de todo o processo educativo que singulariza o MST". Para o filósofo e professor aposentado da USP, Paulo Arantes, "sem terra, e tudo o mais que se refere aos mínimos de uma vida civilizada, o MST foi reinventando um novo sujeito, que acabou recriando também a Escola". Uma escola para formar o trabalhador enquanto agente de sua própria emancipação, "escapando da condição de máquina de produzir mais valia neste grande moinho de gastar gente, como Darcy Ribeiro definiu o Brasil". A educação popular - que tem como ícone a Escola Nacional Florestan Fernandes -, a perda de rumo da esquerda intelectual brasileira e o ensino de filosofia no País estão contemplados nesta análise do autor de uma respeitável obra, que inclui "Zero à Esquerda", "O Fio da Meada" e o recente "Extinção", entre outros.

Por: Maricélia Pinheiro
Adverso – O encontro histórico da USP e do MST teria se dado na figura da Escola Nacional Florestan Fernandes. Por que o senhor se refere a esse fato como “confluência tardia” e “desencontro histórico”?

Paulo Arantes – Se havia um encontro marcado, a USP não compareceu. Seria melhor especificar de saída o que estamos entendendo por USP. Seu embrião, em 1934, foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a agregação original de saberes que melhor encarnava o espírito da instituição universitária, uma real novidade entre nós. Refiro-me ao corte europeu de sua concepção, reunindo ensino e pesquisa numa ambiência de livre exame, ciência pura e desinteressada. O conjunto impregnado por um sentimento novo de relevância cultural e, por extensão, social. Afinal, era a década de 30, quando o País parecia estar de cabeça para baixo.

A oligarquia paulista acabou gerando um ambiente “formador” desta mesma elite pela cristalização de um pensamento radical de classe média. Como Antonio Candido chamou aquela primeira visão não-aristocrática do Brasil, baseada no estudo da recém descoberta “realidade” do País. Clima estudioso, animado por uma energia política que não precisava ser propriamente revolucionária para encaminhar num sentido progressista aqueles novos técnicos de sua própria inteligência – era assim que os via Mário de Andrade. Desse novo rumo brotou o encontro da ciência social com as classes populares, não só as que estavam entrando em cena, como as que a modernização deixara à beira do caminho.

Quando o MST deu o nome de Florestan à sua Escola Nacional, é bem possível que uma espécie de sexto sentido histórico o tenha guiado até àquele vínculo entre estudo exigente e empatia com os grupos oprimidos e marginalizados. Certamente no intuito de reativá-lo num patamar à altura dos novos tempos. Mas nossa faculdade foi ficando para trás: quanto mais se especializava e profissionalizava no sentido de mera prestadora de serviços culturais, a adversidade social crescente conferia outra dimensão de combate e pensamento a um movimento social do porte do MST. O reencontro anunciado pela escolha do nome revelou-se muito mais simbólico do que efetivo, muito mais uma evocação de um elo perdido do que o fio de uma meada enfim retomada.

A tradição crítica iniciada nos anos 30 se encerrara de vez, pouco antes do seu mais legítimo destinatário entrar em campo em meados dos anos 80, o MST. Enquanto um crescia, a outra definhava. Esse desencontro verdadeiramente histórico é fruto de uma construção nacional que não aconteceu. Como um sistema intelectual-popular não se formou, as participações individuais, mesmo as mais empenhadas, regrediram à condição de manifestações avulsas de compromisso pessoal.

Adverso – O que diferencia o MST dos demais movimentos sociais brasileiros? E que sistema de educação paralelo é esse criado por eles?

Paulo Arantes – Paralelo é modo de dizer, na falta de melhor denominação para a concepção sistêmica de todo o processo educativo que singulariza o MST. Não conheço nada que sequer se aproxime de toda a elaboração do movimento a respeito. Pelo menos desde a ruptura popular que o nome de Paulo Freire simboliza não se via tamanha centralidade da Pedagogia, em seu sentido transformador amplo, na formulação e condução de uma política de emancipação social através da luta pela terra. A educação como “formação” (Bildung) - na acepção mais substantiva do termo - acompanha em profundidade cada uma das etapas de um dos lemas estratégicos do Movimento: ocupar, produzir, resistir. A impressão de “sistema paralelo de educação”, do ensino fundamental até os convênios com as universidades menos preconceituosas, talvez advenha da percepção de que tudo se passa como se, nesta centralidade da instrução na luta de uma classe despossuída, encontrássemos a prefiguração de uma sociedade nacional e popular que ainda relutasse em abandonar o horizonte do possível.

Daí outra particularidade deste movimento sem igual: o único a incorporar metodicamente ao seu sistema de referências os grandes marcos de reflexão que delimitam a tradição crítica brasileira. De Caio Prado Júnior a Celso Furtado, cuja originalidade até hoje faz pensar, só o MST soube reconhecer. Ao contrário dos demais coletivos que pontuaram a história política do País pela combinação não prevista de capitalismo e escravidão, ou pela visão inédita do subdesenvolvimento como um resultado histórico-estrutural - e não uma etapa atrasada na linha evolutiva da modernização.

Acresce que um fio condutor, que Antonio Candido chamaria de radical, ora mais, ora menos puxado pelos extremos, percorreu essa tradição hoje extinta em sua vertente acadêmica: a passagem traumática em todos os sentidos da Colônia à Nação. Nó a ser desatado pelo processo que Caio Prado chamou de Revolução Brasileira (deixando em suspenso a definição de seu caráter), ou atado de vez. O nó cego da Revolução Burguesa, a reação autocrática permanente mapeada por Florestan.

Nessa plataforma e suas ramificações posteriores, o MST assentou seu enfoque do problema da terra e seu projeto nacional. Mesmo defasada nos seus termos, trata-se de uma confluência entre formas originais de pensamento que se cristalizaram - refletindo sobre a diferença brasileira no âmbito da expansão histórica do capitalismo do centro para a periferia por ele mesmo criada, pois não existe periferia em si - e uma prática política de ruptura e invenção social tocada pela iniciativa dos espoliados da terra, que não estava no programa de ninguém. Algo verdadeiramente notável.

Adverso – O senhor poderia explicar esse momento em que o MST vira uma instituição e a USP passa de instituição a organização?

Paulo Arantes – A USP começou a perder o seu perfil humboldtiano de universidade mal iniciado o período de transição nos anos 80. A ditadura massificara, pensando demagogicamente resolver o problema do chamado excedente. A esquerda achava que bastava democratizar o poder acadêmico exercido sobre aquela nova massa estudantil e docente. O contemporâneo colapso do desenvolvimento precipitou o longo processo de sucateamento e confinamento da vida acadêmica ao salve-se quem puder da administração da escassez. Como as demais instituições do welfare periférico, a USP foi alvo de todos os ajustes e reengenharias que se sabe. Fragmentou-se num arquipélago de institutos e fundações de apoio, povoados por estudantes-usuários e pesquisadores-investidores (no seu próprio capital humano). Como no mundo do trabalho, corroeu-se igualmente o caráter, na acepção sociológica que lhe deu Richard Sennet. Não estou moralizando, simplesmente notando que a idéia de carreira, sem carreirismo, deixou de fazer sentido. O ato docente, fundado numa vida dedicada à pesquisa, do berço acadêmico à vida ativa depois de uma aposentadoria digna, caiu no vazio institucional que se instalava. Sem o docente formador que inspira e enriquece os alunos – muito menos que o seu currículo, para o qual de fato passou a trabalhar como um condenado – não se pode mais falar da universidade como uma escola. Ponto final.

O MST nasceu naquele exato momento, só que dobrou tal esquina da nossa história recente no sentido contrário, politizando o mais extremo desvalimento. Sem terra, e tudo o mais que se refere aos mínimos de uma vida civilizada, foi reinventando um novo sujeito, que acabou recriando também a Escola. Assim, com maiúscula, pois sua crença - que eu chamaria de socialista - no poder da instrução na transformação do povo trabalhador, levou-o a instituir praticamente do nada, um dos raros ambientes que ainda podemos chamar de “formadores” em nosso País e na América Latina. Formador ou humanizador, como se queira.

É preciso lembrar que no centro do MST está o problema da produção. De alimentos, para ser mais específico nesta hora de crise alimentar global. Refiro-me, portanto, à preservação e ampliação de um ambiente humanizador, conjugado ao meio hostil do trabalho penoso e acossado por toda sorte de coerções. Da violência proprietária ao descaso dos poderes constituídos, desde sempre para facilitar a esfola costumeira dos primeiros. Falo do trabalhador que se instrui e cultiva enquanto agente de sua própria emancipação, que se humaniza e forma, escapando da condição de máquina de produzir mais valia neste grande moinho de gastar gente, como Darcy Ribeiro definiu o Brasil.

Adverso – A Universidade Pública tem o dever de abrir as portas para os movimentos sociais e tomar como suas as demandas destes? Como o senhor avalia o envolvimento das universidades brasileiras, especialmente as públicas, com os movimentos sociais?

Paulo Arantes – Aqui entramos em campo minado. Até agora nosso foco era uma Faculdade muito particular no sistema USP, cujo surgimento, aliás, se deu à revelia das grandes máquinas de diplomação da elite branca local (Medicina, Direito e Engenharia). Um sistema capitalista de profissões baseado na separação hierárquica entre concepção e execução. Para os peões, a escola técnica e olhe lá, nos velhos tempos fordistas. Imaginemos a situação surreal: um movimento social bate à porta da Escola Politécnica! De duas uma. Ou é a revolução que já ultrapassou todas as barreiras prévias àquele acesso privilegiado (e irá demonstrar na prática o que é uma verdadeira sociedade do conhecimento), ou será que ninguém se deu conta do que significa ingressar num sistema destinado a subordinar outras formas de trabalho? Neste último caso, descontada a inverossimilhança do exemplo, o remoto sucesso da iniciativa apenas denunciaria a pulverização do referido movimento num leque de ações afirmativas individuais.

Quanto aos convênios do MST com as universidades – para ir direto ao ponto –, correm por outra faixa que se poderia chamar de capacitação técnica estratégica. Como a direita não se engana a esse respeito, vive à beira de um ataque de nervos e sempre que pode extrapola. Seu fundamento material é o conhecimento socialmente produzido, porém confinado e esterilizado. Dito isto, a verdade verdadeira é que a esquerda acadêmica não sabe o que fazer, salvo a monótona reafirmação de uma universidade que nunca foi social.

Adverso – Seria possível traçar um paralelo entre o magistério da filosofia há 50 anos e hoje? O senhor acredita que com a volta da obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia no Ensino Médio, o professor dessas disciplinas pode voltar a ser valorizado?

Paulo Arantes – Há meio século, o País não era menos socialmente horrendo. Mas o vínculo recente entre uma Faculdade de Filosofia como a nossa e os quadros do magistério secundário de cujo aprimoramento em princípio se encarregaria, é pelo menos, uma pequena revolução cultural em andamento, nos limites do possível (permitido pelo maior ou menor esclarecimento da própria burguesia). De resto, ela mesma enviava seus filhos de preferência àqueles ginásios e liceus que, embora públicos, eram seus mesmos ou compartilhados com as camadas médias da população. Classes das quais provinham os professores que chegaram a gozar de reconhecimento social numa escala impensável nos dias de hoje. Depois deste breve fastígio de classe, veio aos poucos o que se sabe: com a chegada da massa empobrecida, o aviltamento profissional e uma dramática desautorização da condição docente.

Não seria a filosofia que faria o “dia nascer feliz” no ensino médio brasileiro. Quem viu o filme, sabe que não há indicador que resista àquelas imagens de frustração e desengano. Que, aliás, precisam ser revistas na sua verdadeira chave, como vem fazendo, por exemplo, a socióloga Regina Magalhães de Souza. A seu ver, a escola à deriva, sem projeto educativo, objetivos ou conteúdos, não está em crise terminal, mas em perfeita sintonia com as atuais demandas de socialização dos jovens através do “aprendizado” de práticas de negociação com os novos fatos da vida. Assim, o que se “aprende” a valorizar num centro emissor de certificados – sem maior significado que o de validar a seleção já consumada dos perdedores – é o saber movimentar-se num mundo de coisas novas que, no entanto, são apenas as já existentes. No limite, a consagração de uma viração presente que vem a ser o próprio futuro que já chegou. A relação meramente instrumental com uma escola, que nada mais é do que um conjunto vazio de normas e regulamentos, um marco de sucesso adaptativo, numa sociedade em que o horizonte de expectativas encolheu drasticamente.

Adverso – Por que não há mais base social para que interpretações como as de Florestan Fernandez, Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Raimundo Faoro voltem a acontecer?

Paulo Arantes – O mesmo horizonte anulado de expectativas rebaixadas (responsável pelo sucesso de adaptação passiva, que vem a ser as mil e uma manobras a que se resume a perene viração do “aprender a aprender”) em que se viu engessada a imaginação do povo miúdo das escolas brasileiras, também roubou o fôlego dos herdeiros de uma tradição crítica que não se esgotou por escassez de talentos. Longe disto.

Porque haveria de ser diferente, se o chão social é comum? Não basta dominar o seu ofício – no caso, a tradição crítica herdada, virada e revirada até o osso, a ponto de se tornar um formalismo a mais – numa sociedade decididamente unidimensional. Foi-se o tempo que tínhamos encontro marcado com o Futuro, com a Modernidade, ou o que fosse, contanto que assinalasse a presença tangível da História correndo a nosso favor. Até mesmo o golpe de 1964 era a contra-prova de que uma bifurcação real em nosso tempo histórico se apresentara, tanto é que uma violência política inaudita foi então deflagrada, e até hoje corre solta, para erradicar de vez a alternativa. O meio século de vigência daquelas grandes interpretações mobilizadoras distinguiu-se por uma espécie singular de processo mental. O que Antonio Candido chamou certa vez de “consciência dramática do subdesenvolvimento”, um tempo em que o País ingressou na dinâmica de uma conjuntura longa, porém agônica, alimentada pela experiência catastrófica da miséria pasmosa das populações, pedindo desfecho superador, justamente da condição subdesenvolvida.

Hoje vivemos em tempo morto. Em linguagem teatral, um tempo pós-dramático veio preencher o vazio deixado pela épica das massas em movimento, pelo menos até o fim dos anos 80. Por favor: nada a ver com o desalento confortável de quem continua se dando bem num país em que “tudo fracassou”, nas palavras do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (não por acaso um elo nada desprezível daquela mesma tradição crítica, cuja dimensão afirmativa afinal aflorou plenamente nos anos 90).

Aliás seria bom não esquecer, neste momento de transição, quem sabe para uma outra teoria crítica impulsionada pela nova urgência da hora, que no avesso do ciclo intelectual anterior – ou melhor, no direito –, o empenho em romper com as raízes do “atraso” mal se distinguia da ambição de uma contra-elite em emparelhar com os padrões metropolitanos de progresso. Por isso mesmo, escapavam ilesos da crítica, para não falar de uma possível rejeição.

Cinismo dos vencedores à parte, o fato é que o horizonte do Brasil encurtou. Resta saber que rumo político dar à interpretação deste fenômeno inédito. O deboche da classe dominante e seus representantes intelectuais consiste em arrematar. Nossas ambições são medíocres porque se encontram plenamente realizadas com a atual reconversão primário-exportadora financeirizada. A resposta de esquerda deve pelo menos partir do reconhecimento de que um tal encolhimento de horizontes pode muito bem significar um tempo social em que, pela primeira vez, as expectativas não só não ultrapassam, mas coincidem inteiramente com a experiência presente. Isto significa que a conjuntura tornou-se literalmente emergencial, como se a sociedade se confundisse com uma descomunal urgência médica. Para os mandantes de turno, a saída é puramente gestionária e combina programas sociais seletivos com escalada penal. Quanto à esquerda, se deseja mesmo se reinventar, precisa aprender a intervir numa coisa jamais vista, uma conjuntura perene.

Kassab e a cegueira da classe média


Por Altamiro Borges
(Escrito em 24/10/2008).

- "É um absurdo investir tanto dinheiro público em teatros luxuosos e em piscinas aquecidas nos CEUs do fundão da periferia. Aqueles nordestinos não têm cultura e vão destruir tudo". Chilique de uma especialista na área de saúde e estética.

- "Eu fico puto com estes corredores de ônibus. Gastei uma fortuna no meu carro e ele anda mais devagar do que os ônibus. Parece que a prefeita privilegia quem não tem carro". Desabafo de um ex-gerente de uma multinacional do setor de alimentação.

As duas declarações absurdas, mas verídicas, revelam bem a visão mesquinha da chamada classe média paulistana. Foram dadas, com a maior franqueza, por vizinhos do bairro da Bela Vista, na região central da capital paulista, quando Marta Suplicy ainda era prefeita. Este comportamento tacanho talvez explique por que Gilberto Kassab, representante do que há de mais conservador na política, deu de goleada neste bairro, venceu o primeiro turno e, segundo as pesquisas, deverá se sagrar o vitorioso no pleito neste final de semana, salvando o oligárquico Demo da total falência.

As farsas paulistanas

O mapa de votação do primeiro turno mostra que Kassab venceu com folga nos bairros nobres e de classe média da cidade; Marta Suplicy só ganhou nos extremos da periferia. Já as pesquisas de segundo turno revelam que o demo tem 73% da preferência entre eleitores que ganham acima de 10 salários mínimos. Estes dados corroboram a triste história do maior centro econômico do país, que sempre apostou em farsas conservadoras. É certo que a visão elitista da classe média paulista é antiga e não deveria gerar surpresas. Mesmo assim, ela causa asco e revolta. Numa linguagem sarcástica, o jornalista Nirlando Beirão, editor da coluna Estilo da revista Carta Capital, lembra:

"São Paulo era contra Getúlio Vargas e a favor da oligarquia. Apoiou o populismo de Adhemar de Barros e inventou Jânio Quadros para a política. Vociferou contra Juscelino Kubitschek. Com as Marchas com Deus pela Família, preparou e apoiou o golpe militar de 1964. Revelou Maluf. Na eleição municipal de 1985, elegeu Jânio contra Fernando Henrique. Na primeira direta para presidente, elegeu clamorosamente Fernando Collor. FHC contra Lula? FHC duas vezes. Maluf contra Eduardo Suplicy? Maluf. Pitta contra Erundina? Pitta. Serra contra Lula? Serra. Alckmin contra Lula? Geraldinho. Serra contra Marta? Serra. Kassab contra Marta? Kassab... Quando Erundina venceu em 1988, não havia segundo turno. Em 2000, o eleitor correu para Marta só porque tinha se cansado da impagável dupla Maluf-Pitta. Exceções que confirmam a regra".

Come mortadela e arrota caviar

Já o sociólogo Emir Sader avalia que São Paulo se tornou "o núcleo mais conservador do país, o estado mais odiado pelos outros estados, porque assume a imagem da ‘vanguarda econômica’, de discriminação em relação aos outros, pretendendo, desde FHC, assumir o espírito reacionário de 1932. Não por acaso se constitui no estado o pior da imprensa nacional – Folha, Estadão, Veja –, instrumentos de propaganda da oligarquia paulista. O bloco sócio-político da direita representa o egoísmo de quem resiste às políticas de distribuição de renda e de incorporação dos excluídos".

A chamada classe média, que reproduz acriticamente a ideologia dominante, teria ódio a Lula, a Marta Suplicy e ao conjunto da esquerda. Para esta camada, que come mortadela e arrota caviar, Lula representa "o nordestino chegado a São Paulo pela expulsão das secas do nordeste, operário que se forjou politicamente na oposição à oligarquia, discriminado por ela, odiado hoje porque promove políticas de redistribuição de renda que acusam as oligarquias pelo que não fez quando foi governo e pela sua responsabilidade em fazer do Brasil o país mais desigual do mundo. O oposto a FHC, ídolo dessa classe média conservadora e da elite branca paulista", fustiga Sader.

Decifra-me ou devoro-te

O livro ‘Classe média: desenvolvimento e crise’, organizado pelo economista Marcio Pochmann, ajuda a decifrar o enigma deste segmento social, alvo da cobiça dos conservadores. Ele usa como referência conceitual de classe média "o conjunto demográfico que, embora com relativamente pouca propriedade, destaca-se por posições altas e intermediárias na estrutura sócio-ocupacional e na distribuição pessoal de renda e riqueza. Por conseqüência, ela termina sendo compreendida como portadora de autoridade e status reconhecidos, bem como avantajado padrão de consumo".

Ele subdivide a classe em média/alta (executivos, gerentes e administradores) em média/média (ocupações técnico-científicas, postos-chaves da burocracia pública e privada) e em média/baixa (professores, lojistas, entre outros). Indica que este estrato social teve forte expansão no país em decorrência das mudanças no capitalismo brasileiro, com o fortalecimento do papel do Estado e o aumento do trabalho assalariado. "Sem a propriedade e a posse de alguns meios de produção, a nova classe média assalariada encontrou a diferenciação em relação à classe trabalhadora não apenas pela extremidade do rendimento, mas também pelo padrão de consumo elevado".

Neoliberalismo e guinada à direita

Após seus anos de glória, porém, ela também foi vítima do tsunami neoliberal. "A partir da crise da década de 1980, com a adoção de medidas recessivas e choques inflacionários seguidos, nos anos 1990, por políticas neoliberais de abertura comercial e financeira, a classe média sofreu as conseqüências da semi-estagnação econômica, do desemprego e queda de renda. A conseqüente perda de status da classe e as dificuldades crescentes do mercado de trabalho cada vez mais competitivo e exigente de novas qualificações impactaram diretamente as suas aspirações de ascensão social". A ofensiva neoliberal rompe o padrão de reprodução da classe média.

"Ganha ênfase o conjunto de ocupações vinculadas à existência de algum meio de produção e à posse de propriedade privada, como no caso dos micro e pequenos negócios ou das atividades autônomas". As mudanças objetivas se refletem na sua subjetividade. "Segmentos importantes da nova classe média repudiam o Estado e jogam o peso da crise sobre o excesso de direitos e de ‘encargos sociais’. A nova classe média proprietária volta-se para o consumo das elites, mostrando-se profundamente reticente a qualquer forma de nacionalismo. Enquanto encolhe a renda da baixa e média classe média, a alta classe média ‘cola’ no processo de financeirização".

"De um lado, a classe média que depende da expansão econômica, da prestação dos serviços públicos e sociais e da diversificação produtiva vê seu espaço de ação cada vez mais minguado; enquanto, de outro, uma nova classe média, ostensiva em seu padrão de consumo, aproxima-se da elite dominante e revela profundo escárnio em relação às potencialidades do desenvolvimento nacional. O motivo é evidente: a efetivação destas potencialidades implica a contenção e controle do seu modo de vida transnacionalizado e essencialmente anti-republicano. Será que a atual classe média realmente deseja que o país avance se isso lhe custar ceder alguns privilégios?".

Aliada das elites dominantes

O livro lembra ainda que a classe média se beneficia das injustiças sociais, com diversos tipos de serviços pessoais – empregada doméstica, faxineira, segurança particular, babá, motorista – que estão disponíveis devido à abundância de mão-de-obra barata no Brasil. "Naturalmente, qualquer variação no status quo modificaria essa relação da classe média com a mão-de-obra abundante, tirando-lhe o proveito dos serviços pessoais e reduzindo a sua posição social hoje privilegiada". Como conclusão, a obra chegava ao veredicto que explica a tendência eleitoral deste segmento:

"Esse quadro reforça a posição tradicional conservadora do grupo em luta pela manutenção das suas regalias. E isso torna a classe média uma aliada dos grupos dominantes do país, da ‘elite do poder’. Sendo assim, não é difícil de entender o verdadeiro sentimento de contradição que parece atravessar esse heterogêneo grupo social: de um lado, o sonho de modernidade, de progresso, de competência e de sucesso; de outro, o contato, o apadrinhamento, os serviçais, a aparência. É quase como o mito da caverna: alia-se ao discurso conservador em detrimento da compreensão mais profunda do país concreto e, por isso mesmo, só observa sombras da realidade".

Cegueira beira a burrice

Nesta cegueira preconceituosa, a chamada classe média beira a burrice. Repete acriticamente as manipulações da mídia venal. Gosta de ouvir e ecoar os comentários dos colunistas mais elitistas e rancorosos, como Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi, Boris Casoy, Lucia Hipolito, entre outros. Metida a esperta e informada, esquece facilmente que Celso Pitta devastou a capital e que tinha como seu principal secretário o atual candidato Gilberto Kassab. Sem memória, releva o sombrio período da ditadura, que hoje tem como herdeiros os oligarcas do demo (ex-PFL), escorraçados pelas urnas no país inteiro, mas salvos na "capital da modernidade".

Egoísta e egocêntrica, ela não percebe que o país não se desenvolverá, inclusive alavancando as suas camadas médias, sem justiça social; que a miséria estimula a violência e criminalidade; que a barbárie acirra o apartheid social, com os presídios para os pobres e os condomínios fechados, cercados de segurança e câmeras para os abastados. Ela se opõe às políticas públicas a serviço do conjunto da sociedade e depois reclama dos congestionamentos provocados pela "civilização do automóvel" privado. Critica o Bolsa Família, mas sonha com sua bolsa de estudo no exterior. Diz não ser racista e preconceituosa, mas cada vez mais se parece com a elite fascista da Bolívia.

Fonte: Correio da Cidadania